17 Fevereiro 2020
Na disputa sobre a “Querida Amazônia”, eu ouvi várias pessoas compararem a atual freada reformadora de Francisco com a de Paulo VI no biênio 1967-1968, que envolveu vários assuntos e teve sua manifestação mais forte com a Humanae vitae. Aqui, relembro e critico essa comparação, argumentando que Paulo VI, naqueles dois anos, freou todas as reformas, enquanto Francisco, agora, apenas adiou algumas delas.
O comentário é de Luigi Accattoli, vaticanista italiano, em artigo publicado em seu blog, 15-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando sopra o vento do cisma, o papa para: é uma regra não escrita na história do papado que encontrou sua última confirmação na decisão de Francisco de não dar vazão – por enquanto – às reformas da Igreja que lhe haviam sido solicitadas em outubro passado pelo Sínodo da Amazônia.
Uma freada que fez as pessoas que têm idade pensarem em Paulo VI, que, em 1967-1968, parou o caminho das reformas conciliares e promulgou a encíclica Humanae vitae, enquanto se perfilava o cisma dos tradicionalistas, que depois encontrou seu protagonista em Marcel Lefebvre.
Vejo uma primeira disparidade de situações entre a freada montiniana e a bergogliana no fato de que a primeira disse respeito a todas as reformas conciliares que estavam em andamento à época, enquanto a de Francisco – pelo menos por enquanto – diz respeito apenas ao setor amazônico.
Quanto aos amigos que especificamente me propuseram a comparação entre a “Querida Amazônia” e a Humane vitae (1968), direi que ela me parece sugestiva, mas não totalmente apropriada. Ela confronta dois papas que lidam com uma expectativa de novidade que eles consideram que não podem satisfazer: e esse é o lado bom da comparação. Mas que oscila quando se passa para a comparação entre a saída tomada por Bergoglio e a escolhida por Montini.
Paulo VI, com aquela encíclica, disse “não” à expectativa de uma nova atitude sobre os “métodos” para o controle de natalidade, enquanto Francisco não rejeitou o pedido de inovações em matéria de ordenação dos diáconos casados, de papel das mulheres, de rito amazônico. Ele o adiou, e o adiamento decepciona os requerentes, mas não encerra a questão, enquanto Montini tentou encerrar a sua questão.
Ambos os papas se viram diante de uma vasta expectativa de novidade, apoiada pelo favor popular e pela mídia. Mas também da resistência de ambientes fortemente motivados, ativos na própria Cúria Romana. Ambos tiveram que lidar com maiorias reformadoras que haviam se expressado em sede “consultiva”: a Comissão que Paulo VI havia chamado em 1966 para ajudá-lo (Commissio pontificia pro studio popolationis, familiae et natalitatis) e o Sínodo convocado por Francisco (Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica sobre o tema “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, de 7 a 26 de outubro de 2019).
Se Francisco, tendo apurado as resistências às novidades amazônicas, tivesse escolhido uma solução semelhante à de Paulo VI, teria redigido um documento que dizia “não” às reformas, motivando a impossibilidade de aceitá-las. Mas ele não fez isso, nem mesmo nomeou aquelas reformas e escreveu que o texto com o qual elas haviam sido solicitadas – isto é, o documento final do Sínodo – devia ser lido em “toda a Igreja”, a fim de se deixar “enriquecer e interpelar” por ele.
Existe, portanto, uma clara diferença entre o modo de Francisco enfrentar o vento cismático em comparação com Paulo VI. Se, há 52 anos, o papa da Bréscia tivesse escolhido um caminho semelhante ao tomado agora por Francisco, ele poderia ter publicado os dois relatórios majoritários e minoritários da comissão preparatória, convidando toda a comunidade católica a debater sobre eles.
O evento amazônico certifica que o papa – a meio século do Concílio – não decide mais sozinho, e se a decisão não estiver madura, ou seja, não tiver um consenso suficiente, ela é adiada. Também não se sente mais a necessidade de que Pedro dê sempre uma resposta a todas as questões que surgem.
Talvez se possa concluir que a turbulência da Amazônia induziu Francisco a frear a sua corrida reformadora, mas não a interrompê-la. A mudar o ritmo, mas não a parar.
Naturalmente, a situação deverá ser monitorada para ver como prosseguirão nos próximos meses as outras reformas em andamento, desde a da economia à da Cúria, mas, por enquanto, não se percebem freadas em outros setores.
Entre os muitos textos jornalísticos lidos nesses dias, o mais útil a respeito da comparação com os anos de Paulo VI me pareceu ser um de Lorenzo Prezzi, em Settimana News, intitulado “Querida Amazônia: o enigma e o início”, do qual relato esta passagem:
“Talvez será evocada a decisão de Paulo VI na Humanae vitae e o colapso da credibilidade percebido na época em relação ao papado. Na realidade, a posição de Francisco não pode ser sobreposta à de Paulo VI. Ele não escolhe. Ele para antes. Ele se recusa a tomar uma posição que sente que ainda não está madura na Igreja universal. Ou, melhor, deixa à vivência da Igreja na Amazônia a plena liberdade de se mover em um contexto que não excessivamente normatizado. Como se lê no número 94: ‘Isto requer na Igreja capacidade para abrir estradas à audácia do Espírito, confiar e concretamente permitir o desenvolvimento duma cultura eclesial própria, marcadamente laical’. Parece quase que a autoridade eclesial última deixa espaço para as criatividades da vivência, a fim de não uniformizar e clericalizar as novidades. Talvez se possa falar de autolimitação do ministério petrino, sem renunciar à sua autoridade. Somente uma composição criativa original, favorecida pelo Espírito, fará das diferenças e das contradições uma síntese nova. A expectativa do pastor gostaria de favorecer a criatividade do povo de Deus. Será assim?”
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Francisco como Paulo VI e a “Humanae vitae”? Sim e não - Instituto Humanitas Unisinos - IHU