12 Março 2020
O surgimento de “A era do vazio”, em 1983, fez de Gilles Lipovetsky (Paris, 1944) uma referência intelectual na Europa como o primeiro crítico da pós-modernidade e criador do conceito de hipermodernidade, associado ao individualismo, a indiferença e a ligeireza como diagnóstico crucial do presente. Depois, vieram outros livros, como De la ligereza, A sociedade da decepção, A sociedade paradoxal e O império do efêmero que fizeram de Lipovetsky um autor reverenciado dentro e fora dos círculos acadêmicos e o sociólogo mais influente de sua geração.
A entrevista é de Pablo Bujalance, publicada por Málaga Hoy, 09-03-2020. A tradução é do Cepat.
Podemos ver nas mobilizações contra a mudança climática uma oportunidade para superar o individualismo, para criar talvez uma sedução geracional?
O desafio climático é uma questão crucial. E estamos atrelados a tomar medidas contra o livre arbítrio dos indivíduos. São necessárias regras e leis em um contexto puramente coletivo. Aparentemente, essas medidas poderiam funcionar como uma maquinaria anti-individualista. Por exemplo, se proibimos o uso de carros no centro das cidades, estamos promovendo uma medida anti-individualista, porque não temos mais a liberdade de pegar o carro para ir onde quisermos e, ao mesmo tempo, promovemos o uso de outros meios de transporte, como os transportes públicos ou a bicicleta. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de existir uma lógica individual que se recompõe de alguma forma.
Por exemplo, no compromisso de certo volume de consumidores sobre a questão alimentar. Hoje, muitos compram produtos ‘bio’, mas para eles essa opção não é tanto uma resposta à urgência climática, mas à sua própria saúde. De fato, para certos consumidores, os produtos orgânicos implicam uma forma de compromisso, mas a modo de uma escolha individual que dá sentido à sua existência. Se alguém compra frutas orgânicas, age assim para se opor à globalização, ao mercantilismo, a tudo isso, como uma revanche contra a mundialização da economia, para não ser uma marionete do marketing, mas no sentido de uma reivindicação de si mesmo, como uma questão de identidade. Um segundo exemplo: o turismo.
A pedra filosofal.
Sim, claro. Nos últimos anos, vimos muitas modalidades de turismo responsável: viajantes que rejeitam o avião pelas emissões de CO2 e optam por meios mais limpos, condicionando a esta exigência seus destinos, se necessário. E pessoas que organizam suas rotas livremente, longe dos operadores turísticos e do turismo de massa. Mas tudo isso é feito não por um compromisso comum, mas por uma identidade individualista. Refiro-me a tentativas pessoais, não vamos ser maria-vai-com-as-outras como todo mundo, vamos fugir do turismo de massa, vamos evitar ir a destinos clássicos como Veneza. Em vez de subir em um avião, pego uma bicicleta e demonstro que sou um ser livre e autônomo.
Em grande medida, essa consciência climática repousa na convicção de que a natureza é uma entidade frágil, agredida pela atividade humana. No entanto, a crise do coronavírus não nos lembra, por exemplo, que a natureza não só pode ser imprevisível, como também adversa?
Claro, a natureza não é frágil. Se a temperatura do planeta subir até cinco graus no final deste século, como está previsto, isso não importa para o planeta. Atinge a nós, não ao planeta. A ideia de fragilidade só faz sentido, aqui, em relação ao homem. Nesse cenário de aumento das temperaturas, teremos que lamentar um desastre para certa população do mundo, haverá migrações e crises humanitárias. A Andaluzia se tornará um deserto e haverá palmeiras na Sibéria, mas nada disso é importante para o planeta. Aqui, o fundamental é a gestão política para evitar que cinco milhões de pessoas se vejam obrigadas a se deslocar.
O coronavírus é a epidemia da hipermodernidade?
Sim, é uma manifestação muito clara. Por um lado, vemos o novo papel da informação: só se fala disso, a obsessão que há em todas as partes com esse assunto revela até que ponto a sociedade está hiperinformada. Outro traço fundamental é o culto à saúde: exceto paras as pessoas mais velhas, o coronavírus não representa nem de longe o problema que a sífilis representou em seu momento. É verdade que é um problema sério, mas não digno dessa obsessão.
Por último, o coronavírus é um bom embaixador da globalização: nasceu na China e se expande por todas as partes graças à velocidade das viagens e a conexão imediata do planeta. Por tudo isso, sim, o coronavírus é um sintoma da hipermodernidade.
O paradoxo que você destacava, antes, entre as causas comuns e as posturas individualistas, no que diz respeito à consciência ambiental, seria aplicável ao feminismo?
Existem aspectos do feminismo contemporâneo que não são paradoxais: quando as mulheres reivindicam a igualdade salarial, nisso não há paradoxo. É uma exigência completamente legítima. Também não existe uma lógica individualista quando as mulheres almejam exercer todos os ofícios, bem como quando reivindicam o direito de dispor de seus corpos ou quando protestam contra a proibição do aborto.
Agora, onde encontramos certo paradoxo é no Me Too. Por um lado, essa reivindicação expressa de forma clara questões relativas aos sentimentos das mulheres com a finalidade de fazer com que os homens, ou alguns homens, sejam recapacitados. Permite, além disso, que mais mulheres tornem público seu sofrimento e conquistem o respeito da sociedade. Mas nem tudo dentro desse fenômeno é respeitável. Primeiro, porque há excessos: a justiça que defende é muito rápida, imediata, quase do far west, deixando o suposto agressor sem ferramentas para se defender. Em nome da justiça, deixa-se de lado a própria justiça, porque na democracia é importante que possamos nos defender.
Mas o verdadeiro paradoxo se encerra em certo número de mulheres que, dentro do feminismo, se posicionam sistematicamente no vitimismo. Isso não é bom para a emancipação da mulher, justamente porque seu status tradicional é o da vítima. Sendo assim, em nome da liberdade, retorna-se a uma defesa da tradição, daí o paradoxo: reclamam autonomia e respeito, mas se reivindicam como vítimas.
Não acredito que esta seja uma medida revolucionária, nem que tenha um efeito libertador sobre a mulher. É muito mais libertador ter mais mulheres cirurgiãs, que pilotem aviões, pesquisadoras e empreendedoras do que mulheres se apresentando como vítimas. Uma coisa é que existam vítimas entre as mulheres e outra é que se faça bandeira do vitimismo.
A partir do império da ligeireza, é mais fácil converter o vitimismo em mercadoria e espetáculo do que uma emancipação real?
Não, eu não diria tanto. É a sedução feminina o que se converte em objeto de uma terrível mercantilização. Se prestarmos atenção na moda e na venda de cosméticos, a mensagem que encontramos é que se você comprar esses produtos, poderá continuar sendo bela. O paradoxo do feminismo tem mais a ver com a informação do que com mercantilização, que por sua parte impôs tradicionalmente à mulher um fardo muito pesado, com papéis excessivamente estereotipados.
Considera, assim como Leibniz, que vivemos no melhor dos mundos possíveis?
Seria necessário especificar de que parte do mundo estamos falando. Da Europa, América do Norte, Primeiro Mundo, da Rússia de Putin, China, da Turquia de Erdogan, dos países da África onde vivem com dois dólares por dia? Perguntaria melhor se o capitalismo e a democracia oferecem o melhor dos mundos possíveis. De entrada, falamos de duas forças que evoluem, nada estáticas.
Como sabemos, a democracia está ameaçada hoje. Não está à beira do abismo, mas carece do apoio que teve em outros tempos. Quanto ao capitalismo, o que, sim, está claro é que precisa mudar. Eu não sou contra o capitalismo, mas há muitos tipos de capitalismo. Declaro-me a favor da concorrência e da ambição pessoal, mas não de qualquer forma. O ideal seria uma economia liberal, mas submetida a interesses superiores. A economia deve ser um meio, não o fim.
A partir daqui, não se necessita muito da teoria para comprovar que o capitalismo é o melhor dos meios atuais: basta dar uma olhada no mundo. Mas se é o melhor meio, é porque pode se adaptar a determinadas condições, como o respeito ao meio ambiente e a inexistência de desigualdades intransponíveis entre as pessoas. Há muito a ser corrigido, mas o capitalismo nos oferece justamente o mundo que melhor permite sua própria correção.
Casos como o de Salvini, que demonstram que os populismos também não têm as soluções que os Estados necessitam, colocam a Europa em uma frustração ainda maior?
A ascensão dos populismos e da extrema direita tem muito a ver com a imigração, que não é um problema pequeno, nem efêmero, mas que irá se perpetuar por séculos. Agora, temos quatro milhões de refugiados na Turquia que tentam entrar na Europa, juntamente com toda a população do Magrebe que sonha com o mesmo destino, mas a Europa pode acolher a um determinado número de pessoas.
Os populistas se dedicam a protestar, mas o mais grave é a paralisia da Europa, porque é necessária uma resposta global, por exemplo, para ajudar a Grécia. É incrível e triste que a Europa não apresente os meios para solucionar essa crise, que não exista uma política comum de imigração.
Sinto-me muito europeu, mas o quadro é desolador: os ingleses já foram embora, os países do Leste como Polônia e Hungria estão nas mãos de governos populistas, as nações envelhecem e parecem não ter soluções. Seria necessário avançar de maneira mais sólida.
Mas existem soluções?
Sim, existem. Não devemos ser pessimistas, mas, sim, agir. Se não abordarmos a questão da imigração, em um contexto de debilidade democrática, haverá reações. Os partidos tradicionais podem ser varridos. Lembre-se do que aconteceu na Alemanha, quando Merkel abriu as portas, a extrema direita comeu o Parlamento.
Primeiro, seria necessário atender os países que vivem o problema em suas fronteiras, como Itália e Grécia. A Europa não pode continuar olhando para o outro lado. A partir disso, a menos ruim das soluções seria a imigração controlada e seletiva. Reconheço que do ponto de vista ético, essa opção é muito problemática, mas a política não é a ética, não exclusivamente. É terrível, mas é assim.
Com a ética, podemos fazer coisas horríveis, observe como os novos fascismos reivindicam os direitos humanos. Se não nos mexermos, o progresso acaba. E se não agirmos, então, sim, será difícil integrar tantas pessoas. Admito que é um drama fechar as fronteiras para as pessoas que estão ameaçadas, mas não há respostas simples.
Seria necessário distinguir entre imigração econômica e imigração política, porque não são a mesma coisa e atendem a razões muito diferentes. Temos que ser inteligentes, porque, caso contrário, os populismos continuarão avançando e seguirão semeando o ódio, eliminando as diferenças, criando tensões indesejáveis, por isso é apropriado agir antes que eles.
Não sou profeta, não tenho as chaves, mas, sim, acredito que precisamos ser honestos e ter fortes respostas coletivas, a nível europeu. Sem essas respostas, voltaremos a ter líderes como Salvini, capazes de deixar as pessoas à deriva no Mediterrâneo.
Em relação à educação, o Vox propôs na Espanha o ‘Pin Parental’, um direito de veto na escola que as famílias possam exercer, através de seus filhos, por motivos ideológicos. Em algumas comunidades, já está sendo aplicado. O que você acha?
É fundamental confiar nos professores. Não pode ocorrer que estejam sempre submetidos ao descrédito. Isso é muito perigoso, porque se os alunos não percebem que os professores são respeitados, simplesmente, o ensino não ocorre. É preciso sempre reforçar o respeito aos professores, mesmo quando caiba criticar o seu trabalho. E isso deve ser acompanhado por uma formação contínua para os professores.
Mas caso seja dada para a família a possibilidade de avaliar e até vetar os conteúdos, a educação não é possível. A família é privada, a escola é pública, republicana e laica. É preciso fazer dos professores uma autoridade intelectual através de um grande processo de formação, da melhora de seus salários e de suas condições de trabalho. Esse é o fundo da questão.
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“O coronavírus é um sintoma da hipermodernidade”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU