03 Junho 2020
"Quando fazemos a experiência do oásis, o deserto da nossa vida torna-se algo suportável e nos faz superar as miragens desprovidas de plenitude. Mas como? Creio que neste momento da história só o espírito crítico poderá nos salvar. A propósito, a história tem nos ensinado que só os dotados deste espírito foram capazes de tomar distância das situações de barbárie para descobrir uma revelação mais profunda de Deus, aos moldes de Jesus libertador", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.
O discurso sobre Deus é sempre atual, sobretudo em nosso continente latino-americano. Mesmo na Europa iluminista, ouve-se muito a expressão “Deus sim, igreja não”. A experiência religiosa, defendem alguns, não necessita da pertença a vida eclesial. Ela se faz no palco do mundo, sem hierarquias e ritos religiosos. Contudo, para nós cristãos a vida de comunidade é fundamental e exige o cultivo da espiritualidade, requer união e compromissos concretos, a fim de que o amor se traduza em obras. Mas em tempos de pandemia tudo isso passa por uma séria avaliação e Deus, mais do que nunca, tornou-se a invocação comum em nossos dias. Porém, a maneira pela qual o invocamos reflete a originalidade da revelação divina realizada em Jesus? Qual é mesmo a imagem de Deus que está emergindo neste longo inverno de pandemia?
Para dar-nos conta do que a pandemia realizou na experiência de fé, os meios de comunicação, tão relevantes neste momento da história, nos põem diante das famosas imagens de Deus que nascem, por exemplo, do medo de morrermos vítimas do vírus, de pensar que a humanidade está sendo castigada, de culpabilizar o carnaval de fevereiro como o estopim do castigo divino sobre nós brasileiros, etc.
São tantas interpretações que não podemos deixar de nos questionar qual deveria ser realmente a experiência de Deus que mais se aproxima da revelação bíblica. Creio que este é o ponto crucial que nos liberta da armadilha do fundamentalismo religioso.
A fim de levarmos a cabo esta tarefa vamos desenvolver os seguintes conceitos: deserto, miragem e oásis. O deserto é a realidade da vida, com todos os seus dramas. Podemos dizer que hoje o deserto nos traz o desafio da pandemia do Covid-19. Diferentemente dos padres do deserto que fugiam das cidades para uma experiência mais radical de Deus através de inúmeras privações, vencidas com a ascese, hoje nos damos conta que o deserto é o assumir a responsabilidade da vida com toda a dureza da pandemia. Não temos para onde fugir, devemos nos refazer no chão onde estamos pisando. Porém, é justamente em meio a árdua missão de enfrentarmos o peso da existência neste momento triste de nossas vidas que podemos projetar uma imagem errada de Deus. Feuerbach já dizia que Deus é uma projeção do homem. E o pior é quando se trata de algo que se distancia da revelação. A projeção pode ser a consequência de uma dor não suportada e, por isso, recorremos ao divino para que ele nos alivie e é exatamente aqui que nasce a miragem, ou seja, a falsa imagem de Deus.
A miragem faz-nos agir motivados por algo falso e por isso produz um efeito nocivo. Quando alguém, por exemplo, promove violência e a justifica em nome de Deus, esta pessoa encontra-se profundamente enraizada em uma miragem, ou seja, uma projeção que está longe da verdade. O mesmo pode ocorrer quando concebemos Deus a partir da ótica da justiça do “olho por olho, dente por dente”, ou então quando usamos o nome dele para justificar algum partido político, seja de direita ou de esquerda. A direita acredita num Deus justiceira e poderoso, um Deus nacionalista que não admite as diferenças. Da mesma forma pode acontecer com o discurso da esquerda quando os movimentos que representam todas as classes minoritárias pretendem assumir algum cargo ou posição na sociedade com o objetivo de mudar a ordem vigente. A intenção é até boa, mas muitas vezes a prática tem nos ensinado que a libertação não se faz com o poder das classes, mas com o testemunho pacífico. Se a direita delira com a miragem de um Deus nacionalista e restrito apenas a alguns, a esquerda por sua vez, pode cair no risco de acreditar que a mudança se faz só com a política partidária, ou política de minorias. Pelo contrário, a revolução começa a nível pessoal, no desenvolvimento de uma existência profética, sem manifestações violentas.
Já o oásis seria o caminho alternativo e crítico que nos salva das armadilhas das miragens que falseiam a autêntica revelação de Deus. Oásis no deserto de nossa vida é o encontro com a verdade e o bem. Trata-se daquele poço onde se gera a fraternidade revolucionária. Neste poço de água fresca emerge a autêntica imagem de Deus, ao modo de Jesus de Nazaré. Quando fazemos a experiência do oásis, o deserto da nossa vida torna-se algo suportável e nos faz superar as miragens desprovidas de plenitude. Mas como? Creio que neste momento da história só o espírito crítico poderá nos salvar. A propósito, a história tem nos ensinado que só os dotados deste espírito foram capazes de tomar distância das situações de barbárie para descobrir uma revelação mais profunda de Deus, aos moldes de Jesus libertador.
Como você se encontra em meio ao deserto da vida? Você está vivendo das miragens? E Deus, é uma projeção tua ou se trata de um oásis que te liberta das ilusões? Tudo indica que chegou o tempo de optamos por uma via alternativa, aquela que nos remete a experiência de Jesus, a água viva que nos sacia.
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Oásis da verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU