06 Novembro 2020
“A declaração pública do Papa sobre as uniões civis é, de fato, uma boa notícia para os católicos LGBTQ e aliados, mas devemos viver e crer de tal maneira que as palavras do Papa sejam desnecessárias para nossa saúde espiritual. O Papa pode parecer importante, mas os crentes queer são instrumentos de graça e cura que trazem sentido para o resto do corpo”, escreve Jason Steidl, professor do Departamento de Estudos Religiosos da St. Joseph’s College, Nova York, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 05-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há algumas semanas, nós aprendemos que o Papa apoia a união civil homossexual. Essa é uma boa notícia para os católicos LGBTQ e seus aliados, mesmo que a Secretaria de Estado do Vaticano tenha esclarecido que as palavras do Papa foram tiradas do contexto. Seja qual for o resultado final, eu solto um suspiro de consternação toda vez que o papa Francisco fala sobre questões LGBTQ. Eu sei que haverá uma tempestade de especialistas – alguns seculares e alguns religiosos, alguns inteligentes e alguns não tão inteligentes – interpretando suas palavras de acordo com suas próprias predisposições ideológicas.
Aqueles que não gostam do Papa provavelmente não gostarão do que ele tem a dizer; aqueles que o admiram provavelmente serão muito elogiados. Pessoas LGBTQ se alegram quando Francisco parece ficar do lado deles; os tradicionalistas comemoram quando ele segue a linha do partido. Já é tudo bem ensaiado.
Mais problemático, no entanto, todos leem as palavras do Papa como se fossem folhas de chá revelando o futuro dos católicos LGBTQ. A sobrevivência de pessoas queer parece depender do que sai da boca dele.
Agora, não me entendam mal. Meu próprio trabalho no ministério e defesa de direitos LGBTQ lucrou muito com a indústria que surgiu em torno dos comentários papais. Mas o alvoroço perene em torno das declarações públicas de Francisco sobre questões LGBTQ, sejam de setores progressistas ou tradicionalistas, parece-me equivocado e perigoso por uma série de razões.
Em primeiro lugar, isso obscurece o próprio histórico de Francisco em questões LGBTQ. Como outros apontaram, o apoio do Santo Padre às uniões civis remonta a quase uma década, desde sua época como Arcebispo de Buenos Aires. O mesmo acontece com sua oposição ao casamento do mesmo sexo. Suas opiniões sobre as uniões civis (ou qualquer outra questão LGBTQ) não devem ser uma surpresa em 2020.
Nem são suas palavras revelação divina. Em vez disso, são uma resposta pragmática e pastoral aos costumes sociais e religiosos em rápida mudança. Francisco é um homem de seu tempo, um patriarca católico argentino que é capacitado e limitado por sua compreensão do mundo.
Em segundo lugar, um foco obsessivo em Francisco desvia nossa atenção do resto da Igreja. O catolicismo está repleto de clericalismo, uma cultura religiosa abusiva e manipuladora que privilegia as perspectivas de alguns ordenados (homens) sobre os muitos membros leigos da igreja. Isso leva a uma compreensão distorcida do corpo de Cristo. Com tanta atenção prestada à cabeça, perdemos nossa capacidade de perceber o que outras partes do corpo sentem.
Nos Estados Unidos, por exemplo, 61% dos católicos comuns apoiam o casamento do mesmo sexo. Para nosso próprio risco, os católicos muitas vezes desconsideram esse sensus fidelium, o senso coletivo de discernimento da Igreja como entendido e expressado por todos os seus membros. Nós nos afastamos da complexidade e beleza da obra de Deus entre os crentes comuns pela crença ingênua, porém maligna, de que Deus fala mais por meio dos poderosos e famosos.
Quando falamos apenas sobre o Papa, também esquecemos as lutas que os católicos LGBTQ de base enfrentam comparecendo à missa todos os domingos. É impossível reconhecer como Deus está se movendo nas famílias e nas paróquias para purificar a igreja de sua homofobia e transfobia, se estamos constantemente preocupados com o Santo Padre.
Na verdade, a conversão contínua da Igreja para a afirmação da dignidade LGBTQ é uma graça que se origina entre o povo de Deus profético, embora marginalizado e frequentemente excluído, LGBTQ. Como o teólogo da libertação latino-americano Jon Sobrino deixou claro: “fora dos pobres não há salvação”.
É uma tarefa tola colocarmos nossa esperança no papa Francisco.
Uma terceira razão decorre de minha própria experiência como católico gay. Por anos, tenho lutado para me amar e me aceitar tanto quanto confio que Deus me ama e aceita. Para a maior parte, o ensino da Igreja e a retórica dos bispos têm sido um obstáculo, em vez de uma ajuda, para minha busca pela integridade espiritual e sexual.
Com o tempo, porém, descobri e recuperei o poder que outrora lhes dei de definir minha sexualidade como “intrinsecamente desordenada”. Autoridades religiosas opressivas não podem me impedir de experimentar o amor e a santidade das relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo. Os líderes da Igreja não têm poder para revogar a dignidade dada por Deus que possuo.
Quando vejo católicos LGBTQ e aliados clamando sobre o que o Papa diz, preocupo-me que estejamos mais uma vez submetendo nosso bem-estar espiritual a um homem que deveria ter pouco a dizer sobre o assunto. Nunca devemos substituir as palavras e ações de um Papa caprichoso – por mais afirmativo que às vezes ele pareça ser – pela segurança que vem de saber que somos amados e abraçados por nosso Criador.
A declaração pública do Papa sobre as uniões civis é, de fato, uma boa notícia para os católicos LGBTQ e aliados, mas devemos viver e crer de tal maneira que as palavras do Papa sejam desnecessárias para nossa saúde espiritual. Os católicos LGBTQ são um presente para a igreja porque ajudamos outros crentes a identificar e erradicar a homofobia e a transfobia que adoecem o Corpo de Cristo. O papa pode parecer importante, mas os crentes queer são instrumentos de graça e cura que trazem sentido para o resto do corpo.
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Os perigos de sensacionalizar o papa Francisco nas questões LGBTQ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU