09 Setembro 2020
"Talvez esse momento seja propício para revisitarmos o ensino de João Paulo II sobre o pecado social, tanto pela esperança que inspira quanto por seu reconhecimento franco dos desafios que enfrentamos. Para contar essa história, precisamos começar pelos anos 80", escreve Rita Ferrone, autora de vários livros sobre liturgia, incluindo “Liturgy: Sacrosanctum Concilium” (Paulist Press), em artigo publicado por Crux, 05-09-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na esteira do assassinato de George Floyd, os protestos nos Estados Unidos e em todo o mundo se concentraram no racismo, pedindo um ajuste de contas não só com sua morte, mas também com uma injustiça sistêmica.
Há uma sensação de déjà vu no que aconteceu. Muitos lembraram a morte de Eric Garner ou o espancamento de Rodney King, ou ainda a indignação e os protestos que estes provocaram. Outros recordaram os levantes da década de 1960. A questão não se resume ao policiamento.
Uma série de crimes contra os negros nos EUA perpassa a história: desde a escravidão ao linchamento ou outros homicídios; desde o preconceito ao desprezo e exclusão aos bens produzidos em sociedade. Com a morte de George Floyd, a raiva veio à tona novamente. Algo mudará dessa vez?
Talvez esse momento seja propício para revisitarmos o ensino de João Paulo II sobre o pecado social, tanto pela esperança que inspira quanto por seu reconhecimento franco dos desafios que enfrentamos. Para contar essa história, precisamos começar pelos anos 80.
O tema do Sínodo dos Bispos de 1983 foi “reconciliação”, e João Paulo II quis falar da penitência. No entanto, os bispos – em especial, os bispos dos países de terceiro mundo – tinham algo mais em mente.
Eles queriam falar do pecado social, das estruturas de pecado e das formas sistêmicas de opressão que amplificam e perpetuam as situações pecaminosas. Reconciliação não tem a ver somente com a confissão das falhas pessoais e da busca do perdão; uma conversão requer um compromisso com uma a transformação social.
Antimarxista como sempre, João Paulo II resistia falar do pecado em termos suprapessoais. Em lugar de inclinar-se ao problema das estruturas, ele se voltava ao tema da responsabilidade pessoal.
João Paulo atenuou a força do conceito de pecado social alegando que todo pecado é, de certa forma, social.
Defensor ferrenho da prática da confissão individual como essencial para o sacramento da penitência, o papa também suprimiu com eficácia o rito comunitário de reconciliação com absolvição absoluta – uma das poucas reformas do sacramento depois do Vaticano II que crescia em popularidade.
Poder-se-ia concluir, portanto, que João Paulo II venceu aqueles que buscavam desenvolver o ensino católico sobre a reconciliação para incluir o pecado social e a responsabilidade comunitária.
As estruturas do mal são expressões formidáveis do “mistério do pecado”.
Mas este não foi o resultado final do debate.
Pressionado a explicar do que os bispos estavam falando no sínodo, João Paulo II pôs o pecado social no radar de muitos católicos com sua exortação pós-sinodal, Reconciliatio et Paenitentia.
Aí, definiu o pecado social como “a acumulação de muitos pecados pessoais”. Reconheceu a existência das estruturas de pecado – assunto ao qual voltaria em ensinos posteriores –, mesmo insistindo na responsabilidade pessoal.
Para João Paulo II, as estruturas do mal são expressões formidáveis do “mistério do pecado”, ao qual a nossa fé fornece uma resposta definitiva e libertadora.
Nessa exortação, ele define sete modos pelos quais as pessoas contribuem para com o pecado social, comportamentos que vemos em muitos casos, desde o racismo ao aborto, da degradação ecológica ao abuso sexual.
O primeiro é provocar o mal, o segundo é explorá-lo. O dono de uma fábrica em condições precárias de trabalho prejudica os seus funcionários, e aqueles que lucram vendendo bens baratos que ele produz, exploram a disponibilidade destes produtos.
O terceiro nomeia “quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, ou eliminar, ou pelo menos limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência”.
Pensemos nos que viram a cena da morte de Floyd e que nada fizeram para impedir o seu assassinato, ou a “parede azul de silêncio” que encobre a violência letal contra os negros.
O quarto consiste na cumplicidade disfarçada. Não precisamos marchar nas ruas entoando “judeus não vão nos substituir” para contribuir com teorias da conspiração e apoiar uma política divisionista.
O quinto é a indiferença, capturada tão bem no logotipo de uma jaqueta que Melania Trump usou quando viajou para a fronteira com o México durante o pico da crise em torno da separação das famílias: “I really don’t care, do u?” (Eu realmente não me importo. Você se importa?).
O sexto nomeia “quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo”, transformando o cinismo numa zona de conforto.
O sétimo identifica os “quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior”.
Basta lembrarmos o modo como Mark Zuckerberg invocou a liberdade de expressão, quando confrontado com o papel do Facebook na disseminação de informações falsas, para termos um exemplo. João Paulo II tentou mostrar que o pecado social se perpetua via atos humanos.
Para João Paulo II, uma conscientização do pecado social convida, a cada um de nós, a investirmos pessoalmente no trabalho de desmantelamento das estruturas de pecado a fim de construir uma civilização do amor.
Uma das principais características do pecado social é que ele projeta a sua própria inevitabilidade. Parece não haver saída. Mas o lado positivo do ensino sobre o pecado social articulado por João Paulo II é que há uma saída: a solidariedade.
A solidariedade, como explicou em 1987, na encíclica Sollicitudo Rei Socialis, “não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”.
Frequentemente, as pessoas sentem-se impotentes para transformar as situações que dão origem ao mal societal contínuo.
No entanto, jamais devemos perder as esperanças. O ensino de João Paulo II nos lembra que podemos fazer algo construtivo juntos; não somos meros joguetes da história, condenados a papéis perpétuos de opressores e oprimidos.
Como sustentou em 1999, “Existe uma tremenda força de atração do mal que faz julgar ‘normais’ e ‘inevitáveis’ muitas atitudes. (…) Muitas pessoas percebem a impotência e a desorientação diante de uma situação esmagadora que parece sem solução. Mas o anúncio da vitória de Cristo sobre o mal dá-nos a certeza de que também as estruturas mais consolidadas do mal podem ser vencidas e substituídas por ‘estruturas de bem’” (AUDIÊNCIA Quarta-feira 25 de agosto de 1999).
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Algo mudará dessa vez? O convite de João Paulo II a resistir ao desespero e abraçar a solidariedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU