29 Julho 2020
Todos os documentos do Magistério, desde o encerramento do Concílio Vaticano II em 1965, remetem aos seus vários documentos devido à sua orientação. O novo Diretório para a Catequese não é exceção.
O comentário é de Sean Hall, padre inglês, atualmente pároco em North Tyneside, na Inglaterra, membro do Vicariato para a Fé e a Missão da Diocese de Hexham e Newcastle, professor de teologia no Ushaw College e atuou como consultor em educação religiosa na diocese, em artigo publicado por La Croix International, 27-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Dê-me seis linhas escritas pelo mais honrado dos homens, e eu encontrarei uma desculpa para enforcá-lo.”
Essas frases são atribuídas a Armand Jean du Plessis, o homem mais conhecido como cardeal Richelieu (1585-1642).
Em seu curso de pós-graduação sobre “A hermenêutica dos concílios”, ministrado nos anos 1970 e no início dos anos 1980 em Louvain (KULeuven), Piet Fransen SJ costumava substituir as seis linhas do “venerável” cardeal por uma única frase, e isso muito antes dos tempos dos memes e do Twitter.
O professor Fransen ensinava aos estudantes a importância do contexto histórico e cultural ao interpretar qualquer texto eclesial.
Ele ressaltava como é fácil isolar uma frase de qualquer documento da Igreja, tirá-la do contexto e aplicá-la a uma situação ou contexto para o qual ela nunca foi feita. E então você tem o começo de uma manipulação, de uma distorção da intenção original desse ensinamento.
Quanto mais longo e complexo o documento, mais fácil é alcançar esse objetivo.
Com isso em mente, parece de vital importância que, ao examinarmos este novo “Diretório para a Catequese”, tentemos situá-lo em seus vários contextos: eclesial e cultural.
Todos os documentos do Magistério, desde o encerramento do Concílio Vaticano II em 1965, remetem aos seus vários documentos devido à sua orientação. O novo Diretório para a Catequese não é exceção.
Há muitas citações em todo o Diretório, não apenas das quatro principais constituições do Concílio, mas também de muitos de seus decretos e declarações.
As constituições, como seria de esperar, formam a base para o ensino sobre a Revelação, a Liturgia e a Igreja, tanto em si mesmas quanto em relação ao mundo; com referências aos outros documentos usados nas seções dedicadas a seus assuntos: ecumenismo, missão, ecumenismo, relações com as religiões do mundo e assim por diante.
O novo Diretório é algo que também evolui a partir de textos semelhantes anteriores. Como há uma ênfase nas conexões íntimas entre a evangelização e a catequese, eles incluem: Evangelii nuntiandi (1975), Catechesi tradendae (1979), o Catecismo da Igreja Católica (1994) e o Diretório Geral para a Catequese (1997, que substituiu o Diretório Catequético Geral de 1971).
A missão e uma catequese “querigmática” (centrada na promulgação básica da vinda do Reino de Deus no início do Evangelho de São Marcos) também são temas constantes nos documentos anteriores.
Além dos textos de pontificados anteriores, os escritos do Papa Francisco também formam uma lógica fundamental por trás de grande parte do contexto do Diretório. Anteriormente, nos tempos modernos, os papas usavam suas primeiras encíclicas como um veículo para expor a sua própria visão do estado e das necessidades da Igreja no início de seus pontificados.
Ecclesiam Suam (Paulo VI, 1964), Redemptor hominis (João Paulo II, 1979) e Deus caritas est (Bento XVI, 2005) estabelecem a base de um programa, uma orientação básica para seus pontificados.
Com o Papa Francisco, aconteceu algo mais.
As circunstâncias incomuns de abertura do seu pontificado foram que o seu antecessor havia renunciado ao invés de morrer. Portanto, quando Francisco começou seu trabalho, havia em sua bandeja uma encíclica quase concluída de Bento.
Era a obra final de uma trilogia, cada uma das quais tratava de uma das três virtudes teológicas.
As encíclicas sobre o amor e a esperança já haviam sido divulgadas, e a que tratava da virtude da fé estava quase pronta para publicação. Francisco decidiu continuar esse projeto, e a Lumen fidei foi publicada em 2013.
Embora tecnicamente seja a sua primeira encíclica, ela era em grande parte obra do seu antecessor. Mais tarde, naquele mesmo ano, porém, o papa emitiu uma exortação apostólica (Evangelii gaudium), que é verdadeiramente o documento programático do seu pontificado.
Essa exortação é, por si só, as reflexões do Papa Francisco sobre o Sínodo sobre a Nova Evangelização ocorrido no ano anterior, antes de ele se tornar bispo de Roma.
A Evangelii gaudium é citada extensivamente em todo o novo Diretório, assim como nos outros documentos escritos por Francisco que também são citados. Quando a exortação foi publicada, ela criou tanto espanto quanto consternação.
O espanto centrava-se principalmente em como ela era acessível e legível.
As exortações apostólicas são as reflexões finais de um pontífice romano sobre os trabalhos de um Sínodo dos Bispos.
O tema em discussão e as várias resoluções aprovadas no fim do sínodo são analisadas durante alguns meses pelo papa, que então acrescenta suas próprias reflexões definitivas sobre o processo em uma carta que muitas vezes não é muito legível pelo público em geral.
A Evangelii gaudium provou ser um novo começo.
Tomemos o exemplo da exortação apostólica de Bento XVI sobre os trabalhos do Sínodo sobre a Palavra de Deus de 2008.
Intitulada Verbum Domini e publicada em 2010, suas partes central e final contêm algumas reflexões teológicas soberbas sobre a Palavra de Deus na teologia e na vida em geral. É o que esperaríamos de um teólogo muito talentoso, como Joseph Ratzinger.
O pobre leitor, no entanto, quase perde a vontade de viver quando Bento (com uma típica precisão germânica) abre a sua carta recontando os procedimentos do Sínodo.
Ele começa com o documento de discussão inicial e passa para os temas a serem discutidos, até se chegar às próprias reuniões. Então, ele passa pelas resoluções finais que foram aprovadas pelos bispos, até que – por último – finalmente começa a dizer o que tem a dizer.
O contraste com a abordagem do Papa Francisco não poderia ser mais forte. Desde o primeiro parágrafo, o papa latino-americano explode sobre o tema com energia e em uma linguagem que os não especialistas podem ler facilmente, e foi aí que a consternação se manifestou.
A Evangelii gaudium é uma obra surpreendente que realmente faz jus ao seu título: “A alegria do Evangelho”. No entanto, algumas das ideias de Francisco, especialmente a sua aparente abertura a opiniões contrárias, não foram acolhidas entre aquelas pessoas na Igreja que procuram uma abordagem mais definitiva e rígida por parte do homem que está no topo.
Ouviram-se rumores sobre como as exortações apostólicas não encontravam um lugar real entre os documentos de autoridade do Magistério papal. Mas isso significa perder de vista um ponto crucial da abordagem desse papa às questões eclesiais.
Como observamos, as exortações apostólicas são reflexões papais sobre os trabalhos de um Sínodo, e trabalhar “sinodalmente” é precisamente o que Francisco quer que a Igreja faça.
Os sínodos são muito mais importantes no seu entendimento de como a Igreja opera do que para qualquer um dos seus antecessores.
Para provar o seu argumento, em todas as suas cinco exortações apostólicas até agora, ele cita frequente e extensivamente os escritos das várias Conferências Episcopais do mundo: os resultados de seus próprios processos “sinodais”.
A Evangelii gaudium é o “manifesto” do Papa Francisco para a Igreja. Não é de se admirar, portanto, que ela seja mencionada extensivamente no novo Diretório, assim como as suas outras exortações, quando as abordagens catequéticas aos seus temas particulares – casamento, jovens, santidade – estão em discussão.
Junto com a Laudato si’ – a sua única encíclica até agora, que, curiosamente, se dirige a todo o mundo e não apenas à Igreja em si mesma –, esses vários documentos formam o contexto eclesial em curso dentro do qual o novo Diretório estabelece seu programa.
A chave de tudo no modo de pensar de Francisco é a prioridade da missão, de anunciar o Evangelho ao mundo (o querigma). Isso é destacado já no prefácio do Diretório quando os autores observam:
“O anúncio do Evangelho é o testemunho de um encontro que permite que se tenha os olhos fitos em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado na história dos homens, para consumar a revelação do amor salvífico do Pai. Partindo deste núcleo da fé, a lex credendi abandona-se à lex orandi e, juntas, realizam o estilo de vida do crente como testemunho de amor que torna o anúncio credível. Com efeito, cada um sente-se envolvido num processo de realização de si mesmo, que leva a dar a resposta última e definitiva à procura de sentido.”
De fato, a Parte Um do Diretório, que forma cerca de 40% do total da obra, se intitula “A catequese na missão evangelizadora da Igreja”.
Uma grande quantidade de tinta foi derramada sobre o ritmo cada vez maior de mudança no nosso mundo. Da minha perspectiva atual, não consigo imaginar como eu, ou muitos outros, teriam sobrevivido ao confinamento imposto pela pandemia da Covid-19 sem acesso à internet.
Quase 50 anos desde o fim do meu Ensino Médio, a diferença entre os modos de aprender naquela época e agora é quase inimaginável.
Voltando mais 40 anos até o fim do então Ensino Médio do meu pai, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, embora houvesse muitas diferenças em relação ao meu tempo, elas não são nada em comparação com o que aconteceu desde o início deste milênio.
Não é de se surpreender, portanto, que um tema que se centra na transmissão de uma mensagem – o Evangelho – na situação atual do mundo como ele se encontra, precise ser atualizado regularmente.
Nós nos familiarizamos com a compreensão do Papa Francisco sobre os diferentes contextos culturais dos povos em todo o mundo. Tanto a partir das suas palavras quanto das suas ações, fica claro que ele tem um firme entendimento das diferentes necessidades dos povos em diferentes contextos.
O fato de ele ter mandado criar banheiros e duchas no Vaticano para os sem-teto de Roma, a sua primeira visita fora do Vaticano ao campo de refugiados na ilha de Lampedusa, as suas liturgias do lava-pés nas Quintas-Feiras Santas em prisões e hospitais, o seu encontro com as pessoas marginalizadas em todas as suas viagens ao exterior, e assim por diante, são todos exemplos da sua ênfase constante no fato de ir ao encontro dos pobres, de querer que a Igreja seja como um “hospital de campanha”.
As riquezas contrastantes dos diferentes povos e o modo de tornar eficaz a proclamação do Evangelho em cada um deles são abordados no novo Diretório.
Claramente, a última questão premente é como lidar com os efeitos das tecnologias em rápida evolução e as oportunidades e armadilhas que elas apresentam. Esse é um tema recorrente em todo o Diretório, mas é abordado especificamente no Capítulo X – “A catequese diante dos cenários culturais contemporâneos”.
Esse capítulo é bastante notável tanto na sua amplitude quanto na profundidade de compreensão das questões enfrentadas ao tentar transmitir a fé no contexto atual do mundo. Um parágrafo que aborda o fenômeno da cultura digital, em particular, apresenta o desafio enfrentado pelos discípulos missionários hoje.
Cito-o na íntegra:
“Estamos diante de uma modalidade inédita e desafiante que muda as coordenadas de referência no processo da confiança e da atribuição de autoridade. O modo como se pede a um motor de busca, aos algoritmos de uma inteligência artificial ou a um computador algumas respostas sobre questões que dizem respeito à vida privada, mostra uma atitude fideísta na relação com as máquinas e com as respostas que elas fornecem. Vai-se criando uma espécie de pseudoareligião universal que legitima uma nova fonte de autoridade e tem todas as componentes dos ritos religiosos: desde o sacrifício ao temor pelo absoluto, até à subordinação a um novo motor imóvel que se faz amar, mas não ama” (n. 366).
Alguns podem achar essas palavras melodramáticas. Mas, mesmo que estejam apenas parcialmente corretas, a tarefa que enfrentamos hoje é sem precedentes, e, no entanto, no parágrafo seguinte, os autores do Diretório apontam para o modo como a situação nos oferece tanto um desafio quanto uma oportunidade.
As questões de confiança na autoridade estão por aí há muito tempo. A confiança na autoridade dos homens da Igreja está em declínio há décadas. Toda a terrível saga dos abusos sexuais clericais e o seu encobrimento tem sido mais um prego no caixão.
G. K. Chesterton observou uma vez que, quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, não é que elas passam a não acreditar em nada, mas sim que elas passam a acreditar em qualquer coisa.
Os autores do Diretório apontam para essa nova fonte de autoridade, na qual as pessoas investem a sua confiança (a “atitude fideísta” a que se refere o n. 366).
A ideia de que “se está na internet, deve ser verdade” está sendo submetida agora a um exame diário de “fact-checking”. Mas o poder e a influência das opiniões expressas pelas mídias modernas continuam inabaláveis.
Esse é o maior dos vários desafios culturais que enfrentamos na promoção da fé no mundo de hoje, e o Diretório detalha como isso pode ser alcançado.
Pessoas ocupadas, com todos os tipos de demandas em relação ao seu tempo e atenção, tendem a encontrar atalhos para os problemas. Toda nova organização que pretende oferecer ajuda aos seus clientes agora tem a palavra “soluções” em seu título ou no lema da empresa.
As pessoas na Igreja, dos catequistas aos clérigos, dos responsáveis pelo Ensino Religioso aos professores em sala de aula, todas têm enormes demandas.
A tentação que enfrentamos em um documento de 250 páginas é recorrer à página dos “Conteúdos” e ao “Índice” para procurar as partes que achamos mais relevantes para as nossas necessidades, ou mesmo simplesmente para justificar aquilo que já estamos fazendo!
Se recorrermos a isso, então o tipo de distorção de ideias tão apreciada pelo cardeal francês do século XVII é precisamente o que vai acontecer, mesmo sem querer.
Estou certo de que a maioria dos programas catequéticos e de Ensino Religioso nas escolas, das iniciativas de renovação e assim por diante já tem consciência da missão, do querigma e do chamado ao discipulado. São temas que estão por aí há muito tempo.
Também é verdade que existem seções inteiras do Diretório que não serão relevantes para muitas pessoas: por exemplo, a catequese com migrantes onde eles não existem; a catequese com idosos se você é professor escolar ou catequista de crianças; o papel do bispo se você é catequista, e assim por diante.
No entanto, os princípios de como empreendemos todos os esforços catequéticos são cruciais para todos nós que trabalhamos em um contexto eclesial.
As partes Um e Dois do Diretório estabelecem princípios fundamentais que precisam ser compreendidos, em algum nível, à medida que realizamos nossas várias tarefas. Se isso parece assustador demais, por que não recorrer a referências sobre “Acompanhamento”, “Diálogo”, “Discernimento”, “Discipulado”, “Evangelização” e “Missão”?
Essas são ideias-chave não apenas do “quê” nos nossos vários programas, mas do “por quê” e de “como” isso lhes dará energia. De fato, se você os ler, poderá ler também o texto completo, para ter uma noção completa do que nos está sendo solicitado neste momento.
Uma tradução de trabalho, não finalizada, do novo “Diretório para a Catequese” em português está disponível aqui.
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Algumas reflexões iniciais sobre o novo Diretório para a Catequese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU