21 Outubro 2019
‘Cristo aponta para a Amazônia’, dizia Paulo VI. É o que lembra o dominicano Xavier Plassat, que vive no Brasil desde a década de 1980.
A entrevista é de Leneide Duarte-Plon, publicada por CartaCapital, 21-10-2019.
O dominicano Xavier Plassat, que vive no Brasil desde a década de 1980 como consequência de sua amizade com o frei Tito de Alencar (suicida na França em 1974), sublinha a importância do Sínodo sobre a Amazônia para o Brasil e para o planeta. Coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a denunciar o trabalho escravo, Plassat, que mora em Araguaína, no Tocantins, conta como o controle desse problema vem sendo dificultado pelas novas autoridades brasileiras. Ele informa também como se agravaram os problemas de conflitos de terra em todo o Brasil, especialmente nas regiões mais recuadas do território. Diz Plassat: “Nossa equipe regional da CPT acompanha, nos aspectos pastoral, organizativo e jurídico, uns 30 grupos, somando mais de mil famílias, estabelecidas em terras de quilombo, em acampamentos, em áreas de ocupação e em assentamentos consolidados. Liminares de despejo concedidas à revelia das provas apresentadas, violências gratuitas, ameaças contra pessoas e criminalização passaram a ser o nosso cotidiano”.
Em nenhum momento o dominicano citou explicitamente o nome de Bolsonaro, mas, segundo ele, a fim de conquistar e manter acesa a adesão das bases messiânicas, “um combustível barato, inesgotável, é fornecido por uma agenda obscurantista: racista, machista, homofóbica, militarista, xenofóbica, puritana, e maquiavelicamente religiosa. Bota mais fogo na lenha de históricas frustrações acumuladas em segmentos da sociedade, ansiosos por achar os culpados de sua desgraça, os vilões de seu mal-estar, do seu mau emprego, da violência que os cerca ou já os habita”.
Como a Igreja vai proteger os habitantes da Amazônia e salvaguardar a biodiversidade da região contra os predadores brasileiros e internacionais?
Não poderia ser melhor o momento para reunir um Sínodo sobre a Amazônia. Para não entrar em debates falsos ou mentirosos, é bom recordar que este Sínodo – instrumento da colegialidade no governo da Igreja – foi convocado há dois anos pelo papa Francisco, a pedido do conjunto dos bispos que atuam nos nove países que formam a Amazônia.
Desde 1952, os bispos da Amazônia se reúnem periodicamente para refletir a missão da Igreja nesta realidade. É o que recordam inicialmente na sua “Carta de Belém” os bispos, os padres, religiosas e religiosos, leigas e leigos de todas as igrejas amazônicas, reunidos na última semana de agosto para preparar o Sínodo. Na sequência afirmam: “Cristo aponta para a Amazônia” é a expressão profética e programática do papa Paulo VI, que, em 1972, repercutiu no Encontro de Santarém. A nossa Igreja assumiu, então, o compromisso de se “encarnar, na simplicidade”, na realidade dos povos e de empenhar-se para que por meio da ação evangelizadora se tornasse cada vez mais nítido o rosto de uma Igreja amazônica, comprometida com a realidade dos povos e da terra.
O senhor foi muito próximo de um torturado, o dominicano Tito de Alencar. Por causa desse encontro o senhor foi morar no Brasil. Como julga a apologia de um torturador feita por Bolsonaro no Congresso Nacional?
Ignóbil. Se é que esse adjetivo ajuda a expressar o nosso sentimento: ela é diabólica. Aguentamos há nove meses um presidente que dia após dia louva o regime que deixou centenas de mortos e desaparecidos (ao menos 434 desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade), torturou milhares com choques e pau de arara, instaurou a censura na imprensa e na arte, levou milhares de pessoas ao exílio, cassou políticos, aumentou as desigualdades sociais e cerceou as liberdades fundamentais.
Todas as manifestações de Bolsonaro relacionadas ao período do regime militar revelam a mesma doentia nostalgia desse tempo sinistro da vida nacional. Com o apoio de poderosas forças econômicas, um Estado assassino arrogou-se o direito de torturar e matar pessoas. Não podemos esquecer na conta os 8.350 indígenas que, segundo cálculo por baixo da CNV, foram mortos em massacres, apropriação de suas terras, remoção forçada, contágio por doenças, prisões, torturas e maus-tratos, no que deve ser chamado de extermínio.
Um dos principais agentes da barbárie foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), em cujo nome o deputado Bolsonaro fez questão de insultar e ferir publicamente a presidente Dilma Rousseff, achando graça assombrar outra vez a mente de uma de suas mais notórias vítimas. Já como presidente da República, o diabólico messias declarou “herói nacional” esse monstro.
O senhor acompanhou de perto outra vítima emblemática da ditadura, frei Tito de Alencar. Como foi essa convivência?
XP: Sei, por vivência pessoal, o que um torturador consegue realizar: matar alguém por dentro, partindo-lhe a mente, o corpo, a alma. Conheci frei Tito de Alencar Lima pouco tempo depois de sua chegada à França, na condição de banido. Convivi com ele no convento dominicano de L’Arbresle até o dia de seu suicídio, em 10 de agosto de 1974. Ali surgiu entre nós, irmãos pela graça de São Domingos, uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o torturador que, por dentro de frei Tito, continuava sua obra devastadora, partindo-lhe a alma entre resistência e desistência. Resistência era quando Tito tocava violão, formava projetos, abraçava o amigo, brincava com as crianças, ria, cantava, rezava. Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante do torturador Fleury, cuja voz lhe atormentava a mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos e desesperados silêncios.
O senhor ajudou Tito a enfrentar os torturadores que habitavam sua mente…
Juntos cantamos, choramos, xingamos e desafiamos o Fleury. Partilhamos do melhor e do pior. Até que, um dia, Tito resolvesse se livrar definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia instilar nele. Neste instante longamente amadurecido, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida. “Melhor morrer que perder a vida”, anotou, repetindo à sua maneira as palavras do seu Mestre: “Minha vida ninguém tira: sou eu que a estou entregando”. Segundo a procuradora da República Eugênia Gonzaga, exonerada por Bolsonaro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, “nenhum governo pós-redemocratização adotou políticas de justiça de transição, de responsabilização dos agentes do Estado, nem de total revelação da verdade”.
O que mudou no seu trabalho de campo na Comissão Pastoral da Terra depois da eleição de um governo de extrema-direita?
O compromisso solidário da CPT é para com grupos sociais mais vulneráveis às consequências dos retrocessos em curso desde o início da chamada ruptura política (2016-2018), agora descaradamente ampliados pelo governo Bolsonaro e seus aliados. As oligarquias agrárias e das empresas de mineração voltaram ao comando geral das operações, sem o menor pudor, em apoio a uma agenda neoliberal voltada contra os direitos dos trabalhadores, contra a legislação ambiental, contra os direitos indígenas, quilombolas e das demais populações tradicionais, afrontando tanto a letra como o espírito da Constituição Cidadã.
Tudo isso produz incêndios não apenas na Amazônia e nos Cerrados, mas também nos ânimos, nas relações, nas comunidades, nas famílias, nas igrejas. Vivemos dia após dia um ambiente sufocante, misto de impotência e incredulidade. No limiar do medo. O que muda para nós não é a natureza do nosso trabalho, é a sua intensidade, sua extensão, e o suplemento de esperança, de mobilização e de fé que vem exigindo de todos nós: agentes de pastoral, lideranças populares, comunidades rurais em busca de terra e vida digna.
O que muda é que centenas de territórios que já estavam em instância de possível regularização fundiária, demarcação, desapropriação para possível assentamento, ao termo de longas lutas, estão sendo não somente descartados, mas seus ocupantes criminalizados e, quando possível, nós também. O Incra recebeu ordem de sustar todos os processos em curso, e o presidente repete, feito mantra, que não assinará demarcação de nenhum novo território indígena, pelo contrário: questionará demarcações mesmo quando já homologadas.
No norte do Tocantins, onde vivo há 30 anos, dominam terras públicas de ocupação antiga ou mais recente, disputadas por posseiros frente a fazendeiros, portadores de títulos frequentemente forjados ou concedidos por instituições corruptas, sob a anuência do Estado. Já tiveram que resistir em face da pressão das monoculturas em sua voraz expansão (soja, eucalipto) e a expulsão pelas grandes obras (barragem, ferrovia, linhão) destinadas a viabilizar “o progresso”, lá fora. Nossa equipe regional da CPT acompanha, nos aspectos pastoral, organizativo e jurídico, uns 30 grupos somando mais de mil famílias estabelecidas em terras de quilombo, em acampamentos, em áreas de ocupação, e em assentamentos consolidados. Liminares de despejo concedidas à revelia das provas apresentadas, violências gratuitas, ameaças contra pessoas, criminalização passaram a ser o nosso cotidiano, como também no vizinho Pará. Segundo dados coletados pela CPT no Brasil inteiro, o número de pessoas envolvidas em conflitos por terra chegou perto de 1 milhão em 2018 (960.630), uma progressão de 252 mil sobre 2017 (mais 36%). Somente na Região Norte – inserida no bioma amazônico – foram 493 mil pessoas, duas vezes mais que no ano anterior. Em seguida está o Nordeste, com 302 mil pessoas envolvidas em conflitos.
Como o senhor encara as correntes de direita da Igreja que acusam o papa Francisco de heresia? O que eles criticam no papa?
O que é cobrado do papa Francisco, no fundo, é seu evangelismo radical, cristalino, pois ele obriga a cada um a se questionar radicalmente quanto ao sentido profundo do seu compromisso e, no caso dos cristãos, como seguidor ou discípulo de Jesus Cristo. Hoje, ao abordar o tema da ecologia integral, o Sínodo sobre a Amazônia aborda uma realidade que atinge todas as pessoas, independentemente da sua crença. Obviamente, isso embaralha o jogo daqueles que defendem uma religião meramente espiritual ou reduzem a fé a uma ideologia, um conjunto de crenças que devem justificar o mundo atual, adocicar a vida dos que sofrem suas injustiças e seus mecanismos de exploração, e conter sua possível rebelião.
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“Oligarquias agrárias e das empresas de mineração voltaram ao comando”. Entrevista com Xavier Plassat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU