02 Julho 2020
É um dado que ressoa como uma terrível advertência. O número de pessoas à beira da fome pode dobrar, de 135 milhões, em 2019, para 265 milhões até o final do ano 2020, alertou a ONU em um relatório publicado nos últimos dias de abril. “Quando enfrentamos uma pandemia de covid-19, estamos também à beira de uma pandemia de fome”, declarou, então, o diretor executivo do Programa Alimentar Mundial.
A reportagem é de Sophie Chapelle, publicada por El Salto, 01-07-2020. A tradução é do Cepat.
As zonas de conflito – entre as quais estão Nigéria, Sudão do Sul, Síria e Iêmen – são particularmente suscetíveis à fome, assim como a Índia e vários países da África Oriental (Sudão, Etiópia, Somália), enfrentando estragos em todas as suas plantações pela pior invasão de gafanhotos, há 25 anos. Em inícios de junho, manifestações no Senegal exigiram o fim do toque de recolher, instaurado três meses antes, por motivos sanitários. “Os habitantes esgotaram todas as reservas”, analisa Mamadou Cissokho, figura emblemática do movimento camponês africano, com “Basta!”.
Com o confinamento e a perda de renda, a classe média urbana, os trabalhadores por dia e aqueles que pertencem a setores informais e de serviços se tornaram, de repente, vulneráveis à pobreza e a fome. “O que esta crise revela é um problema de acesso. Ao pedirem para que parassem de trabalhar, mais da metade da população marroquina se deparou com uma situação de precariedade, de um dia para o outro”, observa Najib Akesbi, professor-pesquisador no Instituto de Agronomia de Rabat, onde o confinamento iniciado em 19 de março se prolongou até 10 de junho. As ajudas que chegam ao país para a frágil proteção social são, quando não inexistentes, em geral, insuficientes para manter as necessidades essenciais.
Esta inquietação não diz respeito somente aos países do Sul. Nos Estados Unidos, quase uma criança a cada cinco não recebe comida suficiente, desde o início da pandemia, segundo a alarmante constatação da prestigiosa Brookings Institution. A interrupção da alimentação no meio escolar seria um fator determinante, pois o almoço no refeitório constitui a principal e, às vezes, a única fonte de caloria do dia para milhões de crianças.
Na França, as longas filas de espera em Seine-Saint-Denis, durante as distribuições de cestas alimentares, impressionaram. O Seguro Popular viu as demandas por ajuda alimentar aumentar 45%, a partir do mês de março, em relação ao mesmo período do ano passado, com uma situação verdadeiramente preocupante para os estudantes.
É preciso temer um cenário similar em 2009, marcado por revoltas pela fome? Naquela época, um episódio do El Niño - uma corrente quente no oeste da América Latina que perturba o clima em todo o globo –, com uma intensidade extrema, arruinou as colheitas. Uma má produção e estoques insuficientes causaram, então, um aumento exorbitante dos preços, somando-se à crise financeira mundial.
“Não há nenhum temor de escassez”, repete, no entanto, Philippe Chalmin, professor de Economia na Paris-Dauphine, interpelado por vários meios de comunicação, desde o início da pandemia de covid-19. O mundo nunca produziu tanto, afirma. O Conselho Internacional de Cereais prevê, além disso, uma temporada recorde para 2020-2021 e colheitas na ordem de 2,2 bilhões de toneladas de cereais.
“A produção mundial de cereais e os estoques alimentares estão em um nível excelente”, confirma Olivier De Schutter, relator especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos (e ex-relator especial para o direito à alimentação). Teme, no entanto, que o abastecimento fique em risco a médio prazo. As restrições às exportações, colocada em vigor por alguns países como Rússia, Ucrânia e Cazaquistão, para o trigo, pelo Vietnã, para o arroz, seriam inquietantes, caso se prolonguem.
A União Europeia dispõe, por exemplo, de um nível de estoque de cereais equivalente a 12% do consumo anual, ou seja, 43 dias, frente a 18% da Rússia, 23% da Índia, 25% dos Estados Unidos e 75% da China (ou seja, nove meses de consumo). A principal ameaça vem, sobretudo, da demanda, segundo Olivier De Schutter. A recessão econômica que se avista irá afetar, em primeiro lugar, os “4 bilhões de indivíduos no planeta que vivem sem nenhuma rede social”.
Se as escolas, restaurantes, mercados reabrem progressivamente em certos países, as oportunidades continuam sendo ainda muito parciais, causando perdas e desperdício. Nos Estados Unidos, a hiperconcentração do setor da carne bovina, controlado em 80% por quatro multinacionais, mostrou sua vulnerabilidade. A covid-19 também trouxe à luz a dependência do setor agrícola de migrantes sazonais, bloqueados nas fronteiras.
O Governo francês havia, assim, lançado, em fins de março, um chamado a trabalhadores para atenuar a ausência desta mão de obra precarizada. Foram recebidas cerca de 300.000 solicitações, mas só foram assinados 15.000 contratos até 11 de maio, em razão principalmente do trabalho duro e das habilidades requeridas. Desta forma, muitos agricultores renunciaram a colher uma parte de sua produção.
A comissária europeia de Assuntos Interiores, a sueca Ylva Johansson, instou uma retirada, em fins de junho, de todas as restrições e controles nas fronteiras interiores da União Europeia. Determinados países já relaxaram as regras para receber trabalhadores agrícolas sazonais, essencialmente provenientes da Europa do Leste. Uma exploração agrícola britânica, inclusive, fretou um avião para transportar cerca de 180 poloneses para a Inglaterra, “fora de todos os canais oficiais”, segundo o embaixador da Polônia no Reino Unido.
As fronteiras exteriores da União Europeia seguem, por outro lado, fechadas para os extracomunitários, com uma duração indeterminada. “As trabalhadoras marroquinas que foram para o sul da Espanha justamente antes do início da pandemia e cujo contrato terminaria em fins de maio, estão retidas lá, pois as fronteiras seguem fechadas”, alerta Najib Akesbi.
Conforme aponta Olivier De Schutter, “temos um sistema que estimulou cada região a se especializar para satisfazer as necessidades do mercado mundial”. Ucrânia e Rússia fornecem trigo, Vietnã, Índia e Tailândia produzem arroz para África Ocidental. “Tudo isso funciona bem... até o dia em que as cadeias de fornecimento se rompem por motivos climáticos, sanitários, econômicos ou geopolíticos. E, então, o sistema revela profundamente toda a sua fragilidade”. Em 2018, por exemplo, os países da África subsaariana como Somália e Sudão do Sul importaram mais de 40 milhões de toneladas de cereais.
No Marrocos, 90% do consumo de óleo é importado. “Nosso país continua sendo o campeão dos acordos de livre comércio, com um componente agrícola e alimentar consistente. Nada aponta que o Governo renuncie ao modelo agroexportador. Cada vez, mobiliza mais meios para exportar mais produtos para o mercado europeu. Em contrapartida, a dependência alimentar vai aumentando”, lamenta Najib Akesbi.
“O fundamentos não mudam, os governos parecem presos em um sistema que não dominam”, confirma Mamadou Cissokho. Os acordos de associação econômica são em sua visão “acordos de pobreza econômica”. Com a rede de organizações camponesas da África Ocidental, luta por sistemas alimentares que dependam dos produtos locais para fazer viver a economia rural.
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Crise alimentar mundial: “Estamos à beira de uma pandemia de fome” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU