23 Abril 2020
Governos com posturas econômicas liberais tiveram que mudar seus posicionamentos e atuar de forma mais incisiva na economia e no setor social.
A humanidade vive uma nova crise social, sanitária e econômica com a pandemia desencadeada pelo novo coronavírus, impondo ao Estado atuações mais diretas na gestão das ações para evitar consequências ainda maiores. A Beta Redação ouviu especialistas para entender o papel das instituições ante o problema.
A reportagem é de William Martins, publicada por Medium Beta Redação, 20-04-2020.
Para o economista e professor da Unicamp Guilherme Mello, o papel dos governos é decisivo em momentos críticos como o da COVID-19. Para ele, o Estado é o único agente econômico capaz de minimizar perdas e impedir que se entre em um ciclo de deflação de ativos e quebra de empresas, com o travamento do sistema de crédito.
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil aprofundou sua desigualdade social em 2018. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) apontam que a concentração de renda aumentou no país. Exemplo disso é que o rendimento mensal de 1% da população mais rica é 34 vezes maior que da metade mais pobre.
Guilherme de Azevedo, professor de Direito da Unisinos, diz que as desigualdades se tornam ainda mais presentes em tempos de crise, inclusive agora com a do coronavírus. Nesse caso, as orientações do governo para evitar contágio do vírus se tornam inutilizáveis.
“Percebemos que essas orientações e essas normativas acabam sendo muito enfraquecidas e a sua utilidade fica extremamente comprometida em grupos vulneráveis, em que justamente a desigualdade os expõe a uma fragilidade e a quase que uma inutilidade dessas orientações”, comenta.
O professor de Direito Guilherme de Azevedo explica como as desigualdades podem ser aprofundadas durante a pandemia
No dia primeiro de abril, após tramitar no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 873/2020 que institui a Renda Básica de Cidadania Emergencial foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. O valor é garantido aos trabalhadores informais e autônomos, sem renda fixa. O benefício, concedido pelo país estar enfrentando uma pandemia, vai na contramão das ideias liberais trazidas até o momento pelo governo.
Para o cientista político e professor da Escola Superior Dom Helder Rudá Ricci, os economistas que têm esta linha de pensamento estão migrando para uma lógica de reforço do Estado. “Estamos sendo obrigados a fazer todos os liberais brasileiros, em especial os economistas, bandearem para uma visão justamente keynesiana de reforço do Estado de Bem-Estar Social. O governo já abriu a primeira porta, que é a ajuda emergencial de R$ 600”, afirma Rudá.
A pesquisa do Instituto DataFavela informou que o Brasil tem atualmente cerca de 13,5 milhões de pessoas morando em favelas no país. As condições precárias, sem a mínima estrutura para sobrevivência, e o aumento do trabalho informal, tornam o isolamento social desses moradores mais difícil.
Conforme pesquisa deste mesmo instituto, 92% das mães chefes de família afirmam que terão dificuldade para comprar comida após um mês sem renda. Além disso, oito a cada dez dessas mulheres já estão com suas rendas em queda.
Para Rudá, a realidade dessas famílias é grave, e logo estarão desesperadas. “Eles não têm abastecimento de alimentação na sua casa. Vamos jogar isso para uma semana. O que nós estamos falando? Estamos falando de famílias desesperadas, vendo gente morrer nas suas casas pelo coronavírus ou familiares passando fome. Você acha que esse pessoal vai ficar quieto?”, comenta.
Dessa forma, para que o Estado brasileiro possa tomar providências e evitar o aprofundamento da crise econômica gerada pela pandemia, é necessário que ele esteja forte. “Então o próprio start do enfrentamento com linhas de ação para enfrentar o desemprego, para questão dos pequenos negócios, de articulação e gestão da crise econômica, vai depender obviamente do papel do Estado presente, forte”, afirma Guilherme de Azevedo.
Entretanto, o professor de Direito ainda pontua que mais do que estar fortalecido, é necessário que ele funcione e tenha um papel de destaque no enfrentamento das situações impostas pela crise. “Não é questão de um Estado grande ou pequeno, mas sim de um Estado eficiente, que realmente se faça presente no cenário de crise, desde o campo econômico, mas especialmente no campo da saúde”.
O liberalismo, que tem como uma das bases as ideias do filósofo britânico John Locke, vem sendo a linha de pensamento dos últimos governos no Brasil. Para o cientista político Rudá Ricci, estas ideias fizeram uma quebra no sistema de seguridade social brasileiro. “No Governo Temer e neste início do Governo Bolsonaro, tivemos uma desestruturação muito importante das políticas compensatórias, das estruturas de seguridade social. Nós tivemos uma quebra de várias políticas institucionalizadas no Brasil”, assinala Rudá.
Além disso, ele analisa o cenário mundial e diz que o liberalismo, neste momento de pandemia, entrou em falência pois não consegue dar respostas à atual crise. “Não há um lugar no mundo em que esse discurso continue sendo praticado e tenha gerado algum tipo de política que faça frente a essa crise mundial. Nenhum. Nem Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha. Nenhum deles”, afirma.
A agenda liberal vem tomando espaço no Brasil desde a queda da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Com a ascensão do vice, Michel Temer, diversas ações nesse sentido foram tomadas. Privatizações, reformas trabalhista e previdenciária, terceirização, entre outros.
A ideia que liberais brasileiros pregam de distanciamento do Estado, tornando-o menor, foi colocada em xeque na crise sanitária e econômica em que o país mergulhou. “A gente tem observado que setores mais refratários, na perspectiva mais anti-estado, tem que ceder o espaço um pouco da sua linha ideológica para perceber que o Estado tem que se fazer muito presente e ele acaba sendo a grande ferramenta de gestão da crise”, comenta o professor de Direito Guilherme de Azevedo.
Para o economista Guilherme Mello, o liberalismo está sendo colocado em xeque em várias dimensões, principalmente quando se fala na ideia de livre mercado. “Países que não têm um sistema de saúde robusto e têm pouca capacidade de coordenação do Estado sofrem mais. Essa importância reiterada na capacidade de organização do Estado e da questão produtiva, da questão da ciência, depõe contra uma estratégia mais liberal.”
O economista e professor Guilherme Santos Mello reflete sobre a consistência das ideias liberais ao redor do mundo
Conforme dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgados na última terça-feira (14), enquanto países emergentes terão uma queda de 1% em seu PIB, o Produto Interno Bruto brasileiro terá uma retração cinco vezes maior neste ano, fechando em 5,3% negativos. Em 2021, a projeção aponta que o país terá uma recuperação também lenta, alcançando um possível índice de crescimento de 2,9%.
Contudo, é necessário observar os movimentos que o governo fará para que o Brasil saia do vermelho. Rudá Ricci afirma que o liberalismo não dá saída ao país e que se deve tomar medidas contrárias a essa linha de pensamento. “Vamos adotar políticas que não são liberais, eu não tenho dúvida disso. É uma questão de tempo e velocidade. Nós vamos ter que adotar, eu só não sei a radicalidade, porque eles não são convictos, eles não são formados nessa visão conceitual teórica”. O cientista político afirma ainda: “Não tem saída. O liberalismo não dá saída para o Brasil nesta crise.”
Apesar das iniciativas de apoio do governo à sociedade, em meio à pandemia, como garantia de renda para os mais vulneráveis, medidas de apoio às micro e pequenas empresas, e de socorro ao sistema financeiro, para Guilherme Mello elas são poucas e foram implementadas muito tarde.
“A gente realmente demorou. Até porque o governo se nega a admitir a gravidade desta crise. E, quando admite, ele sempre parte do princípio de que essa crise é uma crise passageira e daqui a três meses será retomado o caminho das reformas e da austeridade no qual apostava e o Brasil vinha apostando nos últimos cinco anos e que, convenhamos, tem fracassado.”
Além disso, o economista acredita que existam algumas ações que podem ser feitas no pós-crise. Mas, para ele, a primeira delas é o governo assumir a gravidade do momento. “Acho que tem várias coisas que o Brasil pode se propor a fazer. A primeira delas é admitir a gravidade da crise, melhorar essas medidas econômicas, como de apoio às empresas. Mais créditos, mais recursos, mais coordenação e organização para o enfrentamento da crise”, afirma.
Quais as saídas para o pós-crise no Brasil? O economista Guilherme Santos Mello apresenta alguns pontos
Como garantir minimamente o Estado de Bem Estar Social nesta pandemia?
Em primeiro lugar, o Estado de Bem Estar Social brasileiro sempre foi raquídico. Ele nunca foi potente, bem estruturado. Nós tivemos uma formatação inicial com o Getulismo e depois tivemos um período muito grande na história do Brasil, em que este Estado foi agregando uma ou outra política. Mas só depois da Constituinte de 1987 e da Constituição de 1988, é que nós formatamos um pouco melhor e, mesmo assim, nos anos seguintes, principalmente, a partir do governo FHC, nós tivemos uma série de quebras de regras gerais na constituição, neste foco. Então só para deixar mais claro que já estávamos debilitados.
No Governo Temer e neste início do Governo Bolsonaro tivemos uma desestruturação muito importante das políticas compensatórias, das estruturas de seguridade social. Seguridade envolve previdência, saúde e assistência social. Nós tivemos uma quebra de várias políticas institucionalizadas no Brasil. Principalmente a mais importante quebra, que foi o congelamento de gastos primários por 20 anos. Existem estudos, inclusive ingleses, que já indicavam que o Brasil entraria em colapso em cinco anos. E é por isso que esse projeto, essa lei, ela tem que ser revisitada em cincos anos depois de aprovada. Porque o Brasil entra em colapso em termos de política social, daqui a pouco. Daqui a dois anos, três anos. Pois bem, nós teríamos que reverter esse cenário de ultraliberalismo, cujas premissas foram elaboradas pelos empresários.
Nós não temos uma estrutura mínima de reorganização do Estado. Porém, a crise que nós vamos mergulhar, ela é tão profunda, do ponto de vista do desemprego, do desalento, do aumento da fome no brasil. Sem contar com a crise sanitária, com as mortes que vão envolver principalmente moradores de favela, de baixa renda e das áreas mais inóspitas, onde você não tem hospitais, serviços médicos de atendimento emergencial. Nós estamos sendo obrigados a fazer todos os liberais brasileiros, em especial os economistas, bandearam para uma visão justamente Keynesiana de reforço do Estado de Bem Estar Social. E o governo já abriu a primeira porta, que é a ajuda emergencial de R$ 600,00. Ou seja, isso não tem absolutamente nada com a concepção liberal de FIESP, da FEJAN, do Paulo Guedes,de todas as reformas que foram aprovadas pelo Congresso Nacional — Reforma Trabalhista, o Congelamento em 20 anos dos gastos primários, que citei anteriormente. Ela vai na contramão de tudo isso e retoma a concepção, para citar apenas um exemplo, do Bolsa Família. Então altera completamente essa lógica. A questão então agora é: qual será a velocidade de transformação e de reconversão das políticas públicas brasileiras de ultraliberalismo, focado no estado mínimo, para uma retomada do estado providência, em que a constituição de 1988 está circunscrita.qual será a velocidade de transformação e de reconversão das políticas públicas brasileiras de ultraliberalismo, focado no estado mínimo, para uma retomada do estado providência, em que a constituição de 1988 está circunscrita.qual será a velocidade de transformação e de reconversão das políticas públicas brasileiras de ultraliberalismo, focado no estado mínimo, para uma retomada do estado providência, em que a constituição de 1988 está circunscrita.
O liberalismo, que propõe o estado mínimo, foi colocado em xeque neste momento?
Absolutamente. Ele entrou em falência. Não há um país do mundo que está conseguindo dar respostas claras. Talvez o Viktor Orbán, na Hungria, mas é uma pessoa muito específica, é uma liderança de extrema direita, muito peculiar. Mas no restante, não há um lugar no mundo em que esse discurso continue sendo praticado e tenha gerado algum tipo de política que faça frente a essa crise mundial. Nenhum. Nem Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha. Nenhum deles.
Então o senhor imagina que esse sistema vigente no Brasil desde 2016, com a queda da presidente Dilma, vai ser repensado?
Será obrigatório repensar. Ou nós teremos uma crise, a maior da história do Brasil e com consequências gravíssimas, inclusive na segurança pública. Vou citar alguns dados para ficar mais claro. Nós temos hoje no Brasil, sem carteira assinada, 40 milhões de brasileiros. Obviamente, esses 40 milhões residem com outras pessoas, que dependem dessa renda. Digamos que sejam dois. Estamos falando de 80 milhões de brasileiros. Acontece que temos mais oito milhões de Microempreendedores Individuais-MEI. Esse pessoal, grande parte deles, a gente ainda está projetando isso, está em uma situação difícil nesse momento. Estamos falando de porteiros, segurança privada, de empresas que fecharam as portas, empresas terceirizadas e cooperativas de limpeza, de alimentação e também de suporte tecnológico interno dessas empresas. Todo esse pessoal uberizado. Todo esse pessoal está em crise. E o pior é que nós vamos entrar em colapso total daqui um mês.
Ou seja, desse mês de abril até final de maio, quando a curva das mortes e do número de infectados por coronavírus começar a cair, teremos um colapso não só do sistema de saúde, mas do sistema social. Nós temos uma pesquisa recém publicada e divulgada pela Central Única das Favelas (CUFA), que revela que 70% dos moradores de todas as favelas do Brasil já tiveram queda de renda e nem começamos a entrar na crise.
Essa pesquisa que eu acabei de falar, divulgada pela CUFA, indica que metade da população de favela, se parar de trabalhar e de vender seus serviços, entram em colapso em três dias. Eles não têm abastecimento de alimentação na sua casa. Vamos jogar isso para uma semana. O que nós estamos falando? Estamos falando de famílias desesperadas, vendo gente morrer nas suas casas pelo coronavírus ou familiares passando fome. Você acha que esse pessoal vai ficar quieto? Aliás, algum tipo de valor moral não daria guarida pra essa família buscar alimento e sustento para sua família? É disso que estamos falando. Então a minha questão é: vamos ficar com esse discurso ultra ideologizado bolsonarista, sem sentido algum e brigando com a realidade? Vamos adotar esse discurso de alguns empresários fanáticos, dizendo que devemos ter o mais rápido possível o maior número de brasileiros infectados pelo coronavírus e mortes, para a gente sair o mais rápido possível, em um, dois meses? Nós vamos apostar nisso, ou não? Porque nós somos um país de 220 milhões de habitantes e quantos empresários nós temos que têm essa visão? Ou quantos bolsonaristas? Nós tivemos uma nova pesquisa do XP que informa que o bolsonarismo está em queda. De 30% já caiu para 27%. Então é evidente que a intervenção e a tutela dos militares no Governo Bolsonaro, foi implantada justamente pra isso. Nós vamos adotar políticas que não são liberais, eu não tenho dúvida disso. É uma questão de tempo e velocidade. Nós vamos ter que adotar, eu só não sei a radicalidade, porque eles não são convictos, eles não são formados nessa visão conceitual teórica. Pode ser que eles fiquem saltitantes, com movimentos erráticos. Mas não tem saída. O liberalismo não dá saída para o Brasil nesta crise.
Com essa crise houve um aprofundamento das desigualdades. A renda básica emergencial ajuda a reduzir esse aprofundamento?
A renda emergencial é muito necessária nesse momento, mas ela não é suficiente para segurar a renda média do brasileiro. O PIB já se projeta um déficit de crescimento de 3% em relação ao ano passado, que teve um crescimento pífio de 1%. Então nós estamos em uma situação muito difícil. E o pior, nós vínhamos de um processo desindustrialização acelerado. Para ter uma ideia, a participação das indústrias na década de 1980 no PIB brasileiro era de 30%. Toda riqueza produzida vinha da indústria. Hoje está abaixo de 10%. Então isso significa que nós temos que importar. Estamos vendo agora a importação de máscaras e equipamentos de segurança. Estamos tendo que comprar coisas que nós produzimos facilmente.
É uma história que começa com o Collor, que vai desindustrializando e abrindo, de maneira irresponsável, o mercado brasileiro, enquanto que os países poderosos faziam o inverso. Nós não conseguíamos vender suco de laranja para os Estados Unidos. O mundo inteiro pratica protecionismo. Aqui no Brasil, os economistas que foram estudar nos Estados Unidos, não conseguem pensar pelas suas próprias cabeças e aplicam teorias que aprenderam lá e que os Estados Unidos não pratica. E são estes economistas que vem fazendo essas reformas no Brasil há algum tempo. É um pessoal despreparado, que não tem capacidade alguma de pensar um país como o nosso e na verdade todas as reformas que eles aplicaram até agora, quem foi beneficiado foram eles mesmos e os empresários.
Como historicamente o Estado brasileiro se portou em meio a crises enfrentadas? Há diferença de gestão pública dependendo da linha do governo?
Sempre houve. Em momentos de grande crise nacional, intervenção do Estado. Na passagem da República Velha para o Getulismo, em momentos de calamidades, mudança da moeda, tabelamento de preços do mercado. Isso não é só no Brasil. A saída da crise depois da grande depressão de 1929 que os Estados Unidos, que os ultraliberais brasileiros falam que é super liberal e que nunca foi, a intervenção do New Deal, do Roosevelt, foi duríssima. Ele não fez acordo com empresários. Ele impôs o que tinha que ser produzido, quantos deveriam ser empregados e canalizou parte do dinheiro público para financiar os gastos básicos dos trabalhadores. Ele criou um triângulo potente, que é a agenda rooseveltiana, que o Estado nacional, a União, concentrou orçamento e fez investimentos gigantescos, controlando inclusive as empresas. E o Brasil seguia essa cartilha.
Neste momento nós temos um presidente que está se revelando incapaz, inexperiente, e fica se apoiando em teorias conspiratórias e fantásticas, ao invés de pôr o pé no chão e olhar cara a cara os brasileiros e pensar qual é a solução sem ideologia, qual é a solução para salvar o país. Ele vai ficar na história do país como o pior presidente da república, mas não é só por ser incapaz, porque por causa dele podem morrer milhões, milhares de brasileiros. Por irresponsabilidade dele. Isso tem que ficar muito claro. Eu espero que ele agora, tutelado pelos militares, diminua a adrenalina e comece a governar o país, com a estatura que nós necessitamos em um momento de crise gravíssima, que deve ser a maior da história da República Brasileira.
Qual o modelo que o senhor imagina ser o ideal, após o país superar esse momento?
Não há dúvida nenhuma que uma política de intervenção estatal de reorganização da vida social e algumas ações emergenciais. Primeiro: comprar ou produzir fazendo reconversão nas indústrias brasileiras, produzir os equipamentos e alimentos necessários para esse momento. Nós não vamos ter problemas de abastecimento, mas nós temos problema de distribuição. Segundo: criar redes públicas de distribuição desses alimentos e equipamentos com coordenação regional. Isso significa, então, uma terceira proposta: que nós temos que criar comitês de abastecimento e fiscalização da vida. A ideia é essa mesmo, de fiscalização e defesa da vida, em todas as mesorregiões do Brasil. Isso não é pouca coisa. E finalmente nós começarmos a repensar as formas de intervenção do estado necessárias. Ou seja, nós temos que recuar nesse ultraliberalismo que o país se meteu, em que só os ricos conseguem ter lucro e hospitais. E devemos começar a pensar não nos 5%, 1% da população, mas pensar nos 90% da população brasileira, nos 95%. Eu acho que isso é fundamental. Uma coisa precisa ficar clara: não existe em sociedade e civilização liberdade total. Essa ideia é equivocada. Jean-Paul Sartre já falava da contradição entre a liberdade individual dos seres humanos e a ética da Liberdade. Eu não posso fazer o que eu quero, o que eu penso.
Por exemplo, em um momento como esse eu não posso sair de casa, eu não posso abrir o restaurante, não posso abrir meu bar, não posso abrir minha academia de ginástica. Acabou. E isso nós temos que aprender no Brasil. Esse discurso foi montado desde os anos 1990 e está na hora de aprendermos que viver em sociedade tem que ter regras, por isso que criamos o Estado. Quem disse isso foram os contratualistas. Eu tô falando de Hobbes, de Rousseau, de Locke, o pai do liberalismo. Eu acho que está na hora da gente reaprender uma lição básica do processo civilizatório: não existe liberdade total para os indivíduos em sociedade. Não existe.
O senhor consegue enxergar um aproveitamento por parte de políticos para tomadas autoritárias? Acha que a ameaça de demissão do ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 6 de abril, pode ter sido um exemplo dessa posição?
Não, eu não acho. O Palácio do Planalto neste momento está conflagrado, é uma guerra interna. Os militares no governo perceberam que só havia duas alternativas: uma tutela rigorosa sobre Bolsonaro e o bloco de ministros fanáticos vinculados a ele ou a queda do Bolsonaro. A mais ou menos uma semana, dez dias, a queda era eminente. Naquele momento da do panelaço, que nós temos uma sequência em março, e aí continuou por vários dias. Naquele momento, inclusive com a fala do Bolsonaro dizendo o coronavírus era uma gripezinha, nós tivemos uma rearticulação do bloco político de direita no Brasil. Ele se desvinculou desse fanatismo de extrema direita. O expoente maior público passou a ser o governador de São Paulo, João Dória. Mas, em seguida, o presidente da Câmara de Deputados, que na verdade é o presidente do Congresso, de fato, o Rodrigo Maia também se descolou. Logo na sequência, Paulo Guedes, Moro e Mandetta se uniram e tiveram apoio de militares.
Eu tive informações de reunião do Ministério da Saúde, no ministério da Saúde, em um sábado, se não me engano dois a três sábados atrás, em quem que todos os técnicos diretores do Ministério da Saúde tinham apresentado carta de demissão ou ameaçado de apresentar uma carta de demissão coletiva. Parte dos militares apoiaram os técnicos e o Mandetta. Por isso, decidiram então por essa tutela no presidente Bolsonaro. Por que a outra saída seria o impeachment ou afastamento do presidente por problemas de saúde mental. Uma avaliação psiquiátrica e psicológica da sua capacidade de tomar decisões. Se isso acontecesse, os militares perderiam espaço no Governo. Eles teriam que negociar justamente com João Doria e com Rodrigo Maia. O que aumentaria o poder desse pessoal e cargos comissionados. Então os militares preferiram cercar Bolsonaro.
O Bolsonaro não fez uma ameaça sutil, ele disse claramente que iria demitir, ele informou da demissão do Mandetta. Ele disse que tinha a caneta e ele não usou caneta. Isso mostra a sua fraqueza. Ou seja, ele já está cercado. Não vou dizer aqui que já está em uma camisa de força, mas ele está cercado pelos militares nesse momento. Aumentou, portanto, o poder dos Ministros sobre o Presidente da República. É uma crise imensa no Governo.
Portanto não tem, absolutamente, chance alguma, ainda mais em uma crise social que eu desenhei agora há pouco, de nós termos qualquer tipo de atitude autoritária, golpe militar, isso não existe, a possibilidade não é nem remota, ela é inexistente. Os militares mesmo estão dando condições de eu dizer isso. Eles têm uma avaliação técnica, que agora está ficando pública, que converge a avaliação deles sobre a crise com a do ministro Mandetta. Então parece que o nosso Presidente está absolutamente isolado e vem perdendo apoio popular, inclusive nas redes sociais aceleradamente.
Como o senhor analisa o posicionamento das outras instituições frente a crise, como Congresso Nacional e os Ministros do STF?
É muito tímido. A gente percebe que a política nacional e as Instituições, a política pública de uma maneira geral, ela foi desmantelada. Nós temos lideranças e autoridades com uma baixa capacidade de protagonista e de assumir uma liderança, uma responsabilidade nacional. Já tivemos tantas vezes isso no Brasil, eu lembro, pra te citar um exemplo, na campanha de fora Collor, de uma reunião na Assembléia Legislativa de São Paulo em que Ulysses Guimarães virou para os estudantes e todas as organizações estudantis e falou: “eu quero agradecer de coração o que vocês fizeram, mas agora é hora de vocês irem para casa e deixar com os profissionais da política no nosso Congresso. Agora nós resolvemos”. Tinha pessoas que assumiam a responsabilidade sobre uma cultura racional da política brasileira. Agora nós não temos.
Estamos vendo uma esquerda debilitada, que não consegue assumir um papel de orientação da população. Isso não é disputa eleitoral. Nós temos que salvar os brasileiros. Ninguém fala publicamente o que tem que ser feito, vir a público divulgar um site de propostas ou então o que eu tenho que fazer para me resguardar, se eu tiver tais sintomas a quem recorrer, o que tem de serviço online para não sair de casa, como que eu posso fazer para ter renda mesmo estando em casa. Ou seja, esse é hora de se pensar um governo paralelo de centro-esquerda. Nada.
Do outro lado nós temos uma direita civilizada, portanto, não bolsonarista que está absolutamente tímida, acantonada na sua estância de gestão. Rodrigo Maia, no Congresso, tentando votar rapidamente, mas não fala com a população brasileira. E o João Dória se lançando efetivamente no controle do estado na medida em que nós estamos vendo a explosão dos dados possivelmente de gente infectada há 15 dias atrás ou 20 dias atrás. Não é que as ações dele não estão dando resultado, é que as ações deveriam ter sido tomadas lá atrás, possivelmente pelo presidente da república.
Como rediscutir o Estado brasileiro depois da crise?
Nós vamos ter situações de estruturas paralelas, infelizmente, ao Estado, ou estruturas paralelas as políticas institucionalizadas. Não há como uma pessoa que está morrendo ficar aguardando a mudança do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Ela não vai aguardar.
Eu vou citar um exemplo. Aqui em Minas Gerais, um deputado estadual chamado Jean Freire, que é médico, e a origem dele é o Vale do Jequitinhonha ou Mucuri, um dos dois, que são regiões muito pobres do Estado de Minas, ele resolveu convidar todos os secretários de saúde dessas duas grandes regiões, para uma videoconferência. Eles definiram protocolos comuns, tanto de informação, como de orientação à população, como a de políticas emergenciais.
O governador não faz nada, o deputado, com os secretários municipais de saúde fazem. Isso está acontecendo também entre as Igrejas. Igrejas cristãs, evangélicas, católicas, religiões afro-brasileiras, judeus, espíritas. É muito interessante o que eles estão fazendo. Eles vão criando grandes redes nacionais de colaboradores e de outro lado distribuição e contribuição às famílias carentes de alimentos e remédios. É o Brasil solidário que dá as costas para esse Brasil do Poder, completamente a mercê dos empresários brasileiros que não conseguem, nunca conseguiram, pensar o Brasil. O empresariado brasileiro ele é moralmente frágil e teoricamente incapaz.
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Estado tem papel decisivo em tempos de crise, reforçam analistas. Entrevista com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU