17 Setembro 2020
"Adotar uma linguagem sacramental da fraternidade é formativo e performativo, leva a modificar à nossa práxis e nos induz à conversão evangélica. O irmão não é um perigo, uma ameaça ou, então, mais um. Ele é único e a sua unicidade me faz ver a Deus", escreve Luis Felipe C. Marques, franciscano conventual e doutorando em Teologia Sacramental no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma.
Na expectativa de receber uma nova encíclica do papa Francisco muitas reflexões têm sido abertas. Se prevê que a partir de uma série de catequeses que o papa tem feito sobre o mundo pós-covid, essa nova encíclica apresentará aspectos sociais e econômicos que serão necessários para a organização de um mundo gravemente enfermo. A crise que estamos vivendo representa a máxima exposição das nossas vulnerabilidades e não podemos sair dela iguais, sairemos melhores ou piores, repete sempre Francisco.
Nessa breve reflexão, que merece um posterior aprofundamento, gostaria de sinalizar a perspectiva sacramental da fraternidade. Não temos mais tempo para a interpretação, estamos expostos, é preciso atuar para que a fraternidade represente um máximo que supere todo o mínimo suficiente das nossas opções medíocres.
Todos irmãos! Estamos diante de um fato que não pode ser minimizado pela retórica evangélica, franciscana, ecumênica, hospitaleira e magisterial. Se o irmão é um dom, um presente de Deus, um presente inesperado, não uma conquista pessoal, mas uma revelação do Senhor, como reflete fortemente um outro Francisco, o de Assis, podemos dizer que a fraternidade é um sacramento, sendo um pouco mais direto, o irmão é um sacramento. E o é justamente pelo fato de que o irmão, bom ou ruim, cumpre sempre uma missão que poderia ser dita sacramental, ou melhor, manifesta a presença de Deus, tem a função revelativa de uma epifania, ao ponto de que no irmão, pode-se adorar e contemplar a própria presença real e atuante de Cristo.
Como já sabemos, uma das principais situações que deixou o nosso mundo doente em todas as suas dimensões é o excesso de materialismo, resultado de fundamentalismos e de visões medíocres da realidade. Certamente, não tanto pelo valor que damos ao dinheiro ou às coisas, nem mesmo por termos buscado o coerente fundamento originário de todas as coisas e as suas perspectivas, mas porque continuamente somos convidados a pensar que as coisas sejam exatamente aquilo que parecem ser e nada mais. A partir dessa forma de ver as coisas e as pessoas, nos tornamos consumidores sempre mais esfomeados das coisas e das pessoas, pois tudo se transformou em objeto de uso e abuso sem escrúpulos (cf. LS 215).
Assim, fomos esquecendo do valor simbólico das coisas e das pessoas tornando a existência fundamentalista, pesada, ilusória, sem vida e sem sentido, sem mística e sem mistério, sem contemplação e sem futuro. Adoecemos e enlouquecemos. Estamos sempre mais depressivos e ansiosos. Corremos e quase nada alcançamos. Vivemos mas, na verdade, estamos morrendo. Com isso, abandonamos em nome da matéria e do material toda a construção simbólica que nos inspira aos recomeços, à permanência e à continuidade.
Nessa perspectiva, para curar o nosso mundo enfermo, temos que saber que nada daquilo que vemos é simplesmente aquilo que é. Nem as coisas, nem as pessoas, nem os gestos, nem as opções, nem as palavras. De fato, é aqui que está o ponto que ainda temos muito a refletir. Todavia, para quem faz um caminho de fé, cada coisa, pessoa, palavra, opção, o bem como o mal, deveria ser visto como um sacramento da presença da voz de Deus. Por sinal, Deus não somente falou (fala) por palavras e nas pessoas, na Igreja e na comunidade, no mundo e na sociedade, mas gritou (grita) no meio do caos e parece que ninguém ouviu: somos todos irmãos!
Sem dúvidas, não é simples e nem fácil descobrir que coisa Deus diz e como diz, mas somos conscientes de que nunca parou de falar e que, por causa da encarnação, continua a falar (gritar) todos os dias através de corpos, histórias, opções, memórias e pessoas que representam sempre o máximo necessário e nos convidam a renunciar ao mínimo suficiente com discernimento, maturidade, inteligência e sensibilidade.
Diante desse aspecto, retomando nosso objetivo, a perspectiva sacramental da relação fraterna, em primeiro lugar, talvez seja necessário entender o que estamos dizendo quando falamos sacramento. Imediatamente quando ouvimos a palavra “sacramento” – sendo está uma precisão por demais terminológica – vem à nossa mente a quantidade sete. Os sacramentos são sete, nem mais nem menos, como precisava o Tridentino. De tal modo, temos uma automática redução do sacramento como ato pontual e material. Reduzimos o sacramento a uma matéria, uma fórmula, um dia, uma festa, um momento, um tempo e um espaço.
É evidente que os sacramentos têm um aspecto pontual, mas o dado sacramental não pode nunca ser um dado pontual, mas um modo de estar, um estilo, uma atitude, uma opção de existência que dura todo o percurso da vida, sobretudo, a cristã e toca em todos os seus aspectos.
Aqui um exemplo pode nos servir de ponto-chave. Hoje com uma certa frequência escutamos que os cristãos católicos devem viver de modo eucarístico, porém corremos um risco de não compreender qual o profundo significado dessa dinâmica. Não somente devemos ser convidados a ser eucarísticos, mas plenamente eucaristizados e transformados naquilo que recebemos. Se não nos tornamos o que recebemos, continuaremos a nos empanturramos na mesa do Senhor, enquanto muitos, nela, nem se quer podem passar por perto. Não somos todos irmãos? Por que uns comem demasiadamente e outros nem se quer passam perto? Acho que estamos diante da mesma questão de I Coríntios 11.
Nesse contexto, a dinâmica sacramental do ser eucaristizado não toca tanto a quantidade de vezes que eu recebo ou não o corpo do Senhor ou com que devoção e dignidade me aproximo do sacramento do altar, mas quer dizer que a lógica sacramental, o paradigma, deveria ser o modo como eu me movimento na vida em respeito a todas as coisas, não somente a uma ou outra, não somente dentro de um espaço e um tempo. Desse modo, o ser eucaristizado é o ato de se apropriar conformemente do Senhor ressuscitado que nos toca nos sinais da sua presença e da sua morte.
Por conseguinte, é importante clarificar que na eucaristia não estamos somente na presença de sinais e símbolos que nos remetem à presença do Senhor ou nos faz pensar, contemplar e adorar essa presença; na Eucaristia estamos na presença daquele que nos fala e nos toca de forma inteligente nos sinais da sua presença e da sua morte.
Por isso, a partir da dinâmica simbólica, a lógica sacramental cristã diz que tudo é sacramental e que no sacramento, em certo modo, ao mesmo tempo, dá-se a realidade a que envia. Este é o fato fundamental da encarnação, ou seja, Deus se fez homem em Jesus Cristo, assim em Jesus Cristo, todos aqueles que o encontraram, os seus contemporâneos, aqueles que o viram, os evangelhos que o testemunham, eram levados a ver à Deus. Aqui podemos recordar as vezes que os discípulos pediam, mostra-nos o Pai e Jesus respondia: quem me vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Jesus não é uma outra coisa. Ele não é somente um profeta que envia a Deus, como Isaías, Jeremias e tantos outros, maiores ou menores, mas é um sacramento de Deus, isto é, revela a Deus e contemporaneamente manifesta a sua presença viva, atuante e real.
Nessa perspectiva, diante da sempre constante e da futura memória, “todos irmãos”, somos convidados a ver que o irmão, seja ele quem for, é sacramento porque revela Cristo Deus e contemporaneamente manifesta a sua presença viva, atuante e real. O irmão é sacramento porque é terra sagrada onde devo entrar com os pés descalços. O irmão é sacramento porque me dá a possibilidade de arrancar-me de mim mesmo e da minha necessidade materialista, fundamentalista e individualista de consumir. Enfim, o irmão é sacramento quando não faço dele meu objeto de manipulação e de posse.
Isso tudo apresenta-se com uma exigente capacidade de silêncio, devoção, contemplação e reverência. Adotar uma linguagem sacramental da fraternidade é formativo e performativo, leva a modificar à nossa práxis e nos induz à conversão evangélica. O irmão não é um perigo, uma ameaça ou, então, mais um. Ele é único e a sua unicidade me faz ver a Deus. A sua unicidade deve estabelecer em mim um respeito integral pelas suas iniciativas e opções, sem a necessidade de que elas sejam explicadas, pois a necessidade de explicar tudo faz com que o mistério do outro seja perdido e não venha respeitado na sua tão sublime dignidade.
Por fim, se os sacramentos são propriamente ordenados para significar a nossa santificação, como afirma o Aquino, o irmão está ali para instaurar comigo essa nova dinâmica da vida do reino. Reconhecer que somos tomos irmãos é como abrir um leque de possibilidades sacramentais, tais como, a graça de saber recomeçar (iniciar), curar e servir, diante do nosso mundo enfermo.
Sendo assim, uma apresentação da fraternidade como sacramento coloca em relevo as virtudes da esperança, da contemplação e da vigilância, da gratidão, da generosidade, da gratuidade, da liberdade interior e da tolerância, da misericórdia e da ternura materna, da pobreza e da serenidade, da cura e do serviço e toda a nossa vida já fica ordenada para atuação daquele momento em que “Cristo será tudo em todos” (1Cor 15,28).
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A fraternidade como sacramento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU