26 Junho 2020
Por ocasião da abertura do Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras, que acontece de 25 de junho a 1º de julho, entrevistamos Euclides André Mance, membro da mesa de abertura e um dos teóricos da Economia Solidária e a Economia de Libertação na América Latina, além de cofundador do Instituto de Filosofia da Libertação e da Rede Solidarius.
A entrevista é de Blanca Crespo, publicada por La Marea, 24-06-2020. A tradução é do Cepat.
Há anos, analisa o sistema capitalista e suas falhas, em publicações como ‘Constelação Solidarius’ e outros escritos. Quais são as principais deficiências do atual sistema econômico?
Quando analisamos o circuito econômico do capital, vemos que o capitalismo tem várias fendas sistêmicas que se relacionam com suas finalidades e seu modo de funcionamento. Essas fendas o fragilizam, mas não podem ser superadas sem que o próprio sistema deixe de ser ele mesmo, pois elas fazem parte de sua própria natureza estrutural.
Explorar as fendas do capitalismo significa criar processos econômicos, políticos e culturais que, implantados no interior do sistema, aproveitando-se de tais falhas, comecem a interferir em seus fluxos econômicos, políticos e culturais para promover a libertação das forças produtivas, de intercâmbio e de crédito em favor de circuitos econômicos solidários, e da consolidação de processos democráticos de autogestão, a partir dos territórios locais, que expandam e consolidem a própria libertação das comunidades humanas, organizando novas formas sociais de convivência dos seres humanos entre si e com os ecossistemas.
Quais são essas fendas?
No plano do crédito, temos a existência de pessoas, empresas e governos altamente endividados e um fluxo de valores que migra da produção e do intercâmbio para a acumulação financeira, em vez de realimentar a produção e o consumo das famílias, dos governos e das empresas. Essa fenda sistêmica se amplia e aprofunda quando o próprio sistema de crédito se torna um entrave para a reprodução ampliada do valor, por drenar na realização de lucros do capital financeiro o valor gerado pelo trabalho produtivo. Tal drenagem que se amplia ainda mais com o refinanciamento de dívidas, gerando novos empréstimos que não se destinam a ampliar a produção e o consumo, mas o próprio pagamento de dívidas anteriormente contraídas junto ao sistema financeiro.
No plano do intercâmbio, temos a metade da população mundial abaixo da linha da pobreza, excluída de níveis adequados de consumo em quantidade, diversidade, qualidade, regularidade e dignidade. Se as pessoas não compram, o capital não vende e não se realizam lucros. Isto fragiliza a realimentação da produção e da arrecadação de impostos pelos Estados para a prestação de serviços públicos que deveriam ser universais, gratuitos e de qualidade, mas que não são.
Em relação à produção, temos milhões de desempregados e trabalhadores subempregados em atividades precárias de geração de renda informal ou eventual. E, por outro lado, uma abundância de mercadorias que não tem saída, ou que deixam de ser produzidas pela falta de clientes.
Do ponto de vista da distribuição dos valores, existe uma alta concentração de riqueza nas mãos de um reduzido grupo de pessoas, empresas e instituições. A título de exemplo, Jeff Bezos, presidente da Amazon, possuía 145,6 bilhões de dólares em ativos, em 2018, ao passo que Bill Gates, da Microsoft, possuía mais de 100 bilhões de dólares. Naquele ano, a fortuna de ambos aumentou respectivamente, 20,7 bilhões e 9,5 bilhões de dólares. A riqueza de ambos, somada, era superior ao PIB nacional anual de mais de 150 países, em 2018, entre eles, Portugal, Peru, Grécia, Equador e Venezuela.
Por outro lado, 3,4 bilhões de pessoas no mundo não possuem recursos sequer para satisfazer as necessidades mais básicas. E, sem distribuir renda, o sistema econômico não consegue ampliar o giro de sua própria produção e comercialização, exceto aumentando o endividamento das pessoas ou drenando recursos que foram produzidos fora de seus circuitos.
No referente à acumulação do valor em sinais universalmente válidos (moedas, papéis, etc.), não é possível manter um “padrão de valor internacionalmente estável” frente às crises sistêmicas que se repetem com mais frequência, os processos especulativos e inflacionários e as políticas monetárias e de câmbio dos diferentes estados.
No plano dos contratos, não é possível garantir a estabilidade de valores nas proporções em que são neles negociadas, em razão da oscilação dos preços de mercado dos bens neles negociados, mesmo quando tais contratos contêm cláusulas para o seu ajuste, considerando indicadores de inflação, câmbio e taxa de juros.
Por último, em relação à democracia, o investimento capitalista de milhões de dólares na formação de capital político para a eleição de governos ultraliberais, cooptação de parlamentares, propagação massiva de mensagens ou a realização de golpes de Estado - abertos ou dissimulados -, que subordinam o Estado aos interesses do capital internacional, resultam em uma negação de direitos sociais, políticos e econômicos às populações, lançando na exclusão e na marginalidade centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Também submetendo ao lawfare e à prisão dirigentes políticos e ativistas sociais, condenados injustamente, ao passo que as riquezas dessas nações, os bens comuns, o patrimônio público e os serviços públicos são privatizados, ou seja, são transferidos à condição de propriedade privada ou à exploração privada dos grandes capitais internacionais, financeiros, comerciais e produtivos.
Algo deste diagnóstico mudou, desde o início da crise da COVID-19?
Se analisarmos com cuidado, veremos que todas as fendas mencionadas acima se aprofundaram. Vemos também que a mediação de fluxos econômicos capitalistas por plataformas eletrônicas, possibilitada pelo desenvolvimento das forças de produção, intercâmbio e crédito, que estão dando origem ao que se pode chamar de capitalismo de plataforma, foi ampliada com a pandemia, acelerando a migração de operações de muitas empresas para ambientes virtuais, expandindo o trabalho home office, etc.
A situação de endividamento de trabalhadores e trabalhadoras se agravou ainda mais. A oscilação de papéis e cotações de sinais de valor, como moedas e outros, também sofreu fortes impactos. A concentração de riquezas se ampliou, etc.
Para enfrentar a crise, determinadas medidas foram adotadas pelos governos para sustentar, em alguma medida, o consumo dos lares e o funcionamento das empresas. Não em uma perspectiva de superação sistêmica do capitalismo, mas para sustentar, no possível, em relação aos fluxos materiais, as cadeias capitalistas de produção, circulação e consumo, e, em relação aos fluxos de valores, as cadeias de pagamento no setor de produção e circulação, para evitar a quebra de contratos em cadeia. Mas, os valores, para cobrir estes mecanismos de socorro, virão, ao final, dos orçamentos públicos.
Diante deste panorama, como avalia as propostas da economia solidária e outras redes colaborativas de apoio mútuo e solidariedade, que você também estuda há anos?
A principal questão é como estas iniciativas e redes avançarão na organização de circuitos econômicos solidários para construir alternativas ecológicas e solidárias frente aos circuitos econômicos do capital. Atualmente, grande parte do valor econômico produzido nas economias solidárias e alternativas, em todo o mundo, acaba fluindo aos circuitos econômicos do capital, desaguando na acumulação capitalista de valores.
Por exemplo, quando produtos gerados nos circuitos solidários são comercializados nos circuitos do capital, com a realização de lucros pelo capital mercantil (comercial e financeiro); em operações de financiamento de produção e comercialização solidárias, com o pagamento de juros a bancos privados que fornecem crédito; com a aquisição de produtos finais ou meios produtivos, por atores da economia solidária, de provedores capitalistas, sempre que haja expropriação nesses intercâmbios, com termos de mudança desfavoráveis aos atores solidários; quando empresas solidárias são subcontratadas por empresas capitalistas, entre outras formas.
Assim, estes atores solidários e alternativos cumprem um importante papel para a reprodução do capitalismo, completando os valores necessários para assegurar o giro capitalista da produção e circulação, com valores que não foram distribuídos pelo capital, mas por estas economias sociais e solidárias.
Por outro lado, quando estas iniciativas se integram em circuitos econômicos solidários, a situação pode ser muito diferente. Pois, neste caso, utilizando ou não plataformas virtuais, o consumo final das pessoas e dos lares, suas aquisições de bens e serviços, bem como o consumo produtivo das próprias iniciativas, é agrupado e atendido nestes circuitos, fortalecendo cadeias de produção, circulação e consumo solidárias.
Conectando estes fluxos econômicos, são construídas estratégias que permitem criar fundos para a libertação de forças de produção, circulação e crédito, com valores que antes eram realizados como lucro por atores capitalistas nos circuitos econômicos do capital, mas que agora são realizados como excedentes de valor nos empórios, físicos ou virtuais, dos circuitos econômicos solidários, uma vez que neles é possível comprar o que se necessita.
Estes circuitos podem ser formalmente registrados como cooperativas para autogestão comunitária ou formalizados de outros modos. Mas o fundamental é que estejam integrados em redes colaborativas e solidárias, para que possam se retroalimentar em seus fluxos de libertação econômica.
O conceito de “Economias transformadoras” está ganhando importância nos últimos anos. Qual é o potencial deste conceito e como as diferentes economias alternativas podem se retroalimentar nesse sentido?
A transformação de algo significa a passagem (trans) de sua forma para outra. O valor econômico, por exemplo, sofre muitas transformações em sua metamorfose nos processos de produção e circulação. No sistema capitalista, o valor-capital, sob a forma dinheiro, é investido em meios produtivos e trabalho. Estes são transformados em produtos. Estes passam por outra metamorfose ao se tornar mercadorias, quando são levados ao mercado. E, depois, são trocados por dinheiro, de modo tal que se recupera o valor investido e se realiza como lucro o novo valor, que foi criado pelo trabalho que produziu as mercadorias.
Sendo assim, a transformação do valor no processo de produção, circulação e crédito é condição necessária para a reprodução ampliada do capital. Nas ações desta metamorfose ou transformação do valor, ocorrem processos de exploração do trabalho, expropriação no intercâmbio e espoliação no crédito que fazem do capitalismo um sistema intrinsecamente injusto.
Se por economia transformadora se pensa uma economia que nega a forma capitalista de produção, circulação e crédito, para criar outros modos de produção e outros sistemas de intercâmbio e crédito, que sejam ecológicos, solidários e geridos por trabalhadores, trabalhadoras e suas comunidades, então, de fato, pode se tratar de uma “transformação libertadora”. Mas, se apenas introduz novas formas de organizar a economia, sem suprimir estas estruturas de exploração, expropriação e espoliação, então, contribui para aperfeiçoar o capitalismo ou para criar algum outro sistema econômico que não suprime os mecanismos estruturais de dominação econômica.
Pois, não basta somente libertar o valor e o trabalho de um sistema econômico, se estes elementos são colocados em contradição entre si no novo sistema que se organiza com a superação do anterior. O valor econômico e o trabalho, ambos libertados do sistema feudal, foram condição necessária para o surgimento do sistema capitalista. Vemos, hoje, que o desenvolvimento das forças produtivas está impactando fortemente nas relações sociais de produção, circulação e crédito.
Há condições muito propícias para que trabalhadores, trabalhadoras e suas comunidades possam libertar valor econômico e trabalho, que estão subordinados na metamorfose do capital nos circuitos econômicos do capital. Com tais valores e trabalho, assim libertados, o objetivo é avançar na construção de um sistema econômico pós-capitalista, multiplicando o integrando circuitos econômicos solidários em redes colaborativas, com o sentido histórico de realizar o bem viver das pessoas e comunidades, conectando as capacidades e necessidades humanas para ampliar as liberdades de todos e não para o enriquecimento de alguns.
Assim, a questão é onde se quer chegar, com a transformação que se busca fazer, e como tal transformação será feita. Nisto se decide, em minha opinião, o potencial deste conceito.
Que papel desempenha, neste cenário, a realização de um Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras, como o que acontece agora?
O Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras desempenha um papel muito importante. Há muitas e diferentes práticas de economias sociais, solidárias e alternativas. E o conceito de economia transformadora tenta abrigar, em minha visão, a diversidade de possibilidades de realização econômica de caráter libertador. O fórum é um espaço muito importante de fluxos de informação, comunicação e educação em processos dialógicos compartilhados que oferecem a todos/as uma compreensão mais ampla da própria realidade dos atores e suas propostas para a transformação da economia e pode, também, ser um espaço muito importante de fluxos de poder, com o estabelecimento de acordos entre atores para ações conjuntas.
Mas, se o fórum não avança decididamente em promover a integração local e global dos próprios fluxos econômicos das economias transformadoras, não haverá nenhuma transformação econômica que seja geradora de outros modos de produção e apropriação, outros sistemas de intercâmbio e crédito e outras formações sociais efetivamente libertadoras. Não basta dialogar sobre o mundo ou compartilhar visões sobre isso, é preciso transformá-lo.
Que linhas estratégicas considera que deveriam ser incorporadas na agenda deste movimento, nos próximos meses?
Uma estratégia integra diferentes ações entre si para o alcance dos objetivos coletivamente definidos. Se o objetivo é realmente a transformação da economia mundial em bases ecológicas e solidárias, a estratégia deve ser desenhada para o longo prazo, para que as ações mais imediatas sejam definidas com acerto, a fim de que contribuam para a consecução de tais objetivos.
Com esta perspectiva, o mais necessário, em minha opinião, é a organização de circuitos econômicos solidários, com a criação e desenvolvimento de plataformas virtuais que facilitem a organização de comunidades econômicas e a integração local e global dos fluxos econômicos dos territórios, organização de empórios físicos ou virtuais para mediar as aquisições dos consumidores solidários, com margens de excedentes destinados a fundos de libertação econômica para investimentos coletivos que possam dar origem a iniciativas econômicas de autogestão nos territórios.
O processo de mapeamento de necessidades e ofertas, organização de catálogos de compras, intercâmbios e doações, ativação de contas eletrônicas para transações nestes catálogos (com moedas, pontos e agradecimentos, registrados em blokchains) e deliberações democráticas sobre o circuito, possibilitam consolidar as comunidades econômicas, que podem se integrar em rede com outros circuitos, pela mesma plataforma, em fluxos econômicos regionais, nacionais e internacionais.
Outro ponto é que muitas pequenas empresas capitalistas estão fechando suas atividades neste momento de crise. Frente a isso, se as plataformas de economia solidária forem capazes de agrupar volumes de consumo significativo, seria possível usar os recursos dos fundos de libertação econômica para que os/as trabalhadores/as de algumas destas empresas possam comprá-las e colocá-las outra vez em funcionamento, mas agora sob a autogestão, oferecer seus produtos via plataformas para a rede de circuitos e restituir progressivamente os valores emprestados do fundo.
Entre as ações políticas, seria possível desenvolver uma forte ação global para o estabelecimento de um programa universal de renda básica para toda a população mundial, coberto com taxações dos lucros financeiros, e que se suspenda o pagamento das dívidas dos governos, de maneira integral ou parcial, por um tempo indeterminado, para que os valores destinados a elas sejam aplicados no enfrentamento da pandemia nos países, na conversão solidária e na autogestão de empresas em situação de falência e no apoio e fortalecimento da economia solidária em geral.
Importantes setores da população e dos movimentos sociais e correntes alternativas estão fazendo uma leitura do momento de crise atual como uma oportunidade de mudança para uma transição ecossocial. Enxerga isso como possível? Como seria um mundo sob as lógicas e valores da economia social e solidária?
Sem uma vacina ou remédio eficaz nos próximos meses, para enfrentar o novo coronavírus ou a COVID-19, esta pandemia poderá levar milhões de pessoas em todo o mundo à morte, que em sua maior parte não tem as condições materiais de proteger a si mesmas e seus familiares do contágio do vírus.
Neste momento, em muitas partes, empresas capitalistas avançam em conversões de processos trabalhistas que as permitam operar de outros modos, reduzindo custos. E, também, para consolidar suas marcas, fazem doações para fins sociais de valores que antes estavam destinados à publicidade em seus orçamentos. Com a quebra de empresas menores e mais fracas, as maiores e mais fortes monopolizarão mercados e a concentração do capital seguirá. E todos os ajustes que forem feitos agora, de maneira provisória, poderão ou não permanecer como definitivos depois. Mas, como a classe trabalhadora estará muito fragilizada, o cenário pode ser de muita perda para os mais pobres e para as classes médias.
Em relação aos governos, em linhas gerais, percebe-se que as políticas neoliberais estão dando espaço a ações de intervenção econômica que, entretanto, não buscam mudar as bases da exploração do trabalho, expropriação no intercâmbio e espoliação no crédito, fundamentais no capitalismo. Os governos precisam reativar a economia para captar impostos para manter os próprios serviços públicos. Até onde estarão dispostos a ampliar as dívidas públicas para não cortar políticas públicas não se sabe. Mas, para os mais pobres, o cenário também é muito desfavorável.
E, por outro lado, como não há uma solução capitalista para integrar os excluídos nos processos de produção e consumo, sem os endividar, e também não haverá solução para os Estados manter economicamente milhões de excluídos e de pessoas com sequelas da COVID-19, sem arrecadar impostos sobre a atividade econômica, grande parte da sociedade que ficará desempregada e sem cobertura de políticas públicas, buscará soluções para sua sobrevivência, podendo encontrar resposta tanto nas economias solidárias, como na criminalidade.
Se na pandemia muitos estão redescobrindo a importância da solidariedade, o futuro pós-pandemia seguirá cheio de contradições. O capitalismo não se dissolverá por si mesmo. Se suas fendas sistêmicas estão cada vez mais dilatadas, por outro lado, as forças do capital estão cada vez mais fortes. E isso exigirá das forças econômicas solidárias muita capacidade de mobilização, organização e educação para construir as bases dos novos modos de produção e apropriação, dos novos sistemas de intercâmbio e crédito e das novas formações sociais, todas ecológicas e solidárias, que precisam ser construídas.
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“Devemos avançar na organização de circuitos econômicos solidários”. Entrevista com Euclides André Mance - Instituto Humanitas Unisinos - IHU