03 Fevereiro 2020
"No contexto de um Estado que hipotecou sua soberania, as ações de libertação têm que mirar o médio e o longo prazo, preparando hoje o terreno para a contra-ofensiva que deverá aguardar o momento oportuno para alcançar êxito", escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, leigo católico, nascido em 1943, doutor em sociologia, ex-professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciência/s da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro de Iser-Assessoria e da Coordenação do Movimento Nacional Fé e Política.
Este texto atualiza a análise publicada em maio de 2019, evitando repetir suas justificativas teóricas e os dados de caráter estrutural [1]. Sua novidade reside no aprofundamento das consequências da derrota do povo brasileiro na guerra de 4ª geração que derrubou o governo Dilma e resultou no atual regime ultraliberal. Quanto ao esquema, o texto segue a forma habitual: o sistema Terra, o sistema-mundo capitalista e o Brasil.
A catástrofe climático-ambiental continua a dar sinais de antecipação. As medidas recomendadas pela comunidade científica internacional no sentido de evita-la continuam sendo promessas vagas. Devemos esperar, portanto, o agravamento das dificuldades climáticas porque a data-limite para estancar o processo é o ano de 2021. Sinal positivo é o Fórum Econômico de Davos receber neste ano a adolescente Greta Thumberg, que deu seu recado de protesto a quem manda no mundo dos negócios e na política: os 2.150 bilionários cuja riqueza equivale à riqueza de mais da metade da população mundial. Mas é preciso ser ingenuamente otimista para acreditar que aquele clube de ricaços (cujo número dobrou depois da crise 2008) abra mão da riqueza que lhe garante status privilegiado para evitar a deterioração da vida na Terra. Noticia-se que uma parte deles aceita abrir mãos de (alguns) privilégios, mas outra parte continua dizendo que o clima é um problema entre outros, e que o importante é o crescimento econômico. Se eles não se mexem em favor da Terra, tampouco se mexem os milionários, os muito ricos ou apenas ricos. Sinal disso são os dividendos da Vale, que superaram as indenizações pelo crime de Brumadinho, levando suas ações a recuperar o valor anterior à tragédia.
Longe do mundo dos milionários e ricaços, porém, cresce na juventude a consciência da Terra como sujeito de direitos e isso poderá trazer resultados positivos para a vida da Terra e da Humanidade. Também os povos originários e tradicionais – exímios cuidadores da natureza – estão assumindo protagonismo no mundo político. Ameaçados de extinção, eles ganharam nova energia. Os novos movimentos sociais, organizados de forma horizontal, como coletivos, despontam como sujeitos do processo que marcará o final do atual modo de produção e consumo capitalista. Ainda é cedo para saber por quanto tempo esses coletivos serão atuantes e qual a sua real incidência nesse processo (porque com a mesma rapidez que se formam, podem se desfazer), mas diante do esgotamento das instituições políticas usadas pelas classes trabalhadoras (partidos, sindicatos, igrejas) é neles que hoje surgem sinais esperançosos de mudança. Ainda que não seja mais possível escapar da catástrofe que se anuncia, ela poderá ser amenizada se esses coletivos conseguirem produzir a real solidariedade universal, como é seu propósito.
A crise financeira de 2008 marca o final do ciclo de acumulação puxado pelos EUA no século 20. A intervenção dos Bancos Centrais injetando alguns trilhões de US dólares no sistema bancário deu-lhe uma sobrevida, mas não alterou o processo de financeirização do capital, que beneficia a concentração da riqueza em poucas mãos. Hoje 147 grupos (dos quais 75% são bancos) controlam 40% do sistema corporativo mundial, de modo que 1% dos habitantes da Terra detêm riqueza igual à dos 99% restantes. Enquanto o capital financeiro se agiganta, os capitais produtivos quase não crescem, exceto no campo polarizado pela China e pela Índia, fazendo que o polo mundial se transfira do Atlântico Norte ao Pacífico.
O poder militar, porém, continua sendo dos EUA, que exibiu sua força ao matar o principal chefe militar iraniano em visita ao Iraque. Não se enquadrando numa operação de guerra, esse atentado confirma que os EUA hoje não se submetem às normas do convívio internacional. E isso alimenta o clima de tensão mundial, que caminha para a intensificação dos conflitos armados.
Essa crise financeira que se encaminha para o agravamento de conflitos militares incide no campo das ideias e das relações políticas como expressão de um mal-estar generalizado. O processo de dissolução da civilização ocidental moderna (capitalista, colonialista, patriarcal e antropocêntrica) está avançando, fazendo eclodir movimentos reacionários ou ultraconservadores – dos quais o bolsonarismo é um exemplo – em diferentes partes do mundo. Sua presença se dá também no campo religioso: os fundamentalismos e a oposição a Francisco atacam intransigentemente as inovações em nome de um passado idealizado. S. Bannon – que respalda os reacionários no campo político (campanhas eleitorais) e no campo religioso e cultural – é um dos cérebros desses movimentos de reação ao processo de construção de uma sociedade planetária. Eles são incapazes de apontar uma solução viável às dificuldades do tempo presente, mas têm a capacidade de demolir as propostas de estruturas sociais, econômicas, culturais e políticas alternativas àquelas da civilização ocidental em decadência. Daí o mal-estar contemporâneo que parece atingir todos os setores da sociedade.
Em muitos lugares da Terra esse mal-estar resulta em guerras. Seu pretexto varia: podem ser questões étnicas, religiosas, políticas, combate ao terrorismo ou às drogas, mas trata-se sempre de eliminar um poder definido como hostil. No final do século 20, as corporações e o governo dos EUA impuseram sua vontade unilateral ao resto do mundo, mas o ressurgimento da Rússia, a emergência da China como maior economia mundial, e a resiliência da União Europeia quebraram aquela hegemonia. Hoje temos um quadro multipolar no qual as tensões se equilibram sem chegar ao confronto direto entre as grandes potências, embora não esteja descartado um conflito de grandes proporções – inclusive com o uso de armas nucleares de baixa intensidade.
A novidade das guerras do século 21 é o uso racional e metódico da informação via internet como meio de ataque a um poder hostil. Trata-se de produzir informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news) que sejam plausíveis para quem as recebe. Difundidas pela grande mídia (TVs, rádios e jornais), redes digitais, ou instituições (Igrejas, ONGs, institutos de produção de ideias), elas são replicadas por quem as recebe, multiplicando-se nas redes virtuais (como o vírus do hacker). Elas agem sobre as consciências no sentido de deslegitimar o inimigo (a acusação mais frequente é de corrupção) até que, fragilizado esse poder seja facilmente derrubado por meios militares, políticos ou judiciais. Essa forma de guerra (chamada híbrida ou de 4ª geração) foi experimentada no Iraque (em 2003) e depois na Primavera árabe. O Irã é alvo constante dessa guerra, mas tem resistido, tal como a Venezuela. Em nossa América, ela foi empregada em Honduras, na Venezuela, no Paraguai e agora na Bolívia. No Brasil, ela conduziu o processo de derrubada da Presidenta Dilma até a eleição de Bolsonaro e mantém-se até hoje como forma de dissuasão a possíveis reações populares contra o regime em vigor.
Para entender essa forma de guerra, é preciso ter em conta que ela não tem um único comando centralizado, mas diferentes nodos – grupos de poder econômico, político, cultural e militar – atuando em vista de seus próprios interesses, mas objetivamente conectados e reforçando-se mutuamente. P. ex.: agências governamentais e fundações dos EUA oferecem bolsas para formar gente que vai pensar e atuar conforme suas leis e valores; agências de segurança interceptam informações que trafegam na internet e definem os alvos para ataques policiais ou econômicos (ver Snowden); sites produzem e falseiam notícias, que são reproduzidas por instituições confiáveis e replicadas na rede virtual; promovem-se manifestações públicas, com repercussão midiática, que enfraquecem as instituições definidas como “hostis”. O resultado é que a grande massa, confundida por notícias disparatadas, acaba sendo levada por argumentos que apela antes para as emoções do que para a razão.
É claro que o sucesso das guerras de 4ª geração requer a cumplicidade de grupos sociais no país alvo. No caso do Brasil, foram os 20.000 muito ricos, que romperam o pacto de 2002 com o PT (que suspendeu as reformas agrária, fiscal e política e a auditoria da dívida pública em troca da governabilidade e do projeto social-desenvolvimentista do governo Lula) e se alinharam com as corporações e o governo dos EUA. Disso resultou o governo Temer-PSDB e a eleição de Bolsonaro, ambos dando cobertura à política ultraliberal: o máximo ao mercado, o mínimo ao Estado de proteção social.
Se aceitarmos a hipótese – plausível, embora sujeita a contestação – de que houve uma guerra de 4ª geração vencida pelas corporações e governo dos EUA com a cumplicidade dos muito-ricos do Brasil, devemos explicitar suas consequências. A primeira delas, já mencionada em textos anteriores, foi a derrota histórica das classes trabalhadoras e dos setores nacionalistas [2]. Outra consequência foi a imposição de um regime de subordinação do Estado brasileiro aos vencedores. Para facilitar a compreensão, podemos fazer um paralelo com o regime em vigor na França após sua derrota diante do exército alemão em 1940 [3]. O Marechal Pétain, herói da Guerra de 1914-18, assumiu o governo do Estado Francês e assinou o armistício que dividiu o território francês em duas partes. Uma, ficou sob controle direto das forças alemãs de ocupação e outra, com cerca de 3/5 do território mais as antigas colônias, ficou sob governo francês com sede na cidade de Vichy. Sua soberania era apenas formal, para permitir a manutenção das relações diplomáticas e o controle das “províncias ultramarinas”, porque de fato só fazia o que não contrariasse a orientação nazista. Por isso, pode ser usado o conceito de “Estado cliente” da Alemanha. Embora contestado por um pequeno setor militar comandado por De Gaule, refugiado na Inglaterra, e por grupos nacionalistas de esquerda, que assumiram a Resistência na clandestinidade, aquele governo sobreviveu até a invasão aliada em 1945, tendo o apoio das classes médias e altas e do clero católico.
É evidente que a realidade do Brasil hoje é muito diferente do que ocorreu na França e em outros países sob ocupação nazista. Mas se houve uma guerra e uma derrota – tal é nossa hipótese de trabalho – o regime aqui imposto não decorre somente de uma troca de governo resultante das eleições de 2018. Novos parâmetros políticos foram estabelecidos pelos vencedores: a Constituição e as instituições republicanas permanecem em vigor, mas seu funcionamento foi enviesado para proteger os interesses das corporações e das empresas a elas subordinadas, em detrimento do trabalho [4]. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, devidamente amparados pelo Ministério Público e pelas Forças Armadas, estão conduzindo a sociedade brasileira na direção do ultraliberalismo econômico. A redução dos gastos públicos com políticas sociais, as privatizações, o favorecimento ao agronegócio, as concessões de exploração mineral na Amazônia e em Territórios Indígenas, e outras medidas já anunciadas são evidências de que aquele projeto avança praticamente sem resistência da sociedade.
A cada semana tomamos conhecimento de novas violações de Direitos assegurados pela Constituição, mas a indignação dos setores democráticos não resulta em punição dos transgressores nem produz efeitos na política: na hipótese mais favorável, o responsável é demitido e outra pessoa toma seu lugar. A cena política é ocupada por falas provocadoras ou disparatadas do presidente, de algum ministro ou ministra e de pessoas de seu entorno, produzindo indignação de um lado e recebendo aplausos de outro. Esses jogos de cena distraem o público enquanto a equipe econômica de P. Guedes faz seu serviço nos bastidores. É importante observar que os resultados nefastos dessa política, especialmente para os setores de média e baixa renda, já são evidentes, mas os equipamentos da guerra de 4ª geração continuam em pleno funcionamento: a Mídia corporativa, as redes digitais, setores importantes das Igrejas evangélicas e católica, e organismos formadores de opinião tratam de camuflar as notícias e, sempre que possível, atribuem os malefícios atuais aos governos passados ou os apresentam como remédios amargos mas necessários para o País atingir a almejada prosperidade geral. De vez em quando faz-se ouvir a voz de militares – boa parte deles treinados para manter a lei e a ordem dos brancos no Haiti – para lembrar que o atual regime tem seu respaldo e que não serão tolerados desvios de seu rumo político.
Nesse contexto, é ingênuo propor manifestações de massa, greve geral ou ocupações de terra, assim como é ingênuo pensar que uma vitória eleitoral possa mudar o regime. Há que se disputar as eleições municipais, pelo menos para dificultar o avanço do projeto ultraliberal em âmbito local e constituir mandatos em defesa das causas populares, mas sabendo que elas se limitam a reduzir danos. Também a atuação nos espaços sindicais, de associações civis, movimentos organizados e Igrejas deve ser conduzida por objetivos claros: minimizar o alcance da política econômica ultraliberal e de seus efeitos colaterais. No contexto de um Estado que hipotecou sua soberania, as ações de libertação têm que mirar o médio e o longo prazo, preparando hoje o terreno para a contra-ofensiva que deverá aguardar o momento oportuno para alcançar êxito.
Diante do quadro acima, o atual momento brasileiro deve ser visto como um “deserto fértil”, no dizer de D. Hélder. É o momento de plantar as sementes que alimentarão o processo de criação de um novo modo de produção e consumo justo, construtor da paz e respeitoso da Terra. Essas sementes serão tanto mais fecundas quanto mais forem adubadas pelo exame sereno e crítico dos erros e equívocos cometidos pelas forças populares, que não perceberam a realidade de guerra de 4ª geração na qual foram envolvidas. Uma dessas sementes é a conscientização popular, tema que preciso estudar e aprofundar antes de aborda-lo num futuro artigo.
[1] A pessoa interessada encontrará esses textos aqui ou aqui.
[2] Não cabe aqui analisar seus erros estratégicos, porque a derrota era inevitável devido à superioridade das armas de 4ª geração empregadas pelas forças vencedoras.
[3] Para quem não conhece esse fato histórico, um breve relato encontra-se aqui.
[4] O grupo mais próximo do presidente mostra-se propenso a incluir o governo dos EUA em sua política de submissão, mas outros setores, como o formado pelos militares, resistem e moderam essa política.
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Análise de conjuntura - 2020 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU