14 Setembro 2020
Uma suspeita de longa data em relação à linguagem inclusiva pode estar aniquilando a mensagem da Igreja.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 11-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Relatei na semana passada que um bispo italiano havia deixado escapar um tanto casualmente em uma coletiva de imprensa alguns dias antes que o Papa Francisco estava prestes a publicar uma nova encíclica sobre a fraternidade humana.
Poucas horas depois de o texto ter sido publicado, a previsão do bispo se confirmou.
Os frades franciscanos de Assis anunciaram que o papa não estava apenas publicando uma nova encíclica chamada Fratelli tutti, mas também se dirigiria para a idílica cidade no topo da colina no dia 3 de outubro para celebrar uma missa junto ao túmulo de São Francisco e, depois, assinar o documento.
Pareceu estranho (e ainda parece) que o papa tenha escolhido o dia 3 de outubro, em vez do dia da festa do santo, no dia 4 de outubro, para visitar Assis. E também que a visita será curta.
Francisco deverá chegar, provavelmente de helicóptero, pouco antes das 15 horas. Existem apenas detalhes vagos neste momento, mas parece que ele irá diretamente para o convento conhecido como “Sacro Convento” e, depois, irá até a cripta da adjacente Basílica de São Francisco para celebrar a missa.
De acordo com a Sala de Imprensa da Santa Sé, que também esclareceu que a encíclica será sobre “a fraternidade e a amizade social”, o papa voltará para Roma imediatamente depois.
Não houve qualquer anúncio sobre quando o documento, em suas diversas traduções, será efetivamente disponibilizado ao público. Mas está claro que Francisco gostaria que isso ocorresse de uma forma mais cerimoniosa e de alto nível no dia seguinte – festa de São Francisco.
No entanto, a publicação poderia ser menos um estrondosa e mais um tiro no pé se os tradutores do texto não agirem de acordo e rapidamente. A partir de agora, o Vatican Media está noticiando que a versão em inglês da encíclica se intitula “All Brothers”.
Compreensivelmente, isso causou polêmica entre quem é sensível à linguagem inclusiva de gênero. E, se esse título ficar, servirá apenas para afastar ainda mais as mulheres (e homens) que veem essa recusa obstinada em reconhecer que a linguagem se desenvolve como mais uma prova de que a Igreja está sendo dirigida por aqueles que também se recusam a rejeitar a misoginia e o paternalismo.
Isso pode ser facilmente remediado. Intitulem a encíclica Fratelli e sorelle tutti, desde o início. “Irmãos e irmãs todos” ou “Somos todos irmãos e irmãs” faz mais sentido, de todos os modos.
Ouvimos a explicação de que os documentos papais tradicionalmente são intitulados a partir das primeiras palavras do texto, geralmente em latim. Por exemplo, “Evangelii gaudium” foi traduzido como “A alegria do Evangelho”.
E ouvimos dizer que a expressão “Fratelli tutti” vem diretamente de um texto de São Francisco, do século XIII, e, por isso, não pode ser alterado.
Bobagem. Se o papa ou seus conselheiros realmente acreditam nisso, então eles deveriam escolher outro texto ou apenas dar-lhe outro título.
Na Evangelii gaudium, Francisco realmente pede esse tipo de afastamento dos costumes de longa data, quando eles atrapalham a mensagem que a Igreja está tentando transmitir.
“No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever!” (EG, 43).
Em todo o caso, “fratelli” significa “irmãos”. Assim como em muitas línguas, incluindo o inglês, a expressão originalmente era entendida como inclusiva de irmãos e irmãs. Mas não é mais assim.
E, mesmo quando o Vaticano condenou pela primeira vez o uso da linguagem inclusiva em documentos da Igreja no início dos anos 1990, o papa, muito antes disso, havia parado de se dirigir a grupos com o costumeiro “Cari fratelli” e passou a usar o mais sensato “Cari fratelli e sorelle”.
Você pode creditar (ou culpar) o Papa João Paulo II por isso, como desejar.
Até a sua eleição ao papado, os papas rotineiramente se dirigiam às multidões (de católicos, pelo menos) como “Figli” – “filhos”. Obviamente, na época, ainda era aceito que essa expressão também incluía as mulheres. Mas os tempos mudam. Assim como a linguagem.
Quando Karol Wojtyla apareceu na sacada central da Basílica de São Pedro imediatamente após se tornar bispo de Roma no dia 16 de outubro de 1978, ele se dirigiu à enorme multidão na praça como “Carissimi fratelli e sorelle” – “Caríssimos irmãos e irmãs”.
Isso foi há 42 anos. E os papas têm usado essa forma de tratamento do senso comum desde então.
A linguagem inclusiva é, reconhecidamente, mais um problema no mundo de língua inglesa do que nas culturas de língua latina. Mas, mesmo na França e na Itália, por exemplo, a sensibilidade em relação ao seu uso está crescendo.
É desanimador que o Papa Francisco pareça ainda não apreciar como é desnecessário e inútil o uso da linguagem masculina no ano de 2020.
Mas, novamente, ele é um padre idoso da América Latina, de uma geração e cultura onde isso nunca foi um problema.
No entanto, é ele quem diz na Evangelii gaudium:
“Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG, 27).
E mais adiante ele escreve:
“Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo” (EG, 41).
Não se iluda: os guerreiros culturais, clericalistas e conservadores sociais da Igreja que se recusam a usar uma linguagem inclusiva fazem isso propositalmente como parte de seu zelo equivocado em defender a ortodoxia.
Em sua paranoia, eles veem a linguagem inclusiva como algum tipo de conspiração de feministas radicais e homossexuais simpáticos à derrubada da Igreja.
Não há nada disso ocorrendo aqui. O fato é que não falamos mais como fazíamos no século XIII. É simples assim.
Se o título de uma encíclica vai desviar as pessoas da sua mensagem central ou reforçar atitudes negativas sobre a Igreja, só há uma coisa a fazer – mudar o bendito título!
Isso seria pelo menos um exemplo de como “aplicar, com generosidade e coragem, as orientações deste documento [a Evangelii gaudium], sem impedimentos nem receios” (EG, 33).
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Irmãos e irmãs todos! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU