07 Dezembro 2019
“A acumulação por despojo necessita de um Estado repressivo, de caráter policial, mas que deve ser legitimado pelo exercício regular do ato eleitoral. Este ato não pode pôr em questão nem o Estado policial, nem o regime de acumulação de capital, porque nesse caso os resultados são imediatamente invalidados por antidemocráticos”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 06-12-2019. A tradução é do Cepat.
As revoltas em andamento na América Latina têm a enorme virtude de desnudar aspectos do regime de dominação que no acinzentado da vida cotidiana passam despercebidos e são normalizados, mesmo pelas vítimas. Compreendemos, assim, que o Estado - quando lhe tiram os caireles da rima (León Felipe) -, quando é desvestido de qualquer adorno democrático, cidadão, etc., fica reduzido apenas a seu núcleo duro: os aparatos armados.
Nesses dias, no Chile, é possível comprovar, até o extremo, que o governo das pessoas é exercido pelos carabineiros e militares, que são os que substituem a tecnologia da disciplina (da família nuclear à escola, a divisão do trabalho e todo panóptico) pelo uso da violência, assassinando, mutilando e violando em centenas.
Finalmente, isso é o Estado. Um instrumento de dominação implacável, impossível de administrar sem apelar, em última ou em primeira instância - dependendo das conjunturas e disposição das forças sociais -, à repressão.
Em meio às revoltas populares, observamos como vai ganhando forma um Estado policial, em plena democracia ou, melhor, de caráter democrático, já que as formalidades eleitorais são cumpridas, sem que por isso o modelo de dominação seja colocado em questão. A elegibilidade de algumas funções do Estado contrasta com a não elegibilidade dos comandos militares e policiais, assim como de juízes e burocratas de vários estamentos estatais.
Após 30 anos de democracia eleitoral no Chile, constatamos que esses estamentos continuam sendo pinochetistas. Que após 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores no Brasil, os militares permanecem tão golpistas como em 1964. Exatamente o mesmo acontece no Uruguai, após 15 anos de governos da Frente Ampla e na Bolívia, após quase 14 anos do MAS no governo.
No Chile, o general dos Carabineiros, Enrique Bassaletti, chefe da região leste da Região Metropolitana, saiu em resposta àqueles que acusavam a força de violar os direitos humanos. Após destacar que a sociedade sofre uma doença grave pela explosão da revolta, disse: “Suponhamos que seja um câncer (...), quando o tratamento para este é feito com quimioterapia, em alguns casos, e em outros com radioterapia, matam células boas e células ruins”.
Esse é o tipo de uniformizados que temos, após décadas do fim das ditaduras. Por isso, sustento que são atitudes que já não dependem mais de uma ou várias pessoas, possuem um caráter estrutural. O Estado policial democrático é o modo encontrado pelos de cima para sustentar o regime de dominação, que tem no extrativismo/neoliberalismo seu regime de acumulação e de regulação das relações sociais.
É possível dizer, inclusive, o contrário. A acumulação por despojo necessita de um Estado repressivo, de caráter policial, mas que deve ser legitimado pelo exercício regular do ato eleitoral. Este ato não pode pôr em questão nem o Estado policial, nem o regime de acumulação de capital, porque nesse caso os resultados são imediatamente invalidados por antidemocráticos.
Em suma, a chamada democracia só merece esse nome quando é funcional à dominação, que neste período inclui o que Giorgio Agamben chama de estado de exceção permanente. O filósofo italiano define essa situação como uma guerra civil legal contra aqueles setores que, por várias razões, não podem ser integrados, nem, por conseguinte, dominados.
Agamben se inspirou no nazismo e seus campos de concentração para chegar a essa conclusão.
Na América Latina, os não integráveis ou descartáveis são os povos originários e negros, os setores populares e trabalhadores, ou seja, os e as de baixo. É a experiência fresca das revoltas em curso, o que vimos no Chile nesses dias, mas especialmente em cada lugar onde os dominados se rebelam, o que nos permite falar de um estado policial democrático.
Nesse tipo de Estado, a vida das pessoas não vale nada, principalmente aquelas que vivem em áreas do não-ser (Fanon), onde a humanidade não é respeitada e a violência é o modo de regulação das relações entre a sociedade e as autoridades estatais e empresas privadas. Em Santiago, os carabineiros cercaram bairros inteiros e entraram à força em casas particulares, sempre na periferia popular e combativa. A democracia funciona para o terço de cima.
Por último, seria penoso para as esquerdas eleitorais continuarem competindo para administrar esse Estado Policial, como fez Lula no Brasil, cujo governo continuou militarizando as favelas e criando formas mais sofisticadas de presença policial nos bairros populares.
A única maneira razoável é nos organizarmos com maior cautela nos campos de concentração que nossos bairros se converteram com o Estado policial democrático, com o objetivo de derrubar as cercas quando os guardas se descuidarem.
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O Estado policial democrático. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU