04 Novembro 2020
“Antes de Fratelli Tutti avançar na doutrina, ela convida o leitor a habitar o subjuntivo: convida para o futuro almejado no presente, permitindo que ele domine nossa imaginação. Nessa imaginação, como cantam León Gieco e Mercedes Sosa, sacudimos a indiferença por algo como a esperança, sem a qual a solidariedade é impossível”, escreve Susan Bigelow Reynolds, professora assistente de estudos católicos na Candler School of Theology da Emory University, em artigo publicado por Commonweal, 29-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 1978, o músico popular argentino León Gieco escreveu uma música que se tornaria um dos mais fortes cantos de protestos no continente: “Sólo le Pido a Dios”.
Gravada em meio à uma Guerra Suja na Argentina – os sete anos de ditadura militar em que milhares de dissidentes, politicamente alinhados à esquerda, foram sequestrados, torturados e forçadamente desaparecidos por esquadrões da morte do Estado – a música é um hino contra a indiferença frente ao sofrimento e à repressão política.
Os primeiros versos começam: “Sólo le pido a Dios / Que el dolor no me sea indiferente / Que la reseca muerte no me encuentre / Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente” (“Eu só peço a Deus / que a dor não me seja indiferente / que a morte não me encontre um dia / solitário sem ter feito o que eu queria”, versão em português, gravada por Beth Carvalho no ano de 1986).
O público estadunidense deve reconhecer a música do documentário de Win Wenders, “Papa Francisco: um homem de palavra” (2018). No filme, a voz sísmica de Mercedes Sosa prove uma música de fundo para uma montagem do papa Francisco abraçando um doente e abençoando multidões de espectadores em êxtase.
Dado o contexto de sua composição, Wenders usou a música especialmente acertadamente.
Jorge Mario Bergoglio foi provincial jesuíta na Argentina durante a junta militar. A parte mais contestada do seu trabalho pré-papal permanece na questão de se – tomando emprestado a letra da música – ele “fez o suficiente” para intervir durante aqueles anos de terror.
Para entender a Fratelli Tutti, a nova encíclica do papa Francisco sobre a solidariedade social, ajuda a andar pelo mundo estético da imaginação cultural e política de Francisco. Para essa tarefa, “Sólo Le Pido a Dios”, é uma companheira frutífera para a trilha sonora encíclica.
Isso não é somente porque Francisco indubitavelmente conhece a música, a qual é conhecida na Argentina como “Blowin’ in the Wind” é nos Estados Unidos.
E não é apenas por ressonâncias inconfundíveis no conteúdo: tanto Francisco quanto Gieco usam a forma da oração para implorar a um povo desiludido, fraturado e exausto que resista ao fascínio anestesiante da indiferença e às monstruosidades da guerra.
O hino popular ajuda a revelar como a encíclica entende a relação entre a realidade atual e a esperança no futuro.
“Sólo Le Pido A Dios” é escrita no modo subjuntivo – o modo não do que é, mas do que pode ser. Ele reside no plano do possível, para conjurar um futuro imaginado no presente.
O teólogo Roberto Goizueta sugere que, para os católicos latino-americanos, o subjuntivo revela um sentido de esperança escatológica, unindo o “já” ao “ainda não”.
O modo subjuntivo também existe em inglês, mas de maneira menos central. Isso torna a tradução um desafio.
Também Fratelli Tutti é um texto no subjuntivo. Vislumbramos isso, junto com o desafio da tradução, em um parágrafo impressionante no primeiro capítulo.
Descrevendo como a pandemia global em curso revelou a fragilidade de nosso tecido social e os limites desconcertantes de nossa preocupação com os mais vulneráveis, Francisco escreve:
“If only this may prove not to be just another tragedy of history from which we learned nothing. If only we might keep in mind all those elderly persons who died for lack of respirators, partly as a result of the dismantling, year after year, of health-care systems. If only this immense sorrow may not prove useless, but enable us to take a step forward towards a new style of life. If only we might rediscover once for all that we need one another, and that in this way our human family can experience a rebirth, with all its faces, all its hands and all its voices, beyond the walls that we have erected.” (FT 35)
(“Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos”, FT 35).
Onde o texto em inglês diz “if only” (‘se ao menos’, em tradução livre), a versão em espanhol – e em português – usa a palavra ojalá (oxalá).
“Se ao menos” soa melancólico, quase desesperador – um sentimento pesado pelo anseio por uma alternativa incompreensível para a desolação atual. Mas “ojalá” implica uma intuição diferente: ainda pode ser assim. Muitas vezes pode ser traduzido para o inglês como “hopefully” (esperançosamente, em tradução literal).
Em espanhol, o mesmo parágrafo – todo escrito no subjuntivo – parece acrescentar a era pandêmica ao clássico de Gieco: “Ojalá que tanto dolor no sea inútil”. Tudo o que peço a Deus, implora Francisco, é que não sejamos indiferentes a toda esta dor.
Fratelli Tutti parece sobrecarregada por uma necessidade constante de se defender de acusações de pensamento positivo.
Uma política global enraizada na caridade “pode parecer ingênua e utópica, mas não podemos renunciar a esse objetivo elevado”.
Ciente da enorme distância entre o cinismo e a injustiça de 2020 e a noção de um compromisso genuíno e integral com o bem comum, a insistência do texto em que sua visão construtiva é mais do que idealismo é compreensível.
O que significa abraçar uma visão de solidariedade que parece, neste momento, francamente impossível? Aqui, também, somos ajudados pelo hino de protesto.
Antes de Fratelli Tutti avançar na doutrina, ela convida o leitor a habitar o subjuntivo: convida para o futuro almejado no presente, permitindo que ele domine nossa imaginação.
Nessa imaginação, como cantam Gieco e Sosa, sacudimos a indiferença por algo como a esperança, sem a qual a solidariedade é impossível.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Trilha sonora para uma Encíclica: entendendo a Fratelli Tutti a partir de música de protesto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU