09 Julho 2020
Advertiu que vinha um tsunami tecnológico, uma onda que talvez se pudesse surfar. Mas com a crise da COVID-19 essa onda se tornou um temporal de proporções bíblicas. Ángel Bonet Codina publicou El tsunami tecnológico (Y cómo surfearlo!) (Ed. Deusto), há apenas dois anos.
A entrevista é de Ximena Arnau, publicada por Yorokobu, 08-07-2020. A tradução é do Cepat.
Naquele momento, alertava sobre a digitalização do trabalho, o auge dos robôs e a inteligência artificial e sobre como isto poderia afetar a nossa vida. Dizia que os robôs seriam uma realidade cotidiana e se mostrava preocupado pelo modo como o espanhol médio se adaptaria a esta realidade. Víamos a interação com pessoas como algo sempre desejável e não como um possível foco de infecção.
Este pequeno detalhe faz com que o mundo robótico que Bonet apresentava com ar profético esteja começando a ganhar forma. Algumas de suas previsões, como o desaparecimento do dinheiro físico, já são uma realidade. Outras, como a erradicação da fome e as desigualdades, parecem hoje mais distantes ainda. Inclusive, existe alguma, como o acompanhamento massivo dos movimentos cidadãos por meio de aplicativos, que nem ele (nem ninguém) foi capaz de ver chegar. Perguntamos a este especialista em inovação e impacto social sobre o incerto cenário que se abre diante de nós.
Conhece algum trabalho concreto que tenha se automatizado durante o confinamento? Os robôs tomaram nossos trabalhos, enquanto estávamos fechados em casa ou, ao contrário, falamos da normalização de processos que já estavam ocorrendo?
A pandemia deu um salto muito grande no tocante à digitalização, tanto em processos que já estavam ocorrendo, como em processos completamente novos. Vimos no âmbito sanitário. Implantaram-se sistemas de coleta massiva de dados, inclusive em nível internacional. Configuraram-se redes de transmissão de dados automatizadas, com o resultado de cada teste, de forma digitalizada e em tempo real.
Algo semelhante aconteceu com a pesquisa em busca da vacina. Ainda que já existissem centros de transmissão de conteúdos e know how, rapidamente, deu-se de forma massiva, começou-se a trabalhar de maneira deslocalizada, com o objetivo comum de conseguir uma vacina. Isto constituiu um marco que permitirá encontrar esta vacina em dois anos, em vez de em muitos mais, como acontecia antes.
No plano empresarial, talvez tenhamos enxergado isso de forma mais clara. Muitos processos que em fevereiro de 2020 eram feitos manualmente, tiveram que ser industrializados e digitalizados. De repente, tudo era virtual: as convenções, as reuniões, as assinaturas de documentos passaram a ser digitais, em muitos casos... Com o teletrabalho, realizamos uma enorme digitalização de processos em apenas 15 dias. Em dois meses, demos um salto de dois, três, quatro anos.
Se antes você falava de um tsunami tecnológico, como deveríamos considerar o que está acontecendo agora?
Agora, podemos falar de um tsunami social. O tsunami tecnológico já passou e ainda não percebemos que para muitos negócios a forma de subsistir é estar digitalizado. Agora, vem o momento em viveremos uma enorme onda de conscientização social, de impacto social, de respeito ao meio ambiente.
O consumidor irá demandar políticas e empresas que tenham um alto nível de sensibilidade, rejeitando aquelas cuja visão seja puramente econômica e apoiando aquelas que protejam as pessoas e o meio ambiente. Irá demandar que toda a cadeia de valor seja mais respeitosa, começando pelo uso de materiais reciclados. Esta revolução será muito rápida, será implacável e mais profunda, se cabe, que a tecnológica.
Em seu livro, mostrava-se preocupado sobre o modo como nós, espanhóis, nos adaptaríamos às profundas mudanças que aconteceriam. A atual situação neste cenário e a nossa atitude diante do mesmo mudaram? Que análise você fazia e qual faz agora?
O mercado espanhol precisou adaptar, pouco a pouco, por obrigação ou por subsistência, seu modelo de trabalhar, mas ainda resta muito a fazer... Apesar de tudo o que estamos experimentando, não mudaria nenhuma vírgula do livro. Continuo pensando que, infelizmente, o ser humano não está preparado para esta transformação.
Além disso, apesar de tudo o que se fala da nova normalidade, acredito que experimentaremos um retorno às origens. Se não temos uma estrutura empresarial contundente e uma legislação com um modelo claro para a tecnologia, com o ser humano e o planeta no centro, estamos fadados a retornar ao de antes, em algumas coisas. Afinal, somos animais de costumes.
Por exemplo? Em que coisas?
Na mobilidade. Durante estas semanas, vimos como o planeta parecia estar respirando, contribuímos para lhe dar uma pausa ao restringir a mobilidade em carros, aviões... E agora, o quê? Acredito que retornaremos ao mesmo de antes. Não estou vendo que o modelo produtivo tenha a ampla visão que necessitamos, não vejo que aprenderemos disto e a aproveitar bem a oportunidade que esta pandemia está nos oferecendo.
Deveríamos estar aproveitando para mudar a estrutura, para redesenhar um novo modelo de cidades, de empresas, de comportamentos... e isto não está sendo feito. Embora o bom é que sempre fica alguma coisa.
Outra das questões que prognosticava em seu livro era o fim da moeda física por motivos higiênicos e sanitários. Parece que isso se acelerou até se falar não mais de um futuro a curto prazo, mas do presente.
Devemos digitalizar o dinheiro o quanto antes porque o papel e a moeda supõem um enorme gasto, um custo ambiental, vimos que são transmissores de doenças... Não faz sentido em uma era na qual praticamente todo mundo possui um smartphone, que se pode pagar de forma digital em segundos, fazer transferências de dinheiro em tempo real, quando pagar digitalmente é mais rápido, mais inteligente e eficiente. Parece que continuaremos utilizando os mesmos métodos, acelerou-se um pouco, mas não mudou totalmente.
Acelerou-se bastante. Estou há três meses sem usar dinheiro físico... Mas continuo sem entender o motivo pelo qual deveria adotar as criptomoedas, conforme afirma no livro.
A criptomoeda é ainda uma batalha a vencer. É outro modelo diferente, que busca desvincular a moeda dos bancos, propõe criar sistemas alternativos de gestão. Quando as moedas do YouTube e da Amazon forem lançadas, virão para ficar, serão praticamente implacáveis. Tais tipos de moedas são uma revolução, não conhecem fronteiras, ajudarão a romper o espaço. Então, o mundo todo adotará as criptomoedas e verá suas vantagens. A pergunta é se as regulamentações as permitirão operar.
A robotização sempre gerou certo ressentimento entre os trabalhadores. Em um contexto de crise e nos vendo fadados a ela, pode aumentar a perda de emprego?
A digitalização a curto prazo elimina emprego, ainda que a longo prazo o cria porque os modelos mudam e são criadas novas necessidades. O que acontece é que a evolução tecnológica é tão grande que não dá tempo para que a sociedade se adapte. Já disse, inclusive sem levar em conta o cenário de uma crise como a de agora, que visualizava países como Espanha com um desemprego estrutural de 30% por este motivo.
Há trabalhos que não vão se recuperar. Todos os setores estão sendo afetados por esta digitalização, mas alguns muito mais claramente: a saúde, os meios de comunicação, a medicina, a mobilidade... Como contraponto, outros setores crescem e precisam de trabalhadores e trabalhadoras. Tudo o que é logístico, digital, marketing digital, e-commerce... está vivendo sua época de ouro.
Antes, em muitos negócios, valorizávamos a interação com outros humanos, o atendimento próximo era chave em uma loja, um hotel ou em um bar. Considera que isto mudará? Que como clientes veremos com menos reservas o uso de robôs e a digitalização do humano?
Sim, mudará, mas não pela pandemia, pois será uma mudança em geral, geracional. Para que mudasse verdadeiramente, teríamos que ter uma quarentena de dois a três anos, que não ocorrerá. As crianças menores de 10 anos já começarão a ver a robótica, a digitalização, como algo natural. Estas crianças já estudam digitalmente. A geração atual, ao contrário, continuará rejeitando a robotização, apesar do medo de se contagiar.
Em que ponto estamos em nível histórico? Acredita que é um ponto de inflexão e, se sim, o que tem em comum com outras revoluções tecnológicas ou industriais?
Em nossa história moderna, nunca sofremos duas revoluções (a digital e a social) tão profundas, em tão pouco tempo. A última grande revolução foi a industrial e durou 250 anos. Estas duas durarão três décadas entre elas. É uma mudança selvagem, em uma só geração muda tudo: a maneira de nos relacionarmos, a forma como trabalhamos, como nos relacionamos com o planeta... O mundo terá dois pontos de inflexão: o ano zero, com o nascimento de Jesus, e esta época em que o ser humano passa de ser elemento físico ancestral a estar evoluído, quando toma consciência de seus atos, de seu planeta, digitaliza e toma a tecnologia como uma ferramenta.
No momento, ainda seguimos deteriorando o planeta, a escravidão em certo sentido continua existindo, continua existindo ricos e pobres e estes últimos são escravos dos primeiros. Acredito que viveremos, que estamos vivendo, um novo renascimento.
No momento, este renascimento parece retirado de um romance distópico. O medo coletivo, a digitalização, aplicativos de rastreamento de movimentos, limitação de mobilidade ou de reunião... Esta nova normalidade soa muito Orwell. Que riscos poder supor?
Muitos, conforme está concebido. Se os governos o enxergam e concebem como algo tático e oportunista e não como algo futurista, não será bom. Se você tem a população monitorada e utiliza isto como ferramenta política de influencia ideológica, o risco é muito alto. Mas, se o uso é para fins de autogestão médica, para criar saúde inteligente, para proteger a sua população, então, perfeito.
O problema para agir de forma adequada é que não necessitaríamos de políticos, mas, sim, de cientistas, visionários, filósofos... gente com grande conhecimento que olhe um roteiro de décadas e não de quinzenas. Tais questões precisam ser geridas por pessoas que entendam que a pandemia é uma oportunidade para mudar de forma estrutural todo o modelo, para o bem-estar social e para uma conscientização real de cuidado e respeito ao meio ambiente.
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“Em nossa história moderna nunca sofremos duas revoluções tão profundas, em tão pouco tempo”. Entrevista com Ángel Bonet Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU