10 Novembro 2020
O autor de “A era do vazio”, “Os tempos hipermodernos” e “Da leveza”, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky (Paris, 1944), retorna com outro acentuado retrato da sociedade contemporânea. A sociedade do hiperconsumismo, individualismo, capitalismo hedonista e artístico, que desfez as antigas fronteiras entre arte e produção em massa, é sobretudo, afirma, a sociedade da sedução. A primeira sociedade na história em que a sedução é soberana. E, sobretudo, é o motor do mundo que conhecemos, seja na economia, na política, na educação e nas relações humanas. É o que retrata em “Agradar e tocar: ensaio sobre a sociedade da sedução”.
A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 09-11-2020. A tradução é do Cepat.
O que significa que hoje vivemos em uma sociedade da sedução? O que mudou?
O capitalismo de consumo é o motor do crescimento nas sociedades hipermodernas, o nervo da economia. A partir dos anos 1950, o capitalismo entrou na pele do consumo de massas e isso transformou os modos de vida. Don Juan é um sedutor ultrapassado hoje em dia, muito pequeno, nada comparado ao capitalismo que seduz sem parar milhões e milhões de homens, mulheres, crianças, velhos. Packaging, publicidade, séries, filmes, destinos turísticos, música..., estamos em um universo que não é mais o da disciplina coercitiva, mas uma máquina de estimulação, um sistema de tentações que não para de dizer "veja, isto é magnífico, bom, você gostará". Don Juan é hoje o sistema capitalista.
Ao mesmo tempo, mudou a relação com a vida. Espalhou-se uma ética de tipo hedonista: é preciso aproveitar a vida, desfrutar, viajar, divertir-se. Desde os anos 1950, falamos de fun morality, o prazer e sua busca se tornaram legítimos e a consequência é que pouco a pouco essa lógica de sedução e prazer conquistou inclusive a educação, que foi reestruturada, como a economia. Da educação autoritária que eu conheci a uma educação aberta, compreensiva, psicológica, relacional. Escuta-se as crianças, é preciso agradá-las. Impõem suas leis nas famílias, é lhes dito te amo continuamente. Quando eu era criança, minha mãe não dizia isto, não era uma relação de sedução.
Conforme o título de seu livro, trata-se de agradar e emocionar.
É a lei hoje, uma fórmula fantástica do século XVII que atribuo a Racine. Essa lei se tornou dominante mesmo nas relações consigo mesmo e com os outros. Com a exposição de si mesmo nas redes sociais, que funcionam como uma enorme máquina de sedução para ser olhados, atrair os outros. São um ego-casting, cada um se expõe para atrair e espera a confirmação permanentemente. E existem todas as redes de encontros, pode haver operações de sedução pela internet ‘non stop’, com duas, três, cinco, dez mulheres ao mesmo tempo. Seduzir ou tentar seduzir até a quem não conhecemos, o encontro vem depois.
O domínio da sedução explodiu e ao seu lado há uma formidável máquina de industrialização de produtos de beleza. Isso estava presente há milênios, mas havia limites. Hoje, não. Você pode se maquiar aos 12 e fazer cirurgia estética aos 80. O desejo de atrair é legítimo, ao passo que antes era carregado de valores imorais. A sedução estava ligada a Eva com toda a dimensão do diabo.
Por outro lado, você vê a sedução como um motor da vida.
Sim. Não é apenas útil para nos oferecer ou obter o objetivo de desejo. Não é o essencial. O essencial é que a sedução é uma lei do vivo. A maioria das espécies que se reproduzem por via sexual tem sedução, a fêmea não aceita o macho antes de um cortejo. É uma lei de vida que começa no nascimento com o fenômeno de atração-repulsão, você é atraído por algo. Seduzido. Don Juan é condenado como imoral, perverso, manipulador, e isso existe, mas não é o essencial.
A sedução faz você desejar e quando é seduzido, faz algo. Platão condena a sedução como prática de engano. Eva seduz Adão. O pecado. Mesmo em inícios do século XX se tem a femme fatale que provoca o homem e o leva à morte. É uma visão machista, falocrática, que condena a mulher. O capitalismo subverteu tudo isso. Compreendeu que a sedução é a melhor ferramenta para fazer negócios. E ao capitalismo se acrescenta a lógica do individualismo, que deu um novo lugar à sedução por meio da mudança fundamental no matrimônio.
Por que essa mudança é central?
Todas as sociedades realizam práticas de sedução: penteado, danças, canto, maquiagem, rituais mágicos, vestidos, uma lógica de aumento do poder da sedução natural. Mas, ao mesmo tempo, todas as sociedades, exceto a nossa, colocaram limites a esse poder, jugulando-o com a instituição do matrimônio. Eram os pais, as famílias e os clãs que o organizavam, às vezes, antes de nascer. Houve duas forças contrárias em todas as sociedades: aumentar o poder de sedução e jugular sua lógica.
Ao contrário, nas sociedades modernas individualistas, saltaram esse limite com a invenção do matrimônio por amor. A sociedade moderna libertou o poder da sedução, tornou-a soberana, sem limites, sem instituições que a freiem. Converteu-a no motor do mundo.
Somos ‘donjuans’ multiplicados?
É uma sociedade donjuanesca. Carrega um problema: a lógica exponencial da sedução conduz à crise climática, a degradação da riqueza do vivo... Os ecologistas dizem, e não concordo, que a lógica da sedução mercantil é uma catástrofe, que é necessário reduzir o consumo, parar esta dinâmica perpétua de tentações e consumir menos. Veem novamente na sedução o diabo.
E você, o que pensa?
O diagnóstico é justo, mas não a resposta. Posso entender a reivindicação de que as pessoas consumam menos e inclusive concordar, mas não é a solução. O desejo de consumo, de novidade, não é marketing, inscreve-se na antropologia da modernidade. Os chamados à frugalidade têm sentido para burgueses boêmios, mas falar disso a chineses, indianos, africanos, não funcionará. Nos próximos 50 anos querem chegar ao nível de vida ocidental.
O que fazer?
Não é uma cruzada moral que mudará algo. É necessário a ação do Estado para obrigar a máquina econômica a mudar o sistema produtivo, trabalhar para que as empresas tomem consciência de sua responsabilidade planetária, o que também está de acordo com o seu interesse, pois utilizam a imagem de sua marca para seduzir o consumidor.
É necessária uma sedução aumentada, que se case com os outros parâmetros. O carro elétrico, os edifícios sem emissões, tudo bem, mas nada impede que sejam belos. É preciso casar sedução com ecologia e responsabilidade, não são contraditórios. Precisamos de uma sedução responsável e ecológica. O futuro passa por aí. A beleza não é um luxo, está inscrita no vivo.
Mesmo assim, em seu livro, o resultado da sociedade atual nas pessoas é ambíguo. Fala em fragilidade psíquica nesta liberdade completa.
A individualização rompeu os enquadramentos coletivos. Antes, pertencia-se a um coletivo de trabalho, do bairro, da religião, que amparava indivíduos que viviam em condições difíceis, tinham uma espécie de segurança interior. Hoje, temos liberdade, podemos mudar de ofício, mulher, religião, a vida privada é livre, mas os indivíduos se tornaram extremamente frágeis, como vemos nas tentativas de suicídio, no estresse, nas depressões, nos vícios.
Há uma fragilização da vida individual que faz com que o que vivemos se torne problemático. Os pais não estão seguros de como educar as crianças, informam-se, leem livros, questionam-se se são bons. Na alimentação também, é bom para a saúde, não... A sociedade da sedução permitiu mais liberdades, mas essa autonomia individual tem um preço forte, que é a fragilidade psíquica. Não se deve condená-la, mas novamente enriquecê-la.
Em que sentido?
Temos como ideal viajar, comprar marcas, distrair-nos... Não é espantoso, mas não está à altura de uma sociedade humanista que também deve ter outros ideais que não sejam atrair pela aparência e ser seduzido pelas mercadorias. Na escola, devem ser oferecidos outros modelos, que não seja de pura sedução. Aí estão a cultura, o pensamento crítico, a arte, para que as crianças busquem na vida outras coisas para além das técnicas de sedução. Oferecer novamente o sentido do esforço, o trabalho e a inovação, a formação da inteligência.
Não se pode esperar tudo da sedução. Mostrar que pelo trabalho e o esforço as pessoas podem realizar coisas que podem lhes satisfazer. Nem tudo pode ser divertido o tempo todo. É um mito. É preciso repensar a educação, o sentido da cultura, da empresa e da vida econômica. Utilizar a sedução para fazer nossa relação com ela evoluir. Hoje, não funciona de forma satisfatória. Devemos propor às gerações futuras objetivos dignos, ecológicos, sociais, culturais, artísticos, morais.
A Covid-19 nos mudará?
Não. Acelerará o que já estava em marcha. Teletrabalho, compras online, tele-educação, telemedicina. Em relação ao apetite de distração, consumo, divertimento, não. Neste verão, quando as medidas de confinamento foram suprimidas, tudo voltou a ser como antes. Serão realizadas mais compras com o smartphone e haverá mais teletrabalho, mas não se colocará fim à sociedade do hiperconsumo.
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“A sedução se tornou o motor do mundo”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU