21 Setembro 2020
“Os super-ricos doam bilhões de libras todos os anos para os pobres. Mas o vínculo de respeito mútuo entre doador e receptor foi perdido. O autor de um novo livro argumenta que a filantropia sem parceria diminui tanto o doador quanto o receptor”, escreve Paul Vallely, jornalista e escritor sobre religião, ética e desenvolvimento internacional, em artigo publicado por The Tablet, 17-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A caridade cristã é mais do que simples filantropia, disse o papa Francisco em um discurso no Angelus, no mês passado, como um prelúdio para dizer que a caridade cristã envolve “olhar para os outros com os olhos do próprio Jesus” - e, ao mesmo tempo, “ver Jesus no rosto dos pobres”. Mas o que o Papa quis dizer com “simples filantropia”?
Na verdade, não há nada de “simples” nisso. Hoje, a filantropia é comumente considerada como o ato de uma pessoa rica que repassa uma grande quantia de dinheiro para uma boa causa. Mas, nos últimos dois mil anos, ou mais, tem sido, de várias maneiras, uma questão de honra, uma obrigação religiosa, um mecanismo de controle político, um veículo para ativismo moral, uma expressão de um iluminado autointeresse, uma manifestação de bem público, de realização pessoal e de manipulação plutocrática.
Entre os gregos antigos, que cunharam a palavra como um composto de duas raízes – philos, que significava algo querido, e ánthropos, um ser humano – a filantropia era vista principalmente como um dispositivo para fortalecer as relações sociais. Os romanos viam isso em parte como um investimento político para comprar o favor do povo. Aqueles que doaram dinheiro – para templos, banheiros públicos, estradas ou aquedutos – muitas vezes ergueram uma pedra com a inscrição DSPF ou De Sua Pecunia Fecit, que significa “Feito com Seu Próprio Dinheiro”. Pensadores mais elevados, como Aristóteles, insistiam que seu propósito era melhorar o caráter moral do doador, embora ele sugerisse que também deveria levar em consideração as necessidades de quem o recebia.
O que mudou o modelo greco-romano foi a chegada do monoteísmo. O judaísmo constituiu uma democratização radical das culturas da antiguidade. Isso foi resumido no primeiro livro da Bíblia Hebraica, onde Adão e Eva, todo homem e toda mulher, são vistos como criados à imagem de Deus. Doar não era mais simplesmente sobre relações sociais, mas era um eco humano da generosidade de Deus para com a humanidade. Doar é imitar a Deus. Talvez não seja coincidência que, ao longo da história da filantropia, os judeus tenham sido doadores consistentemente generosos.
O cristianismo formou sua herança filantrópica a partir da fusão do pensamento dos gregos, romanos e judeus. Para os cristãos, doar tornou-se vinculado à ideia de que ajudar os necessitados era ajudar o próprio Cristo: “O que fazes ao menor destes, fazes a mim”. Essa perspectiva cristológica era central para a compreensão medieval do que era ser católico. A Igreja primitiva insistia que aqueles que possuem riqueza também adquirem o dever de usá-la para o benefício de outros. Influências sociais e teológicas foram exercidas sobre isso, visto que a maioria dos primeiros cristãos era das camadas mais baixas da sociedade. A comunidade comia junto em refeições compartilhadas e mantinha seus recursos em um fundo comum, enquanto esperavam pelo retorno de Cristo, que eles presumiam ser iminente. O contexto comunitário herdado do judaísmo foi intensificado.
O status dos pobres também foi transformado. Em Roma, os pobres eram um grupo a ser explorado e aplacado. Os judeus os viam como infelizes que precisavam de ajuda. Mas os cristãos viam os pobres como um reflexo da encarnação de Deus. Os primeiros Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, começaram a falar dos “pobres piedosos e dos ricos ímpios”. Os bispos se tornaram os filantropos oficiais da Igreja, responsáveis por institucionalizar o sistema cristão de esmola. Foi uma inovação contracultural que quebrou o vínculo grego e romano entre doação e patrocínio.
Um dos grandes exemplos desse novo estilo de bispo, Basílio de Cesareia, insistia que doar não era mais apenas uma questão de honra, status, dever cívico ou emulação da generosidade de Deus. Era uma questão de justiça. A ação de dar esmola, como decretou Ambrósio, o bispo de Milão do século IV, poderia ser redentora. Tudo isso foi para lançar as bases para um milênio de caridade católica.
A filosofia da filantropia se desenvolveu ao longo do período entre os séculos V e XV. A economia prosperou e, no renascimento do século XII, os pensadores tiveram que encontrar maneiras de reconciliar a simplicidade radical do cristianismo primitivo com uma economia social e política em rápida mudança.
Muitas das questões que levantaram ainda estão em curso nos debates sobre filantropia hoje. Por volta de 1140, Graciano, um monge de Bolonha, criou uma grande sistematização da herança cristã. Reuniu os ensinamentos de Clemente, Basílio, Ambrósio e outros padres da Igreja com os cânones dos grandes concílios da Igreja e os decretos papais. Isso foi significativo para a história da filantropia de duas maneiras. Em primeiro lugar, lançou as bases para a distinção entre os pobres que mereciam e os que não mereciam, o que se tornaria um tema importante na história da filantropia. E em segundo lugar, desenvolveu o que os teólogos medievais chamavam de doutrina do Corpo Místico de Cristo, que sustentava que todos os crentes – ricos ou pobres – estavam conectados de alguma forma cósmica a Deus e uns aos outros em um corpo espiritual com Cristo em sua cabeça.
Isso significava que, apesar de todas as faltas materiais óbvias da sociedade feudal para as pessoas comuns, doar não era simplesmente doar dinheiro ou bens materiais dos ricos para os pobres. Reforçou uma relação entre doador e receptor que era espiritual, recíproca, comunitária e inclusiva. A caridade não ajudava simplesmente o doador a alcançar a salvação pessoal; também alimentou a harmonia social, a coesão social, a paz e a ordem.
O Islã e o Judaísmo nesse período chegaram perto dessa mesma percepção. Pensadores muçulmanos declararam que “generosidade não é apenas dar dinheiro em excesso, mas dividir com os pobres”. O grande pensador judeu medieval, Maimônides, criou uma hierarquia dos Oito Níveis de Doação, o mais alto era ajudar os outros a alcançar a autossuficiência, criando da mesma forma uma relação entre aqueles que dão e aqueles que recebem, de uma forma que constrói a autoestima dos marginalizados. Para os cristãos, a viúva era vista como “o altar de Deus”. Havia nessa tradição medieval uma valorização de relações mutuamente respeitosas. Estabeleceu-se uma intimidade entre doador e receptor que se perdeu em grande parte da filantropia hoje.
Em meu livro Philanthropy: From Aristotle to Zuckerberg, traço o desenvolvimento de duas tradições paralelas de doação. Uma centra-se na filantropia como um mecanismo de controle. Esse fio condutor vai desde o patrocínio romano, passando pelas Leis dos Pobres (na Inglaterra, também conhecidas como Leis Elisabetanas) e pela moralização caritativa da era vitoriana, até emergir hoje no "filantrocapitalismo" em que os super-ricos querem impor negócios orientados com soluções de cima para baixo, sobre o que eles veem ser problemas sociais.
A outra tradição surge do senso de comunidade monoteísta hebraico e passa pela caridade cristã medieval, o altruísmo iluminista, os filantropos agitadores como William Wilberforce e pelos idealistas Quakers, como George Cadbury e Joseph Rowntree, que insistiam que seus métodos de negócios deveriam ser modificados pela filantropia, e não o contrário. Hoje, isso surge com os filantropos modernos que buscam parcerias genuínas com aqueles a quem doam.
Essas duas tradições, eram supostamente separadas em dois caminhos no século XVI. Praticamente todas as principais histórias da filantropia, até agora, repetiram acriticamente a virada com a qual os propagandistas protestantes procuraram traduzir mil anos de filantropia cristã – alegando que a caridade medieval era aleatória e egoísta porque os católicos só davam aos pobres para se aliviarem na hora do purgatório. Tudo mudou com a Reforma, pois fez com que a filantropia se tornasse eficiente, científica e moderna, afirmam eles.
Isso não é verdade. A esmola redentora – a ideia de que doar pode eliminar o pecado – que entrou no pensamento judaico por volta do século II d.C. e é evidente na teologia cristã a partir do século quarto em diante, não era uma corrupção católica inspirada no purgatório medieval, como afirmavam os reformadores protestantes. Na verdade, os teólogos medievais insistiam que esmola não era uma forma de comprar a salvação barata, mas sim, seguindo Aristóteles, uma forma de transformar o próprio caráter do pecador.
Talvez mais significativamente, mostro que a grande mudança no modelo de doação veio cem anos antes da Reforma, desencadeada pelas mudanças sociais e econômicas que se seguiram à Peste Negra. Muitas das reformas pelas quais os leigos assumiram o controle da caridade do clero estavam em vigor em cidades europeias muito antes de Martinho Lutero afixar suas teses na porta da Igreja do Castelo em Wittenberg – e continuaram rapidamente em cidades católicas e protestantes nas décadas que se seguiram. Foi o mercantilismo, a urbanização e as primeiras agitações do capitalismo – o qual fomentou a ideia de que as pessoas eram ricas ou pobres porque mereciam ser – que começaram a mudar decisivamente as atitudes dos ricos em relação aos pobres. E esta, posteriormente, levou ao desenvolvimento de uma relação enviesada entre o doador e o receptor em uma filantropia anglo-saxônica.
A filantropia precisa redescobrir o vínculo espiritual entre doador e receptor, que caracterizou mil anos de caridade medieval – e tratar os pobres não apenas com maior respeito, mas como parceiros e agentes de seu próprio destino. Filantropocapitalistas, como Bill Gates, educados na necessidade de hipereficiência, proclamam com orgulho sua doação como “filantropia estratégica”. Mas isso precisa ser casado com o que chamo de “filantropia recíproca”, se o Grande Doador quiser fazer sua parte na formação de nosso mundo pós-pandêmico.
O papa Francisco diz algo semelhante na Evangelii Gaudium, quando fala da necessidade de afirmarmos os valores humanos perante um sistema de mercado que se tornou uma “economia de exclusão e desigualdade”. Para ele – como para o papa João Paulo II, quando fala de solidariedade (em Sollicitudo rei socialis) ou Bento XVI quando afirma que “o amor será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa” (em Deus caritas est) – a filantropia deve ser uma força humanizadora, na qual o doador reconhece a humanidade plena do destinatário de uma forma que nem a burocracia impessoal do Estado nem a eficiência implacável do mercado podem fazer.
Ao dar a um mendigo, o papa Francisco disse certa vez a uma revista de moradores de rua Milão: “Não é bom apenas jogar algumas moedas” sem nem mesmo olhar para a pessoa. “O gesto é importante... olhá-los nos olhos e tocar suas mãos. Jogar o dinheiro sem olhar nos olhos não é o gesto de um cristão. Caridade não é descarregar o próprio sentimento de culpa, mas é comovente, olhar para a nossa pobreza interior”. O Papa está usando aqui uma linguagem religiosa para expressar o mesmo que foi incorporado por uma linguagem secular mais inclusiva na filantropia recíproca – o entendimento de que todo presente deve unir o doador e o destinatário em um relacionamento que também envolve toda a comunidade.
Em outro momento, Francisco demonstrou que entende muito bem que não há nada de simples na filantropia. Ao lançar uma conferência do Vaticano intitulada “Investir para os pobres” em 2014, o Papa disse que a ideia de que filantropos e fundações de caridade podem investir em um projeto que faz bem para a sociedade e também lhes traz lucro “reconhece a conexão final entre lucro e solidariedade, o círculo virtuoso que existe entre o lucro e a doação”.
E acrescenta: “Os cristãos são chamados a redescobrir, experimentar e anunciar a todos esta preciosa e primordial unidade entre o lucro e a solidariedade”. Por meio do investimento social, os católicos podem ajudar a promover o desenvolvimento econômico e social necessário para satisfazer as necessidades básicas da agricultura, o acesso à água potável, a habitação, os cuidados de saúde primários e os serviços educacionais. Os investimentos de impacto social por parte de instituições católicas agora somam cerca de 1 bilhão de dólares. É um exemplo clássico de como a filantropia estratégica e recíproca podem se casar para tornar o mundo um lugar melhor.
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Filantropia – significa apenas “doar”? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU