21 Outubro 2020
Ex-chefe da FAO, José Graziano se diz preocupado com queda na qualidade da alimentação de crianças fora da escola, bem como com fim do auxílio emergencial, que pode levar milhões a passarem fome e dependerem de caridade.Os efeitos da pandemia de covid-19 na alimentação dos brasileiros são múltiplos e incluem a fome, mas também o seu problema inverso, a obesidade. O fechamento das escolas, que tirou de muitas crianças sua refeição mais completa e balanceada do dia, e a permanência de milhões de pessoas em casa levaram ao aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados.
A análise é de José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 a 2019 e ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome no início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista à DW Brasil, ele projeta um aumento da obesidade entre adultos e crianças no período pós-pandemia. A condição já atingia 20% dos brasileiros em 2019, contra 12% em 2006.
"A obesidade em crianças compromete as gerações futuras, [pois] crianças obesas têm maior probabilidade de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis, como doenças cardíacas e diabetes”, afirma Graziano, hoje consultor do Instituto Comida do Amanhã.
Indagado sobre o problema da desnutrição, Graziano diz ser provável que o Brasil já tenha voltado ao Mapa da Fome, do qual saiu pela primeira vez em 2014, devido a uma combinação perversa de crise econômica prolongada com enfraquecimento de políticas públicas voltadas à segurança alimentar.
O Mapa da Fome reúne países nos quais mais de 5% da população consomem diariamente menos calorias do que o recomendado. Os últimos dados oficiais disponíveis sobre o Brasil são de 2018, quando 4,6% da população enfrentava insegurança alimentar grave. Graziano estima que essa parcela dos brasileiros hoje supere os 6%.
O fim do auxílio emergencial, em dezembro, sem a ampliação do Bolsa Família e a retomada do emprego preocupa o especialista, pois deve levar os brasileiros a reduzirem a qualidade de suas dietas, isso "se não passarem fome e começarem a depender de caridade", afirma.
A entrevista é de Bruno Lupion, publicada por Deutsche Welle, 20-10-2020.
Há um debate entre pesquisadores sobre se o Brasil já voltou ou não ao Mapa da Fome. Qual é a sua análise e por que essa discussão é relevante?
Pelos dados do IBGE, o Brasil tinha, em 2018, 4,6% da população com insegurança alimentar grave. Para voltar ao Mapa da Fome, precisa ter pelo menos 5%, então tecnicamente em 2018 não tinha voltado ainda. Escrevi um artigo mostrando uma projeção linear e encontrei um número perto de 15 milhões de pessoas passando fome em 2020, o que significa 6,6% da população. Ou seja, se a tendência registrada pelo IBGE entre 2013 e 2018 continuou, em 2020 nós com certeza já voltamos ao Mapa da Fome.
Por que isso é relevante? Um país com menos de 5% da população com fome, pelas estatísticas internacionais, não é considerado relevante [devido ao] erro de estimativa, que pode reduzir bastante esse valor. Cinco por cento ou mais significa que a fome é um problema grave no país. Também é emblemático no caso do Brasil: levamos dez anos para sair do Mapa da Fome aplicando políticas de segurança alimentar, e voltamos a ele em pouco mais de quatro ou cinco anos.Qual é a responsabilidade da crise econômica e de falhas de políticas públicas para essa alta da fome?
O número das famílias ingerindo uma dieta de qualidade inferior ao mínimo necessário é [hoje] muito maior, e isso se deve à crise econômica prolongada. Desde a crise das commodities, em 2008-2010, o Brasil não conseguiu retomar o crescimento econômico satisfatório. Isso significa aumentar o desemprego e não gerar emprego de qualidade, só empregos precários, bicos, trabalho informal.
Soma-se a isso a irresponsabilidade do governo de desmontar as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e congelar as políticas de proteção social, como o Bolsa Família. O direito à alimentação é assegurado pela Constituição, portanto uma política de segurança alimentar e nutricional deveria ser uma política de Estado, independente dos governos.
O fechamento das escolas durante a pandemia e a suspensão do fornecimento de merenda teve impacto na fome ou na qualidade de alimentação das crianças?
Muitas crianças, principalmente nas regiões Nordeste e Norte, têm na merenda escolar sua única refeição diária. E é uma refeição de altíssima qualidade, porque tem produtos frescos (frutas, verduras, legumes, carne, ovos). O fechamento das escolas foi dramático. Infelizmente não temos esses números ainda para o Brasil, mas em outros países, como na Espanha, o impacto foi muito grande.
Houve ainda a piora da qualidade da alimentação das crianças em casa, que passaram a comer muito hambúrguer, pizza, produtos processados, doces, e isso levou a um aumento da obesidade. A obesidade em crianças compromete as gerações futuras, [pois] crianças obesas têm maior probabilidade de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis, como doenças cardíacas e diabetes, entre outras.
A pesquisa Vigitel 2019, divulgada em maio, apontou que 20,3% dos brasileiros estavam obesos no ano passado, contra 11,8% em 2006. Que fatores provocam a alta da obesidade no país e qual é a consequência disso?
A alta da obesidade se explica pela má qualidade da alimentação. Estamos comendo muito sal, muito açúcar, gorduras saturadas, e não temos políticas preventivas. Só agora a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] aprovou a rotulagem frontal dos alimentos, uma medida básica para a informação do consumidor sobre os teores de açúcar, sódio e gorduras saturadas. Mesmo assim, a implantação foi postergada por dois anos.
Na saída da pandemia, a obesidade deverá ser maior que esses 20% de 2019. É difícil dar um número, mas a tendência é aumentar drasticamente pelo consumo de produtos ultraprocessados e processados durante a pandemia.
Qual foi o impacto do auxílio emergencial na fome e na alimentação dos brasileiros? E o que deve ocorrer em 2021, com o fim desse programa?
O auxílio emergencial chegou em momento crucial e evitou que a fome aumentasse rapidamente. Mas agora houve corte no auxílio [de 600 reais para 300 reais] e a possibilidade de extingui-lo até o final do ano. Se cortar o auxílio emergencial, milhões de brasileiros que foram beneficiados por ele terão que reduzir a qualidade de suas dietas, quando não passarem fome e dependerem de caridade.
Olhando a possibilidade de uma segunda onda [de covid-19], pela qual estão passando os países europeus, significa que a pandemia vai se estender por mais tempo. Se ao longo de 2021 não houver outra medida como o auxílio emergencial, podemos aumentar muito rapidamente o número de pessoas famintas.
O governo e o Congresso discutem criar um novo programa social para substituir o Bolsa Família, com valor maior e critérios diferentes de concessão. É necessário reformar o Bolsa Família?
Está na hora de aperfeiçoar o Bolsa Família, sim. Foi um programa iniciado no governo Lula a partir da fusão do Cartão Alimentação, do Bolsa Escola e outros programas de transferência de renda menores existentes na época. A partir daí, ele se aperfeiçoou muito, principalmente com o Cadastro Único, que foi aprimorado.
Em função da pandemia e do tempo que vai demorar a recuperar os níveis de emprego, temos que pensar em um programa de renda básica, tipo imposto de renda negativo. Aperfeiçoar o Cadastro Único, aumentar o valor da transferência do Bolsa Família e ampliar os critérios do benefício são [medidas] fundamentais para enfrentar a situação pós-pandemia.
Como o sr. avalia o panorama atual das políticas de segurança alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar?
As políticas de segurança alimentar e nutricional estão sendo desmontadas. O Programa de Aquisição de Alimentos [que compra alimentos da agricultura familiar e os distribui para pessoas em situação de insegurança alimentar e à rede pública de ensino] teve seu orçamento cortado e ficou à míngua neste ano. A projeção para o ano que vem no Orçamento é mínima, não dá para nada o dinheiro disponível.
Além disso, estão sucateando a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento, empresa pública que, entre outras funções, estoca e distribui alimentos] para privatizá-la. A Conab é o braço operador do Programa de Aquisição de Alimentos, sem Conab não tem o programa, a menos que se repasse isso para os Estados.
O símbolo desse desmonte é o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, extinto em 2019 pelo governo federal]. É importante reunir o setor privado e o setor social em torno da política de combate à fome, junto com o governo. Não são os governos que acabam com a fome, são as sociedades que decidem acabar com a fome. Precisa ter um lugar para organizar, combinar o jogo, e esse lugar era o Consea.
O Programa Mundial de Alimentos ganhou o Nobel da Paz neste ano. Na sua gestão como diretor-geral da FAO, como foi a relação com o programa?
A relação da FAO com o Programa Mundial de Alimentos melhorou muito, principalmente nos últimos anos com o David Beasley [atual diretor executivo do programa]. Viajamos juntos para vários países, como o Sudão do Sul, vendo o trabalho das nossas equipes. Quando a gente dá esse sinal desde cima, a colaboração entre as organizações melhora.
O Programa Mundial de Alimentos promoveu uma grande mudança nos últimos anos e se converteu em um dos grandes promotores da aquisição de alimentos da agricultura familiar. Ele hoje não vive só dos estoques excedentes de commodities americanos, ele compra muito produto localmente e principalmente da agricultura familiar, e comprou do Brasil durante anos.
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"Pandemia deve elevar tanto a fome como a obesidade entre brasileiros" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU