31 Janeiro 2020
Autor de numerosas obras, o sociólogo e professor da École Normale Supérieure de Lyon (Centro Max Weber), Bernard Lahire, dirigiu uma grande pesquisa, intitulada Enfances de classe. De l’inégalité parmi les enfants (Infâncias de classe. Sobre a desigualdade entre as crianças, Ed. Le Seuil, 2019). Por conta do estudo, um grupo de 17 pesquisadores conheceu 35 crianças entre 5 e 6 anos e seu círculo familiar, em várias cidades da França, entre 2014 e 2018. Os resultados revelam, a partir de descrições sociológicas de crianças de diferentes origens, a realidade concreta das distâncias sociais, a gênese das desigualdades e os mecanismos em ação desde os primeiros anos que estão na origem de sua reprodução.
A entrevista é de Catherine André, publicada por Alternatives Économiques, 29-01-2020. A tradução é de André Langer.
“As crianças vivem ao mesmo tempo na mesma sociedade, mas não no mesmo mundo”: esta fórmula, que norteou as etapas da pesquisa que você dirigiu, resume bem os resultados. Quais são esses diferentes mundos?
O espaço social em que indivíduos ou famílias estão inseridos é constituído por um continuum de posições sociais. Não há nenhum limite claro – por exemplo, de natureza jurídica, política ou religiosa – que indique, por exemplo, o lugar de passagem das classes populares para as classes médias ou das classes médias paras as classes altas.
E, no entanto, o espaço é bem estruturado por recursos sociais ou propriedades sociais que possibilitam diferenciar não apenas as três principais classes sociais (das mais ricas às mais pobres), mas também as frações no interior dessas classes. E como o espaço tem uma estrutura fractal, mesmo que você observe atentamente as frações de classes, ainda encontrará diferenças internas entre famílias que ainda se distinguem entre si e se hierarquizam.
Essas propriedades que diferenciam as posições são, em primeiro lugar, o volume de capital econômico e cultural, a estrutura de distribuição dos capitais detidos. Possuem tanto capital cultural quanto capital econômico, mais capital cultural que capital econômico ou, pelo contrário, mais capital econômico que capital cultural? Mas também existem diferenças entre os tipos de capitais culturais possuídos (mais literários ou mais científicos; pequenas escolas ou grandes escolas, etc.) e toda uma série de propriedades secundárias, como o tamanho da cidade, o tipo de bairro...
Assim, cada criança nasce em uma determinada família, em um determinado ponto do espaço, que corresponde a condições de existência material e cultural particulares. E essa simples inscrição que o bebê não escolheu determinará fortemente o destino ou o horizonte de possibilidades que será o seu.
E, finalmente, todas essas posições estão sujeitas a transformações históricas, dependendo do estado da economia, dos fluxos migratórios, das transformações do sistema escolar... Mas a tendência subjacente é a reprodução das desigualdades, porque cada nova geração inicia com recursos mais ou menos grandes ou com desvantagens mais ou menos pesadas. As diferenças são geralmente mantidas, ou até aumentadas, exceto quando políticas econômicas, sociais, escolares, culturais dificultam essas lógicas reprodutivas.
Esses mundos são estanques, pelo menos até a entrada na escola?
Os ambientes de fato pouco se misturam. A simples inscrição espacial, que obviamente depende do capital econômico acumulado, determinará os tipos de encontros sociais possíveis e não possíveis, os tipos de atividades ou instituições culturais ou esportivas frequentadas ou não-frequentáveis... E mesmo quando as crianças de classes ou frações de classe diferentes estão nas mesmas salas de aula, a lógica das afinidades sociais faz com que se encontrem com base em semelhanças sociais, de acordo com a lógica de quem se parece. Também vemos a reprodução de lógicas de liderança que levam algumas crianças a tomar iniciativas, liderar e dominar as outras nesses grupos.
Não começamos do zero no nascimento. O que a pesquisa indica sobre a preeminência do “processo de acumulação cultural” na trajetória futura?
Em primeiro lugar, há perenidades mais ou menos longas do capital cultural. Alguns herdaram grande capital cultural ao longo de várias gerações, ao passo que outros são a primeira geração a conquistá-lo. Por exemplo, algumas das crianças da nossa pesquisa têm avós que já ingressaram no ensino superior. Elas estão cercadas familiarmente de pessoas, avós, tios e tias..., portadores de capitais culturais.
E depois, são práticas linguísticas pedagogicamente conformes, jogos pedagógicos e culturais, práticas de leitura, passeios culturais aproveitáveis em termos escolares, como visitas a museus, idas a bibliotecas, teatros ou concertos. Cada vez, são saberes, hábitos e códigos culturais que são internalizados ou não desde o nascimento da criança.
Você fala de vidas “diminuídas” sobre crianças que estão muito longe das lógicas escolares. Como essas enormes diferenças entre as crianças influenciam na aquisição de competências e nas possibilidades de cada uma em relação às avaliações, que começam desde a grande seção do jardim de infância?
Tomemos, por exemplo, os modos de falar. Dependendo do ambiente social, a atenção dada à boa pronúncia, ao domínio de um vocabulário preciso e diversificado, ao domínio da sintaxe correta, é mais ou menos grande e isso é fundamental na escola. Se você pronunciar corretamente as palavras do idioma, se for “repreendido” ao pronunciar incorretamente uma palavra, é mais provável que consiga escrevê-la mais tarde.
Do mesmo modo, o hábito de ouvir uma linguagem explícita, lexicamente rica e sintaticamente correta prepara para um exame oral escolar e para uma apropriação das formas da linguagem escrita. Da mesma forma, ao ouvir histórias lidas todas as noites ou várias vezes ao dia, você adquire o hábito de certas convenções linguísticas e internaliza estruturas narrativas que saberá reconhecer quando aparecerem na escola.
Culturalmente, academicamente, existem verdadeiros abusos de informações privilegiadas no sentido de que algumas crianças estão preparadas desde as primeiras interações para serem academicamente relevantes, enquanto outras descobrem tudo na escola. Assim todas as apropriações iniciais da cultura alfabética fazem com que algumas crianças às vezes já saibam ler antes de ingressar no aprendizado escolar sistemático. E, cada vez mais frequentemente, os pais das classes médias e especialmente altas se esforçam para iniciar muito precocemente seus filhos nas línguas estrangeiras, em particular o inglês. Novamente, esta é uma vantagem e um avanço significativo que é obtido.
O registro das desigualdades no corpo começa muito cedo, com seu prolongamento psíquico. Como isso afeta a autoestima, a qualidade e a expectativa de vida?
Poderíamos dizer, antes de tudo, que as diferenças objetivas estão associadas às diferenças subjetivas, porque as crianças também são desiguais em sua autoestima, em seu nível de confiança. Quanto mais você vê seus pais terem poder sobre o mundo e os outros, pela facilidade econômica, mas também pela facilidade linguística e cultural, mais você tem uma espécie de seguro social que o apoia em sua ação. Ser autoconfiante, sentir-se capacitado para falar, tomar decisões, liderar..., esses são recursos que se diz serem psicológicos, mas que são socialmente determinados.
Além disso, vemos que as práticas alimentares mais ou menos preocupadas em evitar alimentos muito gordurosos, doces demais, salgados demais, assim como acessos desiguais aos cuidados médicos, fazem a cama das diferenças no capital saúde de uns em relação aos outros. Sabemos que as condições materiais de existência, mas também as informações desiguais em termos de alimentação, atividade física ou assistência médica, acabam levando a diferenças significativas na expectativa de vida segundo as classes sociais.
Esta pesquisa mostra quantas desigualdades atravessam a moradia, a alimentação, a saúde, a cultura... Qual é a parcela de responsabilidade das políticas públicas na perpetuação das desigualdades e em seu agravamento nas últimas décadas?
Ela é considerável. Somente o Estado é capaz de reverter as tendências desigualitárias de nossas sociedades, de reduzir as lacunas existentes entre os grupos através de políticas redistributivas. Isso pressupõe uma política multissetorial e proativa. Mas, durante várias décadas, os governos sucessivos abandonaram a ambição democrática de reduzir as desigualdades para fazer do Estado o meio de ajudar os mais poderosos, os mais ricos, economicamente primeiro, e culturalmente depois, a prosperar e manter ou aumentar seus privilégios.
O atual governo está apenas prolongando e acentuando o que começou a acontecer apenas alguns anos depois que os “socialistas” chegaram ao poder. Hoje, estamos atacando agressivamente todos os serviços públicos, mas isso significa atacar a educação, a saúde, a assistência social, o transporte... e estamos obcecados em reduzir o número de funcionários. Isso significa desigualdades cada vez maiores, menos ajuda, recursos comuns que enfraquecem ou desaparecem, e tudo em nome da razão econômica.
Você acha que a sociedade e o Estado “se acostumaram” a esse drama repetido de desigualdades?
A violência objetivamente infligida a grande parte da população, que viu suas condições de moradia, de trabalho, sua renda, suas possibilidades de lazer e hoje suas esperanças de uma aposentadoria digna se deteriorarem, é como que naturalizada. Muitas pessoas se acostumam a ver as desigualdades como uma espécie de paisagem natural em nossas sociedades. Esquecemos que são vidas humanas que são reduzidas, restringidas ou constrangidas e, às vezes, destruídas por isso. Existe uma espécie de despersonalização de toda a crueldade que isso implica.
O que a escola pode fazer diante de toda a gama de desigualdades e seu emaranhamento, que preexistem?
Parece-me importante dizer que a escola não pode fazer tudo sozinha. Ela não é responsável pelas condições materiais de existência das famílias dos alunos, pela distribuição desigual dos capitais escolares entre a população. Os professores veem crianças chegando à escola em estados muito diferentes porque evoluíram em contextos sociais muito diferentes.
Portanto, é claro que a escola pode contribuir no combate às desigualdades, por sua própria ordem. Por exemplo, quanto maior o número de adultos encarregados dos alunos, menores são as turmas, mais podemos implementar pedagogias racionais baseadas na explicitação dos conhecimentos e nas formas de se apropriar deles, mais podemos permitir àqueles que não foram introduzidos na cultura escolar no ambiente familiar poder sair dela. Mas se as políticas públicas não fizerem nada em todas as áreas onde existem desigualdades, essas ações terão pouco efeito.
A escola a partir dos dois anos seria capaz de mudar o jogo?
Todos os dados são muito claros neste ponto: uma escolarização precoce é benéfica para as crianças das classes populares. Isso é lógico, pois quanto mais cedo a escola intervém, mais as crianças estão preparadas para se adaptar às situações escolares e adquirir os conhecimentos escolares.
O que emerge dessa pesquisa não confirma o caráter apresentado como igualitário da meritocracia?
A sociologia da educação desafia essa ideologia do mérito. Dizer que todos aqueles que têm sucesso são aqueles que trabalharam muito é um truque ideológico. Quando vemos aqueles que trabalham mais na escola, são os alunos das classes preparatórias para as grandes escolas. Não há dúvida de que aqueles que estão nessas classes e que passam nos concursos são merecedores, no sentido de que não obtiveram esses resultados pelo sangue, pelo status exclusivo de seus pais ou por alguém que indica.
Mas devemos nos perguntar quem pode chegar a uma classe preparatória. Quais crianças têm as competências e a energia escolares necessárias para poder viver esses anos de reclusões e de treinamento excessivos? Naturalmente, são aquelas que vêm das famílias mais dotadas culturalmente. A meritocracia é uma ideologia que faz esquecer as condições de possibilidade de um intenso investimento na educação.
E, é claro, ela é usada principalmente para justificar os vencedores da competição escolar que pensarão que o que está acontecendo com eles é normal e merecido, pois eles trabalharam mais e tiveram um desempenho melhor do que os outros.
Por que justificamos determinadas desigualdades? Como as diferentes classes – e as relações de dominação, incluindo homens/mulheres – interagem entre si, mesmo inconscientemente?
Max Weber dizia que os dominantes não querem apenas dominar, mas também querem se sentir justificados em existir como existem. É uma justificativa para os outros, mas também para si mesmo. Portanto, ou os dominantes negam a existência das desigualdades, o que hoje é cada vez menos possível, porque as ciências sociais existem e podem medir as desigualdades, fazendo-as aparecer claramente com a ajuda de pesquisas estatísticas, etnográficas e históricas; ou formulam razões para dizer que determinadas desigualdades são justas e que, mais do que isso, são “boas” para a sociedade, por sua dinâmica e seu progresso.
E não existem apenas as desigualdades e as dominações de classe, mas também a dominação dos homens sobre as mulheres, das nações ricas sobre as nações pobres, e essas dominações se combinam, essas desigualdades se acumulam.
Como os resultados desta pesquisa foram recebidos por seus pares e pelos políticos?
Para os pares, precisamos aguardar as apreciações em revistas científicas e, de maneira mais geral, o conjunto dos trabalhos que serão desencadeados por nossa pesquisa. Os retornos até agora tem sido muito positivos e espero que este trabalho tenha desdobramentos, por exemplo, para entender as desigualdades de gênero.
Em relação aos políticos, fui contatado várias vezes por deputados, senadores ou líderes políticos, mas não dei continuidade porque tenho muito cuidado com a instrumentalização política dos pesquisadores. Às vezes, somos chamados para dar uma garantia ou uma legitimidade científica às ações políticas. No entanto, a única coisa que um cientista pede aos líderes políticos é ser lido e, se eles realmente desejam transformar a sociedade em um sentido mais democrático, partir do conhecimento do estado da realidade social.
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“Os governos abandonaram a luta contra as desigualdades”. Entrevista com Bernard Lahire - Instituto Humanitas Unisinos - IHU