04 Mai 2020
“Ser capaz de observar os lírios do campo e os pássaros do céu significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos olhar, mas não apenas como fazemos habitualmente, porque na maioria das vezes nosso olhar morre aos nossos pés. Somos chamados a olhar além de nós, ultrapassando o perímetro das nossas preocupações imediatas. A vida não se resume às nossas realizações, mas à interação entre o aqui e o agora e o que é da ordem do eterno”, escreve José Tolentino de Mendonça, em artigo publicado por La Vie, 30-04-2020. A tradução é de André Langer.
O cardeal José Tolentino de Mendonça é o arquivista e bibliotecário do Vaticano desde setembro de 2018. Teólogo e professor universitário, foi nomeado membro do Pontifício Conselho para a Cultura pelo Papa Francisco em fevereiro passado.
Nossa segurança não pode depender de uma despensa bem abastecida ou de uma geladeira bem cheia. A vida é mais do que a materialidade necessária para a sobrevivência: é isso, mas também é mais do que isso. O período em que vivemos é uma oportunidade para refletir sobre o que nos nutre. É que nos alimentamos de tantas falsificações, reduzindo a vida a um fast-food, de preferência sem pensar muito.
É que nos alimentamos de tiques rotineiros e insípidos, de ideias prontas que não deixam espaço para a escuta e a descoberta, de automatismos que flutuam como puras abstrações, de imagens filtradas que reduzem sempre mais realidade a algo oco, esvaziando-a de sua natureza bruta, polifônica e concreta, de palavras que, mais que uma declaração real de presença, se assemelham a uma estratégia que nos afasta dos repetidos apelos que a vida nos faz.
Lembro-me da palavra cheia de sabedoria de Jesus e de como ela restaura o contato da nossa realidade com suas fontes mais profundas: “Não fiquem preocupados com a vida, com o que comer; nem com o corpo, com o que vestir. Afinal, a vida não vale mais do que a comida? E o corpo não vale mais do que a roupa? Olhem os pássaros do céu: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, o Pai que está no céu os alimenta. (...) Olhem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Eu, porém, lhes digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles” (Mateus 6, 25-29).
Em uma das horas mais sombrias do século passado, em um campo de concentração, uma jovem holandesa chamada Etty Hillesum meditou esta parábola do Evangelho. “Uma vez escrevi em um dos meus diários que gostaria de tocar os contornos desta época com a ponta dos dedos. Naquele momento eu estava sentada à minha escrivaninha e não sabia como abordar a vida... E, de repente, fui atirada num foco de sofrimento humano, num dos muitos pequenos frontes espalhados por toda a Europa. E ali de repente vivi isto: a partir dos rostos das pessoas, a partir de milhares de gestos, pequenas expressões, histórias de vida, comecei a entender este período... Se as pessoas entendessem bem este período, poderiam aprender com ele a viver como os lírios do campo”.
O que significa ser capaz de observar os lírios do campo e os pássaros do céu? Significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos olhar, mas não apenas como fazemos habitualmente, porque na maioria das vezes nosso olhar morre aos nossos pés. Somos chamados a olhar além de nós, ultrapassando o perímetro das nossas preocupações imediatas. A vida não se resume às nossas realizações, mas à interação entre o aqui e o agora e o que é da ordem do eterno.
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A esperança em tempos de coronavírus: os lírios do campo segundo Etty Hillesum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU