10 Janeiro 2020
"O ser humano, na era da Internet, através desse aparato de algoritmos e manipulações de dados, aprendeu que possui lado. E quando se criam lados, se perde a unidade. É preciso que a humanidade volte a se enxergar como uma unidade de pessoas e seres humanos que estão neste mundo com uma mesma finalidade: a de viver da melhor forma possível e de ser feliz", escreve José Wilson Correa Garcia, pós-graduado em Adolescência e Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, pós-graduado em Gestão Pedagógica pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, graduado em Filosofia pela FAJE e graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.
O ser humano é um ser cultural. Comunicamos, a todo instante, quem somos, o que cremos, o que sentimos. Produzimos informações a partir desse processo de comunicação culturalmente humano, desde que o ser humano existe na face da terra. Os primeiros hominídeos deixaram marcas e informações sobre si mesmos nas cavernas em que viveram, há milhões de anos. Deixaram marcas e informações nas diversas expressões artísticas e culturais ao longo da história. E, mais recentemente, a partir do século XX, deixamos marcas e informações no universo virtual da Internet. Foi a partir deste século que aconteceu uma revolução sem precedentes na forma como essa comunicação passou a ser transmitida entre as pessoas. Suas marcas e informações deixaram de se perder no esquecimento produzido pela história passada e através tempo. Elas se eternizaram em forma de dados virtuais.
Na Internet, as informações comunicadas se transformam em dados: no que se faz em uma Rede Social; no que se conversa de forma privada entre duas ou mais pessoas; no que se reage “curtindo” ou “descurtindo”; nas respostas dadas a uma postagem que a pessoa gostou ou não; em um portal de pesquisa, o que se digitou com a finalidade de saber ou procurar algo; em um portal de compras, vendas ou trocas de produtos; no que se procurou, de acordo com os interesses de cada pessoa; nas palavras ou expressões que se usou com mais ou menos frequência, nesse mundo de interações. Tudo isso que se fez está na memória virtual desse universo que chamamos Internet. E essa memória é conhecida tecnicamente como banco de dados que, na prática, são as informações que cada pessoa deixou gravada e disponível através das interações sociais que estabeleceu através da Internet.
A Internet existe, como mecanismo de interação pessoal e doméstica, há pelo menos 40 anos. Imagine que uma pessoa tenha uma conta de e-mail ou uma Rede Social há pelo menos 10 anos, a qual ela usa, quase que diariamente, para as mais variadas coisas. Agora, imagine a quantidade de informações em forma de dados que ela produziu nesses 10 anos. Hoje existem em média 4 bilhões de pessoas que acessam a Internet diariamente, o que corresponde a mais da metade da população mundial. Multiplique esse número pela quantidade de dados e informações que, diariamente, são produzidos por esse quantitativo de usuários, todos os dias. É um universo de dados que só pode ser pensado quase que em escala infinita. Agora, como esses dados podem ser organizados de uma forma que as pessoas não naveguem num ambiente caótico de informações? Porque – já que a Internet é uma plataforma que conecta as pessoas e aquilo que elas produzem em forma de dados – como fazer para que uma simples pesquisa que o usuário individual faça, não se transforme em um amontoado de dados aleatórios e caóticos? A resposta é: através de algoritmos. São eles, os algoritmos, que liberam as pessoas de experiências repetitivas, aleatórias e caóticas no ambiente da Internet. Mas o que é um Algoritmo?
Os algoritmos existem desde os tempos mais remotos das primeiras civilizações. Os egípcios usavam algoritmos para medir a cheia e a vazão do rio Nilo. Outras civilizações usavam algoritmos para determinar as estações. Qualquer pessoa, a qualquer momento, usa algoritmos para realizar as operações mais simples de sua vida, como ir a algum lugar, realizar uma tarefa doméstica e diária. Muitas vezes essas atividades são realizadas quase que automaticamente. Ninguém fica pensando de forma sistemática, por exemplo, que ao acordar vai se levantar, ir ao banheiro, escovar os dentes, tomar café, etc. As pessoas não pensam, elas simplesmente fazem. E fazem porque, em sua consciência, existe uma estrutura de passos, que são os algoritmos, que as fazem realizar essas atividades instantaneamente.
Em linguagem de programação virtual, o algoritmo costuma ser definido como uma sequência de passos que resolvem um determinado problema. No ambiente da computação, o algoritmo é o elemento mais fundamental que existe, como o átomo na física ou o DNA na biologia. No mundo virtual, o programador de computação tem que expressar esses passos, para resolver os mais diversos problemas, através de uma linguagem que o computador entenda. Essa é a linguagem de programação, que transfere para uma máquina a resolução dos mesmos problemas, só que de forma mais rápida, eficiente e precisa.
O casamento dessa interação entre ser humano e máquina criou possibilidades infinitas, no que diz respeito ao processamento de informações que passaram a ser feitas em escala gigantesca, mas podem ser usadas, por exemplo, para influenciar, de alguma forma, pessoas individualmente ou até sociedades inteiras. Mas essa é uma possibilidade do algoritmo que será abordado mais à frente. Por enquanto, pensemos no problema da quantidade quase que infinita de dados dos usuários em toda a Internet. Como transformar esse ambiente caótico de dados em uma experiência agradável para o usuário? A resposta é simples: organizando essa base de dados. E como se organiza uma base de dados quase infinita? Criando algoritmos que façam essa organização em larga escala.
Em um primeiro momento, os programadores e empresas de programação criaram algoritmos que começaram a fazer essa organização de dados dos usuários a partir de uma lógica cronológica. Por exemplo, um usuário que observasse sua área de informações na sua Rede Social pessoal, assim que acordasse de manhã cedo, teria já organizadas as informações dos usuários e contatos com que ele interage, de forma cronológica. O usuário veria o resultado final de informações e interações pela hora em que ela foi postada. A questão é que se percebeu que, mesmo de forma cronológica, os usuários teriam acesso a informações e interações que, de muitas formas, poderiam não ser tão agradáveis a seus gostos. Por exemplo, o usuário poderia receber informações políticas contrárias às suas próprias, dependendo da hora em que a postagem foi feita.
Essa limitação cria um segundo momento na organização da base de dados produzida pelos usuários na Internet. Os programadores e empresas de programação criaram algoritmos que passaram a organizar esses dados a partir do princípio dos interesses do próprio usuário, ou seja, daquilo que ele gosta ou gostaria de ver. Ora, como uma máquina é capaz de saber o que um ser humano gosta ou deixa de gostar? Através do conjunto quantitativo de seus dados. E quem tem acesso a eles? Entram em jogo as empresas de tecnologia.
Todos os serviços que um usuário acessa através da Internet estão intermediados por uma empresa de tecnologia. A simples ação de criar uma conta de e-mail como o Gmail ou de uma Rede Social como o Instagram ou o Facebook, cria um laço contratual entre usuário e essas empresas. Mas como, se o usuário não assinou nenhum contrato autorizando o uso de seus dados? A questão é que autorizou, sim. Quantas pessoas leem de verdade e com atenção os “termos” que as empresas oferecem para os usuários, antes de eles aceitarem a criação de seus perfis ou contas naqueles determinados serviços? Nestes termos, não lidos ou ignorados, está a autorização que o usuário dá, a determinada empresa, para o livre uso de todos os seus dados.
Resumindo, tudo que o usuário faz ou deixa de fazer na Internet está em um banco de dados, autorizado por ele, gerenciado por empresas de tecnologia como a Google, Facebook, Instagram, Twitter, etc. Ou seja, essas empresas têm acesso a dados que dizem o que cada usuário gosta ou deixa de gostar. Basta agora bombardear esses usuários com experiências e interações que lhes sejam mais agradáveis, possibilitando, de acordo com os critérios da própria empresa, aos usuários terem maior contato com pessoas que pensam ou sintam coisas parecidas com o que eles sentem, bem como de acesso a informações que aparentem ser mais agradáveis e úteis. Os algoritmos foram alterados para criar uma nova experiência de interação do usuário com o que ele procura na Internet, intermediado pela lógica quantitativa da identificação. A princípio isso soa como uma ideia genial, mas não é. Existe uma contradição fundamental presente nessa forma de interação virtual mediada pelos algoritmos: ela cria o que passou a ser chamado de “bolha virtual”.
A bolha virtual é exatamente a “organização” de interações entre pessoas com base em seus próprios gostos e coisas que as identificam a partir de suas bases de dados. Cria-se, assim, uma interação onde a noção de que todo mundo pensa igual a todo mundo, passa a dominar a experiência do usuário na Internet, porque os algoritmos aproximam pessoas que têm uma base de dados parecida e distancia as que ele julga ser pessoas com uma base de dados diferente. A questão é que essa intermediação de interações entre seres humanos reais acontece a partir de uma lógica determinada por um sistema criado de forma artificial. As relações humanas, até então marcadas pela espontaneidade e pelo universo cultural que as caracteriza, são substituídas por uma interação manipulada de acordo com interesses determinados, sejam eles econômicos, políticos ou ideológicos. Os algoritmos passam a ser manipulados para que informações sejam criadas para as pessoas, de acordo com interesses retirados de sua própria base de dados. Uma base de dados que, apesar de ser produzida pelas próprias pessoas, não pertence mais a elas, mas a um universo que tem empresas de tecnologia como as responsáveis pelo gerenciamento de tais dados. Essas empresas lucram, e muito, com esses dados e com a forma como eles passam a ser usados.
Cria-se, assim, uma guerra de dados produzidos e manipulados de acordo com interesses de quem paga a empresas ou pessoas para criarem informações e engatilharem essas informações, como se fossem armas, para usuários em suas bolhas virtuais, elegendo aqueles que tem uma força maior de alcance, comunicação e persuasão. Essas informações determinam comportamentos, dos mais variados. Desde decisões econômicas para comprar alguma coisa, até de decisões políticas para se votar, por exemplo, em um determinado candidato. Não é de se admirar que, nos últimos tempos, a expressão Fake News tem sido tão difundida na Internet. Mais do que difundida, tem sido usada como recurso para determinar e manipular informações e comportamentos de pessoas, grupos de pessoas e até de nações inteiras.
São informações que monopolizam a atenção das pessoas, fazendo com que elas conheçam, pensem ou ajam de formas determinadas. Cada pessoa é alimentada com verdades que desejam escutar. Em muitos casos, são verdades criadas não com a intenção de dizerem a verdade, mas de dizerem falsas verdades. E é exatamente isso que cria diversos níveis de polarização: um dos fenômenos mais dramáticos do mundo na atualidade. Basta ver, direita e esquerda, cristãos e muçulmanos, brancos e negros se alimentando, de forma descontrolada, com as próprias verdades. Verdades manipuladas. E são essas verdades que crescem e são alimentadas de uma tal forma dentro das pessoas, que elas passam a combater quem pense ou aja diferente do que elas acreditam ser verdade.
Quem ganha nesse mundo polarizado? Quem pagar mais para que os dados sejam manipulados e produzir verdades tendenciosas. Ambos os lados pagam. Cria-se um clima de divisão. A divisão, neste caso, tem a função de dominar. Divide-se para dominar e conquistar. Essa foi a estratégia social e política usada pelo imperador romano César, por Felipe II da Macedônia. Maquiavel no Livro IV de sua obra “A arte da guerra” disse que, para dominar uma nação, um comandante precisa se esforçar ao máximo para dividir as forças do inimigo, seja fazendo-os desconfiar dos homens que confiavam antes ou dando-lhe motivos para separar suas forças, enfraquecendo-as. A estratégia de dividir para dominar tem sido, ao longo da história, usada e atribuída a diversos soberanos e tiranos. E parece que, na atualidade da era digital, tal estratégia não somente se repete, como se intensifica e se amplia, através das informações que cada usuário da Internet produz em forma de dados. Tais dados se tornam armas de conquista, na medida em que passam a ser usados, estrategicamente, com a finalidade de neutralizar aquilo que o ser humano tem de mais caro: seus direitos.
Nesse ambiente manipulado, Direitos Humanos são violados, muitas vezes sem ser percebido: o direito à informação; o direito de consumir com transparência e de ter clareza em relação a como suas informações são usadas; o direito de liberdade; o direito de propriedade, afinal de contas dados pessoais são propriedades. As pessoas passaram a compartilhar seus dados na Internet sem ter direito sobre eles. Perdem sua liberdade no momento da compra, do consumo, do voto. Sua dignidade, não só como cidadãos, mas como Seres Humanos, está em risco.
Foi isso que determinados setores de nações democraticamente avançadas, como os Estados Unidos e a Inglaterra, perceberam: que o universo de dados da Internet começou a ser usado para manipular a opinião pública. E eles perceberam isso quando seu senso democrático, através da política eleitoral, passou a correr riscos, como aconteceu no caso de vazamento e uso indevido de informações de usuários da Rede Social Facebook pela empresa inglesa Cambridge Analytica, para orientar campanhas políticas como a do atual presidente norte-americano Donald Trump ou da campanha Brexit, que pauta a saída do Reino Unido da União Europeia. São dois exemplos claros sobre os problemas que tais manipulações de dados, através da disseminação de algoritmos no cotidiano das pessoas, podem colocar em risco até mesmo o processo democrático de um país.
Em outros casos, o uso indiscriminado e manipulado de algoritmos passou a reproduzir até preconceitos na Internet, como foi o caso descoberto por uma pesquisa conduzida pela professora Latanya Sweeney, da Universidade de Harvard, que concluiu que a empresa Google, através de seus serviços de pesquisa, apresenta resultados com viés racista, dependendo da pesquisa feita pelo usuário. Segundo o estudo feito, ao pesquisar por nomes de origem afrodescendente, é frequente o usuário começar a ver anúncios direcionados a pessoas que tenham sido presas recentemente ou cometido algum tipo de crime. Estes resultados apareceram com uma frequência 25% maior com nomes de famílias negras. Já com nomes 'brancos', estes anúncios diminuíram. Segundo a professora responsável pelo estudo feito, existe 1% de chance que os resultados tenham sido por um acaso. É óbvio que não necessariamente o programador do código seja racista. Mas o algoritmo usado, que reflete e reproduz o que acontece em nosso mundo, através de nossas interações e dados, também pode refletir e ampliar preconceitos existentes em nossa sociedade.
Como todo avanço tecnológico, as sociedades precisam acompanhar esses fenômenos produzidos pela manipulação de dados e tecnologias digitais, de modo que os interesses sociais e os direitos humanos das pessoas e usuários sejam protegidos e garantidos. Existe a necessidade de ações institucionais, que passem pela criação de políticas públicas e leis que garantam os direitos do usuário. Mas é necessário que cada usuário tenha uma postura diferente diante dessa tendência manipuladora de seus próprios dados. E, talvez, a postura individual mais importante seja a de não permitir que sua visão de mundo se restrinja e seja monopolizada a somente aquilo que cada um, individual e isoladamente, acredita como verdade, através das informações que recebe da Internet.
A característica mais fundamental da existência humana é a diversidade. Aprender a olhar para as diferenças que, necessariamente, marcam as relações humanas, buscando o respeito mútuo e a tolerância, é a única maneira eficaz de se lutar, pessoalmente, contra essa tendência de polarização que não só divide, mas principalmente agride a dignidade humana de ambos os lados criados. O ser humano, na era da Internet, através desse aparato de algoritmos e manipulações de dados, aprendeu que possui lado. E quando se criam lados, se perde a unidade. É preciso que a humanidade volte a se enxergar como uma unidade de pessoas e seres humanos que estão neste mundo com uma mesma finalidade: a de viver da melhor forma possível e de ser feliz.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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Sociabilidade Algorítmica: o desafio de não perdermos a humanidade que nos une pela polaridade que nos divide na era da Internet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU