24 Outubro 2019
Nesta entrevista, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla Bartolomeu I explica as razões históricas e eclesiológicas que o levaram a dar autocefalia para a Igreja ucraniana. E afirma: o patriarcado russo se opõe porque, embora a URSS tenha desaparecido, ainda quer controlar aquela Igreja.
A entrevista é de Paolo Emilio Landi e Luigi Sandri, publicado por Confronti, outubro-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sua Santidade, o que a unidade da Igreja significa para você?
É o objetivo a que todos nós, cristãos, aspiramos, e é nossa tarefa precisa; nos pediu para fazer isso Nosso Senhor Jesus Cristo que, antes de sua paixão, orou ao Pai celeste para que todos que cressem nele pudessem se tornar um só.
Ele fundou uma Igreja e esta será una e única até o fim dos tempos. Infelizmente, os seres humanos a dividiram, cortaram a Igreja em diferentes ramos e denominações. A Igreja católica acredita ser a verdadeira, que continua a tradição apostólica dos primeiros séculos; nós ortodoxos acreditamos o mesmo, a saber, que a nossa tradição permaneceu a mais fiel e mais próxima da tradição dos apóstolos e dos Concílios ecumênicos, que formularam os dogmas e a fé cristã. De qualquer forma, temos a obrigação de orar e trabalhar pela unidade, e isso pode ser feito com o diálogo teológico bilateral, como o que está em andamento com Roma, com a Comunhão Anglicana, com a Federação Luterana Mundial ... mas também de maneira multilateral, como no caso do Conselho Mundial de Igrejas. Ultimamente, porém, foi desencadeado um grande contraste dentro da Ortodoxia entre a Igreja Russa e o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla. É uma pena ter chegado a esse ponto. Nosso patriarcado ecumênico acredita que seja um seu direito garantir a autocefalia à Igreja Ucraniana, como fizemos no passado para todas as igrejas na Grécia, Bulgária, Sérvia, Albânia e Tchecoslováquia. As igrejas mencionadas são muito menores que a ucraniana - que tem 45 milhões de fiéis - e, no entanto, são autocéfalas. Aceitamos o pedido do Estado ucraniano e de seus habitantes que queriam uma igreja autocéfala.
O presidente ucraniano Petro Poroshenko [em abril de 2018] nos pediu, em nome de seu povo, para conceder a autocefalia à Igreja Ucraniana. Sempre que, no passado, uma Igreja nacional foi proclamada por nós como autocéfala - como na Polônia, Sérvia e Romênia - foi assim, havia um pedido de parte do Estado. E, nos últimos anos, expressando o desejo de sua nação, foi o presidente da Estônia quem pediu para restaurar a autonomia da Igreja Ortodoxa da Estônia. Então, o que fiz com Poroshenko não é algo único ou novo, mas alinhado com a tradição de todas as igrejas autocéfalas.
Concedemos esse status à Igreja Ucraniana, para dar a canonicidade que a encaixa na família ortodoxa, e não permanecem cismáticos e separados do corpo da Ortodoxia. Mas o Patriarcado de Moscou, por outro lado, considera a nova Igreja autocéfala ucraniana como cismática. É verdade que ela, até o momento, ainda não foi reconhecida pelas outras Igrejas ortodoxas, mas temos certeza de que o será em breve.
Por que a vossa decisão não é aceita pelo patriarcado de Moscou?
Porque Moscou, mesmo após a dissolução da URSS, gostaria de continuar mantendo a Igreja ucraniana sob seu controle. A Igreja Ortodoxa Russa é a maior e a mais rica, tem o apoio político do Kremlin: mas esses não são critérios eclesiais, mas mundanos. De acordo com a tradição e os cânones sagrados da Igreja Ortodoxa, o patriarcado ecumênico ganhou determinadas prerrogativas, entre as quais a o direito de garantir a autocefalia às várias igrejas, de presidir e convocar encontros pan-ortodoxos, como o Concilio que ocorreu em 2016 na ilha de Creta. Conversamos com todos as partes em Kiev, aquelas a favor e aquelas contra a autocefalia ucraniana, e percebemos que a nação está dividida. A julgar depois pelas ações de Filaret [do autoproclamado patriarcado de Kiev], parece que a criação da Igreja autocéfala de modo algum a favoreceu. Por enquanto. Porque as pessoas entenderão que existe apenas uma Igreja local nacional, uma igreja autocéfala, que pertence a todos os ucranianos. Um a um, eles se unirão a essa Igreja e a divisão será superada.
Você acha que é necessário convocar uma sinaxe?
Não vemos a necessidade de realizar uma sinaxe pan-ortodoxa, porque todas as igrejas autocéfalas que mencionei foram proclamadas como tais apenas pelo patriarcado ecumênico. Tínhamos todo o direito de fazê-lo: não precisamos nem de uma sinaxe nem de um concílio pan-ortodoxo que aprove o que decidimos.
Na sua opinião, quando será reconhecida a Igreja autocéfala ucraniana?
Penso que muito em breve a Igreja Grega começará a reconhecê-la; será a primeira Igreja depois de Constantinopla a reconhecer a autocefalia à Ucrânia e depois todas as outras igrejas seguirão. Você disse que o patriarcado de Moscou tem números e recursos do seu lado, em comparação com o patriarcado ecumênico, por isso parece ter um poder maior.
É um poder mundano. Com base na tradição e nos cânones sagrados da Igreja Ortodoxa, os critérios são apenas eclesiais e muito diferentes. Os séculos passados provaram a verdadeira posição do patriarcado ecumênico de Constantinopla como o primeiro da Ortodoxia; no entanto, nunca usamos essa supremacia para nos impor sobre as outras Igrejas, mas apenas para servi-las, como uma diaconia.
Na Albânia, após o colapso do comunismo, reorganizamos a Igreja Ortodoxa; na Bulgária, nos últimos anos do século XX, houve um cisma e o patriarca búlgaro me convidou para participar de um Concílio para resolver o problema. O mesmo aconteceu com o patriarcado de Jerusalém e a Igreja de Chipre, quando tiveram problemas.
Na Ortodoxia, o patriarcado ecumênico é um instrumento de paz e unidade. O número de seus fiéis é muito pequeno na Turquia. Alguns sugeriram que o vosso patriarcado deveria emigrar.
Nunca falamos em transferir a sede do patriarcado ecumênico para o exterior: estamos aqui há dezessete séculos e continuaremos aqui, a viver aqui e servir a Ortodoxia e toda a humanidade desta parte do mundo. Não existem apenas os dois mil ortodoxos em Istambul: há muitos mais fora da Turquia, porque a diáspora ortodoxa depende do patriarcado ecumênico, exceto a África, que está sob a jurisdição de Alexandria, no segundo lugar na hierarquia ortodoxa. Decidimos não nos mudar, e daqui continuaremos a servir as Igrejas irmãs da Ortodoxia, mas também, em todo o mundo, a cultura, a civilização, a justiça e a liberdade. Servimos aos ideais e os valores comuns a todos, válidos não apenas para os ortodoxos, não apenas para as pessoas que fazem parte do patriarcado ecumênico, mas para toda a humanidade.
Trabalhamos também para a proteção do meio ambiente, um problema que envolve e afeta todo o gênero humano. Nosso patriarcado, como disse o príncipe Philip de Edimburgo, é a primeira Igreja cristã que se comprometeu com o meio ambiente.
Nos últimos anos, também criamos reuniões para combater a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. Organizamos, sobre o assunto, três encontros com o arcebispo de Canterbury, e agora estamos preparando um quarto, a ser realizado em maio de 2020 em uma ilha grega.
Voltando à questão do meio ambiente, hoje há um grande debate sobre a Amazônia: ela é propriedade de alguns países, como afirmam os nacionalistas, ou pertence à humanidade?
Publiquei uma mensagem alguns dias atrás, porque 1º de setembro é o Ano Novo da Igreja Ortodoxa: eu disse que problemas como os da Amazônia envolvem o mundo inteiro. A responsabilidade recai sobre todos nós, e os esforços de uma nação, de uma Igreja, de uma organização não são suficientes para resolver o problema, porque os incêndios e as catástrofes que resultam da destruição do meio ambiente se refletem sobre toda a humanidade, sobre o planeta inteiro. Portanto, temos a responsabilidade de trabalhar juntos para proteger o nosso planeta. É a nossa casa.
Falando de uma coisa mínima, mas significativa, gosto de lembrar que no Dodecaneso [grupo de doze ilhas gregas no mar Egeu oriental] havia um nosso padre ambientalista que ordenava aos pecadores que iam se confessar com ele que plantasse árvores para expiar seus pecados. E isso era muito positivo para o meio ambiente!
Na Itália, mas também em outros países, há políticos que ostentam símbolos religiosos, aproveitando a conexão existente entre identidade nacional e religião. Como você vê essa conexão?
Usar a religião como instrumento para fins políticos, como meio para governar e administrar uma nação, não está correto. A religião é algo que vem da interioridade do ser humano, que diz respeito à esfera espiritual e cultural, é uma das necessidades do ser humano e não pode ser usada para impor algo às pessoas. Obviamente, cada nação tem sua própria tradição que deve ser respeitada, mas não pode ser usada como um instrumento para fins políticos.
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"Moscou age com critérios mundanos e não eclesiais". Entrevista com o Patriarca Bartolomeu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU