15 Janeiro 2020
Está provocando discussão na opinião pública mundial o livro que trata do celibato do sacerdócio católico. Um tema discutido também no recente Sínodo sobre a Amazônia, de outubro. Naquela ocasião, a assembleia havia se manifestado, por grande maioria, pela ordenação dos viri probati. E é precisamente contra essa abertura que se lançam os dois autores do livro. Uma tentativa extrema da ala conservadora, de condicionar o Papa Francisco? Falamos sobre isso, nesta entrevista, com o teólogo Andrea Grillo, professor de Teologia na Pontifícia Universidade de Sant'Anselmo, em Roma.
A entrevista é de Pierluigi Mele, publicada por Rai, 13-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor, ontem Le Figaro publicou, em exclusiva mundial, alguns trechos do próximo livro de Bento XVI (o papa emérito) escrito em conjunto com o cardeal Sarah. O livro será lançado na França na quarta-feira. O título "Des profondeurs des nos coeurs" é emblemático, quer ser quase uma súplica ao papa reinante, para que não ceda à solicitação, contida no documento final do Sínodo sobre a Amazônia, de abrir o sacerdócio, sob certas condições, aos viri probati. Em suma, embora demonstrando obediência filial ao Papa, a alma conservadora não renuncia minimamente a condicionar pesadamente o papa Francisco. Qual a sua opinião?
A obediência filial tem muitas faces. Pode-se também obedecer como o filho mais velho da parábola e viver a comunhão cheios de ressentimento. De qualquer forma, houve um Sínodo, do qual participou o Card. Sarah, que abriu uma fase de repensamento das formas de identificação dos candidatos ao presbiterado, pelo menos na Amazônia. Tudo isso também pode ser discutido ou contestado, mas falar como se o eventual documento do papa que autorizasse essa reforma fosse uma "catástrofe", parece uma maneira irresponsável de se colocar na vida da Igreja.
A obediência filial se assemelha nesse caso a um individualismo desmedido e a uma falta de respeito pelas diferentes condições em que vivem as Igrejas nos diferentes continentes. Em um episódio como esse, e também nas reações oficiais, fica evidente que na Igreja um dos pecados mais difundidos é o de usar palavras vazias. Na minha opinião, o termo "obediência filial" pode ser usado para falar dessas declarações apenas fazendo abundante recurso a uma linguagem marcada por clericalismo e hipocrisia. Com toda a honestidade, não encontro aqui obediência alguma e, muito menos, filiação. A retórica eclesiástica nesses casos é um remédio pior que o mal. Chamar as coisas pelo nome é sempre o primeiro ato que a fé nos pede. E o pede tanto a pastores quanto a teólogos e jornalistas.
Vamos abrir um pequeno parêntese. É sobre o "papa emérito". Sabemos pelo direito canônico que um papa que renuncia ao próprio cargo não é mais papa. Em suma, ter permitido usar um título como o de "papa emérito" corre o risco de criar muitos problemas para a comunhão eclesial. Por que Ratzinger não percebe isso?
Eu acredito que a questão do "papa emérito" seja um desafio para a instituição eclesial. Em sua novidade, era necessária uma certa dose de improvisação, pela qual agora estamos pagando. O bispo emérito de Roma não tem mais nenhuma autoridade de ministério. E, desde o início, ele tentou, realmente acredito, manter o perfil o mais discreto possível. Não é um arbítrio acreditar que o papel de um "papa emérito", quando outro papa foi eleito depois dele, esteja evidentemente vinculado a uma extrema reserva, para não dizer a um "silentium incarnatum". Essa é a consequência da concentração de poder que o Papa assumiu ao longo dos séculos. Qualquer confusão se torna perigosa para a Igreja enquanto tal. Mais ainda, torna-se completamente distorcida se um bispo emérito de Roma pretende exercer uma espécie de "veto" aos atos que seu sucessor ainda precisa assumir. Por mais que se tente cercá-la por uma aura espiritual, de oração, filial e paterna, esse não é o cenário de um filme. E deve ser gerido com absoluta clareza, sem deixar espaço para dúvidas.
Vamos voltar ao conteúdo do livro. Segundo as antecipações, os autores expõem, sentidas como um dever moral, suas reflexões sobre o sacerdócio católico. Para eles, o sacerdócio e o celibato estão "unidos desde o início da ‘nova aliança’ de Deus com a humanidade estabelecida por Jesus, cuja oblação total é o próprio modelo do sacerdócio". Em suma, para os dois autores, há uma "abstinência ontológica" .... O termo é muito forte...
Parece-me que exatamente nesse plano o que está escrito no livro é teologicamente demasiado frágil, quase embaraçoso. Parece mais o fruto da caneta incerta de Sarah do que a mão segura de Ratzinger. As argumentações com os quais se deseja justificar a "imutabilidade" dos critérios para a seleção de presbíteros são forçadas, claudicantes, ingênuas ou paradoxais. De dois pastores com uma responsabilidade tão grande, o povo de Deus esperaria uma motivação maior, para justificar o fato de ter tomado uma posição drástica como a que quiseram manifestar. Caso contrário, se as razões forem realmente aquelas indicadas, parece que estamos assistindo à resistência um tanto cega do "status quo" contra qualquer possível mudança.
Outra afirmação, que me parece sofrer de catastrofismo, é que "a possibilidade de ordenar homens casados representaria uma catástrofe pastoral, uma confusão eclesiológica e um obscurecimento da compreensão do sacerdócio". Aqui qualquer abertura é concessão ao espírito do mundo. Não é exagerado tudo isso?
Justamente: exagero. Um grande exagero.
O cardeal Sarah não é novo nesses exageros, sempre em relação aos Sínodos. Devemos lembrar como, durante o Sínodo sobre a família, em um de seus discursos, ele comparou "fundamentalismo e gênero" às "bestas do Apocalipse". Qualquer mudança em relação à estrutura da Igreja do século XIX é percebida como concessão, traição, cedência ao mundo moderno e às suas desgraças. O preconceito antimoderno se torna o critério de um discernimento sem nuances. E isso pressupõe uma ideia de Igreja e de Sacerdócio velha de quase 200 anos.
No entanto, na Igreja Latina há sacerdotes casados ... Eles são causa de catástrofes?
Eu acho que não. A tradição latina conhece o presbítero uxorado. Mas a igreja oriental conhece quase somente presbíteros casados. Um mínimo de conhecimento do mundo e das diferentes tradições eclesiais deveria sugerir um juízo menos drástico, mais sutil e mais atento. Acima de tudo mais informado. Acredito que inclusive um certo provincialismo curial não seja estranho a essa maneira de se expressar, que parece grosseira e autocentrada.
Última pergunta: essa última aparição de Ratzinger revela, mais uma vez, o paradigma de fundo de uma parte da Igreja: o medo da história. É assim professor?
Parece-me que esse texto tenha um grande valor: mostra a persistência obstinada de um modelo de autocompreensão da Igreja que eu definiria como um "dispositivo de bloqueio". A Igreja não tem nenhuma autoridade a não ser repetir o que foi no passado. E para isso, deve apenas rejeitar cegamente qualquer mudança. Só pode contar com as "três coisas brancas": a hóstia, a Imaculada e o papa. Como é evidente, o dispositivo entra em crise quando uma das três "coisas brancas" não se dobra a ser estereotipada para ficar sem autoridade e começa a ter confiança que pode iniciar percursos de mudança e reforma.
Se a Igreja sair do museu e se redescobrir jardim, poderá florescer. Mas os profetas da desventura, à primeira brisa fria, diante de uma chuva mais intensa ou do primeiro sol escaldante, estão de imediato prontos a expressar sua saudade do ar-condicionado, dos sistemas de segurança e da silenciosa previsibilidade atapetada que o museu lhes garantia. Francisco conhece bem o funcionamento cego desse "dispositivo". E não se deixará reduzir a "coisa branca".
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“Ratzinger e Sarah, uma obediência filial assombrosa”. Entrevista com Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU