31 Março 2019
“Incrustar-se no Estado, ocupar o Estado ou tomá-lo, seja como for que se considere esse processo consistente em vencer eleições e administrar o existente, fazia sentido quando os Estados-nação encarnavam uma configuração minimamente democrática. Agora, pode ser muito perigosa, porque nos paralisa diante de inimigos que extrapolam qualquer controle institucional e nos faz cúmplices de seus desmandos”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 09-03-2019. A tradução é do Cepat.
Diante de nossos olhos, podemos observar como os Estados-nação vão se deslizando para instituições controladas por grupos paramilitares, máfias policiais e narcotraficantes. O que antes parecia uma exceção, limitada a situações quase extremas, agora está se tornando norma, na medida em que o Estado já não é aquela instituição capaz de controlar territórios e assegurar o monopólio da violência legítima, como sustentou Max Weber.
A crise dos Estados anda de mãos dadas com o crescimento de grupos que ocupam os espaços que em outros tempos foram controlados por aquelas instituições. O sociólogo brasileiro José Cláudio Alves, especialista nas periferias urbanas, afirma que as milícias do Rio de Janeiro controlam a adjudicação das áreas onde os migrantes do Nordeste podem comprar terrenos e construir suas moradias, graças a informações privilegiadas obtidas dentro do Estado.
Impressiona-me muito o poder que estes grupos possuem e a fragilidade da justiça frente a esse poder, sustenta Alves. Está fazendo referência a um poder territorial que tem seu próprio braço político, ancorado nas bancadas da ultradireita e partidos com uma lógica fundamentalista religiosa, no caso do Brasil. Como aconteceu com Marielle Franco, vereadora negra e lésbica assassinada há um ano, assiste-se a um aumento das execuções sumárias diante da nula resposta estatal.
Não estão sendo registrados homicídios, nem desaparecimentos, pelo menos no Rio, porque o medo é mais poderoso que a vontade de denunciar. Estamos diante da perda de direitos e a situação vai piorando, em toda a região latino-americana. Cinco décadas de grupos de extermínio aumentaram em 75% a votação a Bolsonaro e a extrema-direita na Baixada Fluminense, a região carioca mais violenta do Estado, segundo Alves. A violência atual foi construída durante a ditadura e aprofundada na democracia.
As milícias vão mudando. Agora detectam onde o capital está se movimentando (grandes obras de infraestrutura, como parte do modelo extrativo) e controlam de forma violenta o acesso ao emprego que essas obras geram, de modo que cobram impostos das pessoas que querem trabalhar nas empresas, sejam privadas ou estatais. Os empregados devem entregar parte de seus salários aos paramilitares.
Vi isto em Medellín, no Rio de Janeiro e cada vez em mais cidades da América Latina, seja sob governos conservadores ou progressistas, porque estamos diante de uma mutação estrutural dessa relação que chamamos Estado. Outra novidade é a milícia marítima, segue Alves. Aborda os pescadores no mar, pede a licença de pesca e exige dinheiro para que continuem fazendo seu trabalho de sobrevivência. Controlam inclusive o acesso aos serviços médicos dos hospitais do Rio, cobrando taxas e negando o acesso a quem não paga.
Conclusão: A relação das milícias com o Estado é determinante para que se transformem em uma estrutura de poder absoluta, ampla, autoritária, potente e crescente no Rio de Janeiro. Atuam de forma legal, com acesso a informações econômicas que conseguem do Estado mediante aliados; mas também ilegal: assassinam, torturam e desaparecem. Saímos da ditadura oficial para a ditadura dos grupos de extermínio e as milícias, aponta Alves, para quem nunca existiu um fim da ditadura.
Diante desta constatação, acredito que podemos fazer duas reflexões.
A primeira é que a crise dos Estados é o aspecto determinante que leva à criação de poderes como as milícias, paraestatais, não antiestatais. Esta é a mudança estrutural em relação às instituições. Algo que vi dias atrás em Barcelona, onde o poder municipal não consegue deter a repressão policial ao migrantes. Este poder cresceu inclusive sob Lula e os Kirchner, não por culpa deles, mas porque estamos diante de um processo global, irreversível no momento.
A segunda se relaciona com nossas estratégias. Incrustar-se no Estado, ocupar o Estado ou tomá-lo, seja como for que se considere esse processo consistente em vencer eleições e administrar o existente, fazia sentido quando os Estados-nação encarnavam uma configuração minimamente democrática. Agora, pode ser muito perigosa, porque nos paralisa diante de inimigos que extrapolam qualquer controle institucional e nos faz cúmplices de seus desmandos.
O historiador Emilio Gentile destaca que a novidade da ultradireita atual consiste no perigo de que a democracia se torne uma forma de repressão com consentimento popular. Uma fachada eleitoral que acoberta a falta de democracia é um péssimo assunto porque nos entretém, enquanto desarma os próprios poderes, que são os únicos que podem nos permitir enfrentar e superar esta fase do capitalismo extrativo que depreda os bens comuns, desarticula os Estados-nação e avança contra os povos de cor da terra.
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Estados mafiosos e poder político. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU