01 Outubro 2020
Eficácia de controle da pandemia é colocada à prova; Brasil ainda não rastreia contatos como deveria, dizem especialistas.
A reportagem é de Giovanna Galvani, publicada por Carta Capital, 30-09-2020.
A preocupação com uma segunda onda da pandemia cresce na Europa – mesmo sem definição clara sobre o que define o final de uma onda de contágio e o começo de outra. Nesta semana, a região registrou aumento de 20% nos casos em relação ao mesmo período anterior. O número de óbitos cresceu em 28%.
“Mais do que uma definição específica, a ideia é um pouco mais subjetiva. Basicamente, o que as pessoas normalmente consideram uma nova onda é quando, depois de uma queda expressiva do número de casos, você volta a subir; ou depois de ter um episódio de surto epidêmico controlado, ele volta a se descontrolar em uma região geográfica específica”, explica o médico do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da FMUSP, Márcio Bittencourt.
Na Ásia, onde menos de 100 mortes eram registradas por dia até meados de abril, o aumento continua desde então. Desde 20 de julho, a região ultrapassa mil mortes quase todos os dias, e está perto de 1.500, principalmente devido à situação na Índia.
Em todo mundo, a curva está em um “platô” desde o início de junho, com cerca de 5 mil mortes por dia.
O Oriente Médio experimentou um pico de mortes durante o verão (boreal) e, em seguida, um ligeiro declínio. Mas a situação piorou e, na semana passada, ocorreram em média 330 mortes por dia, 18% a mais que na anterior.
No continente africano, oficialmente o menos afetado pela pandemia, há cada vez menos mortes desde agosto. Na Oceania, onde o número de mortes por dia nunca ultrapassou a média de 20 pessoas, agora registra menos que 10 e não hesita em tomar medidas rápidas para evitar um surto, como exemplificado pelo governo da Nova Zelândia.
Para Bittencourt, a depender da estratégia utilizada na flexibilização da quarentena e na retomada das atividades econômicas e de fins sociais, como a volta às aulas, era “esperado” que houvesse um novo aumento brusco no número de casos. A experiência, porém, não pode ser uniformizada como inevitável, opina.
“Não estou dizendo que não era para reabrir, mas existem formas – e a estratégia escolhida tornou provável que isso acontecesse. Para reabrir com risco menor, é necessário um baixo número de casos, uma estratégia de distanciamento persistente, isolamento de casos, quarentena de contato e medidas de bloqueio físico e químico – usar máscaras, álcool gel e lavar a mão. O lockdown é um pedaço da estratégia, não é nem o principal. A estratégia é ampla.”, diz.
Como exemplo, Alemanha e Portugal aparecem como países que observam um número de casos maior do que nas últimas semanas, mas sem os mesmos índices explosivos de seus vizinhos europeus Espanha e França.
“Portugal vive uma espécie de segunda onda mas mesmo a primeira foi razoavelmente leve. No caso da Alemanha houve um momento inicial grave, que levou a um quase lockdown do país. Esse momento foi rapidamente superado e desde maio Alemanha vive um regime de baixo número de casos. Há um segunda onda, mas não uma explosão desenfreada de casos”, analisa o físico Roberto Andre Kraenkel, participante do grupo Observatório da Covid-19.
O caso alemão chama a atenção de Krankel pela estratégia que combinou distanciamento e mapeamento da cadeia de contágio, apesar da discrepância entre um país rico como a Alemanha e o Brasil em relação ao amparo financeiro a pessoas e negócios.
“A essência do processo foi: lockdown forte até que o número de casos seja baixo, reabertura planejada das atividades e monitoramento de casos. A prioridade atual, em face de uma elevação de casos, é a manutenção da abertura de escola e comércio”, diz Kraenkel.
A marca um milhão de mortos em decorrência da Covid-19 em todo o mundo, alcançado nesta semana, jogou luz sobre cenários diversificados da pandemia.
O topo da lista de mortes é liderado por Estados Unidos, Brasil e Índia, enquanto o de casos confirmados tem uma inversão apenas no segundo e terceiro lugar.
Na segunda-feira 27, a Índia ultrapassou os seis milhões de casos oficialmente registrados de coronavírus. O país é dos que mais preocupam os especialistas, devido à sua grande população – 1,3 bilhão de pessoas – e ao fato de possuir algumas das cidades mais densamente povoadas do mundo, com um sistema de saúde frágil.
A Índia registra oficialmente entre 80 e 90 mil casos novos todos os dias, o maior balanço no mundo há várias semanas.
Em termos de mortes, o país tem uma taxa muito menor do que outros países e registra oficialmente quase 100 mil óbitos desde o início da pandemia.
Os Estados Unidos, com cerca de um quarto de sua população, tem 205 mil, e o Brasil mais de 140 mil.
Com 142.921 mortes e 4.777.522 casos confirmados até a noite da terça-feira 29, o Brasil caminha em passos lentos a uma queda no número diário de novas vítimas da doença.
A explicação não se dá por conta de “ondas”, mas sim de um “platô eterno”, explica Márcio Bittencourt, que se associa à falha do País de controlar a circulação do vírus desde o início.
“Quem faz com que o coronavírus circule são as pessoas que tem o vírus se encontrando com outras pessoas. Se os casos da Covid-19 ativos ficarem isolados das outras pessoas, a doença vai acabando, porque não tem como transmitir. A estratégia principal é pegar todo mundo que tem sintomas e isolar sozinho, ou o máximo sozinho possível, e isolar todo mundo com quem a pessoa entrou em contato na semana anterior.”, diz.
A estratégia foi repetida por especialistas em diversas oportunidades ainda em março, quando o vírus começou a se espalhar pelo País.
O motivo de um isolamento longo, desgastante e ineficaz como o brasileiro se dá, na visão de Roberto Kraenkel, à incapacidade de fazer um rastreamento efetivo e de planejar com embasamento os próximos passos.
“Nenhum governo estadual teve, seja os meios, seja a vontade, de tomar as medidas necessárias para evitar as mortes que tivemos. Não se organizou, sobretudo, a reabertura do comércio e negócios em geral de forma segura. Não temos rastreio de contatos de forma efetiva em nenhum estado. Sem isso, estamos de mãos atadas, pois não interrompemos as cadeias de contágios”, diz.
“Encontramo-nos em uma situação de um longo desgaste econômico e social, para não falar psíquico, que não é sustentável no longo prazo. Um exemplo é a questão da reabertura das escolas. Não importa se agora ou em um mês adiante, o fato é que não podemos pensar em passar o ano de 2021 com as escolas fechadas. Mas, por outro lado, não construímos um situação de saúde pública que possa garantir a segurança de professores, alunos e funcionários.”, afirma Kraenkel.
Em relação ao País se preocupar com a segunda onda na Europa e em possíveis medidas de bloqueio a voos, Márcio Bittencourt afirma que, no momento, é mais perigoso circular nas ruas brasileiras do que temer que o vírus venha de fora. O Brasil permanece como um lugar a ser evitado.
“A chance de pegar de um cara que embarcou de lá [Europa] para cá é muito menor do que você encontrar alguém doente na rua. Se tem algum voo que pode trazer a doença, ele é de algum lugar do Brasil. A gente ainda um dos grandes epicentros para onde as pessoas não deveriam vir e circular”.
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Covid-19: Após ultrapassar um milhão de mortes, mundo se preocupa com segunda onda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU