28 Janeiro 2020
"Nesse momento, para não perder a luta pelo futuro, é fundamental que a esquerda releia e repense sua própria história, em particular a história de sua relação com o governo, e com a dificuldade de governar e reformar – a um só tempo – uma economia capitalista periférica e extremamente desigual".
A opinião é de José Luís Fiori, professor titular de Economia Política Internacional, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do capitalismo” e do Laboratório “Ética e poder global”, do Nubea/UFRJ e pesquisador do Instituto e Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
Entre 1922 e 1926, Leon Blum desenvolveu uma distinção conceitual entre a “conquista do poder” e o “exercício do poder”. A “conquista do poder” era uma ideia revolucionária embora não fosse necessariamente um ato violento, que levaria a uma nova ordem social baseada em novas relações de propriedade [..] E o segundo conceito - de “exercício do poder” – funcionaria como uma justificação teórica para quando o Partido Socialista Francês fosse obrigado a governar, antes que as condições da conquista do poder estivessem maduras”
D. Sassoon, “One Hundred Years of Socialism”, Fontana Press, London, 1997, p. 53
Ao começar a terceira década do século XXI, a esquerda e as forças progressistas da América Latina estão sendo chamadas para governar o México e a Argentina, e o mesmo deve acontecer no Chile e na Bolívia, depois de suas eleições presidenciais de 2020. E não é impossível que isto se repita no Brasil, e até mesmo na Colômbia, depois de 2022. Num momento em que cresce em todo o continente latino-americano – menos no Brasil, por enquanto – a consciência de que as políticas neoliberais não conseguem atender à necessidade de um crescimento econômico acelerado, nem muito menos a urgência da eliminação da miséria e da diminuição da desigualdade social. Mas em um momento em que também cresce a consciência de que o velho modelo nacional-desenvolvimentista esgotou seu potencial, depois de completar a agenda da Segunda Revolução Industrial, e depois perder o apoio norte-americano, no final dos anos 70.
Mesmo no caso do “social-desenvolvimentismo” do governo Lula, que teve um grande sucesso econômico e social em seus primeiros dez anos, discute-se ainda hoje por que ele não conseguiu dar uma resposta adequada à desaceleração da economia mundial, à perda do seu apoio empresarial e ao boicote parlamentar que sofreu das forças conservadoras. Muitos ainda pensam que tudo foi consequência de algum “erro” de política econômica, quando de fato o governo foi surpreendido por uma grande mutação sociológica interna, promovida por suas próprias políticas, e por um “tufão” geopolítico e geoeconômico internacional que colocou o Brasil de joelhos, numa “bifurcação histórica” em que as fórmulas e soluções tradicionais já não funcionam mais.
Nesse momento, para não perder a luta pelo futuro, é fundamental que a esquerda releia e repense sua própria história, em particular a história de sua relação com o governo, e com a dificuldade de governar e reformar – a um só tempo – uma economia capitalista periférica e extremamente desigual.
O problema da “gestão socialista” do capitalismo só se colocou efetivamente para os partidos socialistas e comunistas europeus no momento em que foram chamados a participar, de forma urgente e minoritária, nos governos de “unidade nacional” e nas “frentes populares” que se formaram durante a Primeira Guerra Mundial e a crise econômico-financeira de 1929/30.[1] Duas situações “emergenciais” em que a esquerda abriu mão – pela primeira vez -–de seus objetivos revolucionários para ajudar as forças conservadoras a responderem a um desafio grave e imediato que ameaçava suas nações.
Naquele momento, os principais problemas eram o desemprego massivo e a hiperinflação, provocados pelo colapso das economias europeias, e os partidos de esquerda não tinham nenhuma posição própria sobre este assunto, que não estava previsto, literalmente, nos seus debates doutrinários do século XIX. Por isso, quando foram chamados a ocupar posições de governo, e em alguns casos os próprios ministérios econômicos, acabaram repetindo as mesmas ideias e políticas ortodoxas praticadas pelos governos conservadores de antes da guerra. A notável exceção foram os social-democratas suecos, que enfrentaram a crise de 30 com uma política original e ousada de incentivo ao crescimento econômico e ao pleno emprego, através das políticas anticíclicas propostas pela Escola de Estocolmo, de Johan Wicksell.
Logo depois da Segunda Guerra, ao conquistar o governo da Inglaterra e da Áustria, Bélgica, Holanda e da própria Suécia, os trabalhistas ingleses e os governos social-democratas desses pequenos países experimentaram, com grande sucesso, um novo tipo de “pacto social” visando regular preços e salários, e um novo tipo de planejamento econômico democrático, inspirado na própria experiência das duas Grandes Guerras. Depois disso, já nos anos 50, a esquerda europeia acabou formulando progressivamente as ideias básicas de duas grandes estratégias fundamentais: a primeira e mais bem-sucedida, de construção do “Estado de bem-estar social”, adotado por quase todos os partidos e governos social-democratas e trabalhistas da Europa, nas décadas de 60 e 70; e a segunda, associada mais diretamente aos comunistas franceses, que propunha a construção de um “capitalismo organizado de Estado”, mas que foi muito pouco utilizada pelos governos social-democratas daquele período, apesar de ter exercido grande influência sobre a esquerda “nacional-desenvolvimentista” latino-americana.
O programa social-democrata de construção do “Estado de bem-estar social” combinava uma política fiscal ativa do “tipo keynesiano”, com o objetivo do pleno emprego, através da construção de sistemas de saúde, educação e proteção social públicos e universais, junto com um forte investimento estatal em redes de infraestrutura e de transporte público. Já o projeto do “capitalismo” propunha a criação de um setor produtivo estatal que fosse estratégico e que liderasse o desenvolvimento de uma economia nacional capitalista dinâmica e igualitária.
A partir dos anos 80, mas sobretudo depois da “Queda do Muro de Berlim” e da crise do comunismo internacional, os socialistas e social-democratas europeus aderiram à grande “onda neoliberal” iniciada e difundida pelos países anglo-saxões. Nesse período, a transição democrática e o neoliberalismo do governo socialista de Felipe González transformaram-se numa espécie de um “show case” que teve grande impacto sobre a esquerda mundial, e de maneira particular, sobre a esquerda latino-americana. Muito mais do que a “deserção keynesiana” do governo de François Mitterrand, com seu estatismo mitigado e “gaullismo europeizado”. González foi eleito com um programa clássico de governo de tipo keynesiano, com um plano negociado de estabilização e crescimento econômico voltado para o pleno emprego e para a diminuição da desigualdade social. Mas logo no início do seu governo, assim como Mitterrand, González abandonou sua política econômica inicial e seu projeto de “Estado de bem-estar social”, trocando a ideia de um “pacto social” pela ortodoxia fiscal e o desemprego, como forma de controlar preços e salários, e abandonando completamente a ideia de utilização e fortalecimento do setor produtivo estatal espanhol, que vinha do período franquista e era bastante expressiva.
No final do século XX, entretanto, já havia ficado claro que as novas políticas e reformas neoliberais tinham diminuído a participação dos salários na renda nacional, restringido e condicionado os gastos sociais, acabado com a segurança do trabalhador e promovido um aumento gigantesco do desemprego, sobretudo no caso espanhol. Com o passar do tempo, foi ficando claro que as novas políticas tinham um viés fortemente “pró-capital”, como no caso das políticas anteriores, mas não produziam os mesmos resultados favoráveis aos trabalhadores, como foi o caso do “Estado de bem-estar social” e do pleno emprego do ”período keynesiano”. Como consequência, a esquerda europeia sofreu sucessivas derrotas eleitorais e acabou perdendo inteiramente sua própria identidade, ao contribuir para a destruição de sua principal obra, que havia sido o “Estado de bem-estar social”. Culminou com o caso dramático da vitória e humilhação sucessiva, pela União Europeia, do governo de esquerda de Alexis Tsipras, na Grécia, em 2015. Dali para a frente, o que se assistiu foi um avanço generalizado das forças de direita e uma verdadeira “ressaca progressista” que só começou a se dissipar recentemente, com a vitória eleitoral e a formação dos governos de esquerda em Portugal e na Espanha, apesar de ainda não se ter uma perspectiva bem clara sobre o seu futuro nesta terceira década do século XXI.
Na América Latina, a história da esquerda e de sua experiência governamental seguiu uma trajetória diferente da Europa, mas sofreu grande influência das ideias e estratégias discutidas e seguidas pelos europeus. De forma muito sintética, pode-se afirmar que tudo começou com a proposta revolucionária do Plano Ayala, apresentado em 1911 pelo líder camponês da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata. Zapata propunha a coletivização da propriedade da terra e sua devolução à comunidade dos índios e camponeses mexicanos. Zapata foi derrotado e morto, mas seu programa agrário foi retomado alguns anos depois, pelo presidente Lázaro Cárdenas, um militar nacionalista que governou o México entre 1936 e 1940 e criou o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país durante quase todo o século XX. O governo de Cárdenas fez a reforma agrária, estatizou as empresas estrangeiras produtoras de petróleo, criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comércio exterior da América Latina, investiu em infraestrutura, fez políticas de industrialização e proteção do mercado interno mexicano, criou uma legislação trabalhista, tomou medidas de proteção social dos trabalhadores e exercitou uma política externa independente e anti-imperialista.
O fundamental dessa história, no entanto, para a esquerda latino-americana, é que esse programa de políticas públicas do governo de Cárdenas se transformou, depois dele, numa espécie de denominador comum de vários governos latino-americanos – “nacional-populares” ou “nacional-desenvolvimentistas” – como foi o caso de Perón, na Argentina; de Vargas, no Brasil; de Velasco Ibarra, no Equador; e de Paz Estensoro, na Bolívia. Nenhum deles era socialista, comunista ou social-democrata, nem mesmo era de esquerda, mas suas propostas políticas e posições no campo da política externa se transformaram numa espécie de paradigma básico que acabou sendo adotado e apoiado por quase toda a esquerda reformista latino-americana, pelo menos até 1980.
Em grandes linhas, foram esses mesmos ideais e objetivos que inspiraram a revolução camponesa boliviana de 1952; o governo democrático de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962; o governo militar reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975; e o próprio governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as sanções americanas apressaram a opção socialista, que levou o governo de Fidel Castro à coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. O mesmo modelo que orientaria, mais tarde, a primeira fase da revolução sandinista da Nicarágua, de 1979, e o próprio “socialismo do século XXI”, proposto pelo ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez que voltou a despertar a ira dos Estados Unidos e acabou transformando a Venezuela no segundo país da América Latina a desafiar a Doutrina Monroe. (Continua)
[1] Este artigo reedita, atualiza e desenvolve informações e ideias que apareceram no texto “Olhando para a esquerda latino-americana”, publicado em Diniz, E. (Org). Globalização, Estados e Desenvolvimento, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2007.
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A esquerda e o governo: suas ideias e lições históricas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU