29 Março 2016
"Ser o que se é. Falar o que se crê. Crer no que se prega. Viver o que se proclama até as últimas consequências" (Pedro Casaldáliga).
Neste ano de 2016, a Ordem dos Pregadores (dominicana) completa 800 anos de serviço no mundo, tendo como tema do seu ano jubilar "Enviados a pregar o Evangelho”. No Brasil, entre os dominicanos mais ilustres, podem ser citados o escritor e articulista da Adital, Frei Betto, e Frei Tito de Alencar Lima, ambos religiosos que foram presos e torturados lutando contra os abusos da ditadura civil-militar no paós [1964-1985]. Tito morreu anos depois, em exílio na França, atormentado pelas feridas que as torturas lhe imprimiram na alma.
A entrevista é de Jilwesley Almeida, publicada por Adital, 28-03-2016.
Frei Xavier Plassat, que se tornou amigo intimo de Frei Tito, quando este se encontrava no exílio, é um dominicano francês, reconhecido por sua luta pela justiça social no Brasil. País que, apesar de ter vencido o período obscuro e violento da ditadura, ainda não conseguiu livrar-se totalmente das estruturas de dominação e exclusão social. Residente no Brasil desde 1989, Frei Xavier trabalha a serviço da Comissão Pastoral da Terra (CPT), na qual destaca-se na luta contra o trabalho escravo. O dominicano foi agraciado com a Medalha Chico Mendes de Resistência, em 2006, e com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2008.
O martírio de Tito, para Frei Xavier, para além da importância de divulgar ao mundo os horrores cometidos pelo governo ditatorial brasileiro, forçou uma mudança de postura dentro da Igreja. "A bomba [a revelação, no exterior, das torturas sofridas por Tito] teria efeitos decisivos e duradouros na determinação da Igreja, inclusive a institucional, de operar a dramática conversão, passando do apoio prestado aos golpistas de 1964 ao testemunho de uma igreja martirial (...). A Igreja que encontrei, ao trazer de volta [para o Brasil] o corpo de Frei Tito, no início de 1983, já era outra (...), e uma Ordem Dominicana, em parte exangue de tanta perseguição, mas firme no seu propósito de testemunho evangélico na linha da opção preferencial pelos pobres”.
Nesta entrevista exclusiva concedida à Adital, Frei Xavier Plassat reflete sobre o papel dos dominicanos no Brasil e no mundo, sobre as inspirações e provocações ("O profetismo é resposta a um chamado, à determinada ‘pro-vocação’, que tira do comodismo”), direitos humanos, secularismo, e sobre o papel fundamental da mulher na Ordem.
Eis a entrevista.
Qual é a importância de Frei Tito para a experiência dominicana no Brasil e na América Latina?
Quando, em 1970, a revista estadunidense Look e a revista italiana L´Europeo publicaram o relato – em primeira pessoa – das torturas sofridas, em São Paulo, por Frei Tito, na prisão da Operação Bandeirantes, na chamada "sucursal do inferno", o efeito foi bombástico: estava ali a revelação, em âmbito internacional, de uma verdade até então mantida debaixo dos tapetes: a tortura foi aplicada aos presos da ditadura, de forma brutal, contra todo e qualquer suspeito, seja qual fosse sua cor, convicção, qualidade. A bomba iria ter efeitos decisivos e duradouros na determinação da Igreja, inclusive a institucional, de operar uma dramática conversão, passando do apoio prestado aos golpistas de 1964 ao testemunho de uma igreja martirial. Não sem dores e resistências, a começar pela teimosa negação do próprio arcebispo de São Paulo e então presidente da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], Dom Agnelo Rossi, que, reagindo à transparente declaração do Papa Paulo VI, ao receber o Frei Domingos Maia Leite, à época provincial dos frades dominicanos do Brasil ("Estamos solidários com todos e a todos enviamos nossa bênção apostólica, especialmente aos que sofrem nas prisões"), afirmou: "Não existe perseguição religiosa no país e sim uma campanha de difamação dirigida do exterior contra o governo brasileiro”. A Igreja das comunidades de base, daqueles sofredores do campo e da cidade, já bem sabia de que lado estava o evangélico e onde estava o diabólico. Pessoalmente, eu não conheci o Brasil neste período da opressão mais violenta. A Igreja que encontrei, ao trazer de volta o corpo de Frei Tito, no início de 1983, já era outra: comunidades da periferia de São Paulo engajadas na luta social e política, comunidades camponesas de Goiás e do hoje Tocantins, resistindo à grilagem e à mercantilização da terra, e uma Ordem Dominicana em parte exangue de tanta perseguição, mas firme no seu propósito de testemunho evangélico na linha da opção preferencial pelos pobres, uma marca registrada da chamada Teologia da Libertação e das CEBs [Comunidades Eclesiais de Base]. Algumas viagens posteriores até a América Central, México, Bolívia, Peru, me confirmaram que semelhante postura – encorajada pelas orientações definidas nas Conferências do Episcopado Latino-Americano (Celam), aclimatando a este continente a abertura do Concílio Vaticano II: Medellín (libertação), Puebla (comunhão, participação), Santo Domingo (inculturação) e Aparecida (missão) - existia nos respectivos contextos onde atuavam nossos irmãos e nossas irmãs da família dominicana.
Quais foram os maiores desafios para a Igreja e a vida religiosa durante a ditadura militar? E que desafios são enfrentados hoje?
Acho que podemos resumir o desafio constante que se coloca à vida religiosa, tanto hoje como nos tempos da ditadura, pela palavra "profetismo”. Aquela ‘peteca’ que Dom Pedro Casaldáliga nos insta a não deixar cair. O profetismo é a atitude que deveria identificar, caracterizar, qualificar todos os que se reivindicam no seguimento de Jesus Cristo. Nossa fé nasce da experiência de um profeta assassinado e do testemunho dos seus amigos e seguidores. Ser profeta não é coisa que se decreta: vou ser profeta! O profetismo é a resposta a um chamado, à determinada pro-vocação que tira do comodismo. Requer vigilância e escuta aos sinais do tempo. Como resposta, o profetismo é a coerência levada até a raiz. "Ser o que se é. Falar o que se crê.
Crer no que se prega. Viver o que se proclama até as últimas consequências” (Pedro Casaldáliga). Ser profeta começa pela convivência com um povo: assumir suas dores e suas alegrias, sentir suas limitações e seus sonhos, respeitar suas diferenças, comungar com seus sofrimentos, suas indignações e seus anseios de libertação, justiça e dignidade, viver a misericórdia, uma atitude que nada mais é do que a pura humanidade, a "com-paixão”: não posso ficar em paz enquanto um semelhante meu apanha, carece, sofre. O profeta abre o olho, o ouvido, as mãos e a boca. O que seria de um pregador se ficasse calado (os dominicanos levam o nome de ordem dos pregadores)? Temos este lema sugestivo, cunhado por São Tomás de Aquino para resumir o projeto da vida, segundo São Domingos: "contemplar et contemplata aliis tradere”. Literalmente: "contemplar e levar aos outros o contemplado”. Contemplar: isto é, abrir o olho e ver e apreciar e amar – não somente Deus vivo, que falou pelos profetas e continua falando, mas os homens e as mulheres com quem partilhamos uma história preciosa aos olhos de Deus; ver a terra e a criação que herdamos e cuidar; ver o que não se vê a olho nu; ver como se vislumbrasse o invisível; ver, estudar e buscar compreender; ver à luz daquilo que vale, segundo o Evangelho da vida verdadeira, plena e abundante; ver e falar o que se vê e o que não se vê; denunciar o que não dá; e anunciar o que deveria ser. A vida religiosa, dentro da Igreja, é chamada de vida consagrada: uma vida, em princípio, dedicada, despojada e livre para as coisas do Reino (de Deus), alimentada na vida comum, na partilha, no estudo, na oração e na celebração. O projeto dominicano já foi descrito como um "projeto de vida radical” (Frei Mateus Rocha). Temos dominicanos e dominicanas engajados em atividades variadas: de monja a jornalista, de professor a ativista de direitos humanos, de pároco a advogada - entre outras – e, às vezes, disso tudo um pouco e ao mesmo tempo. Entendo que é o mesmo ímpeto que levou Frei Tito e seus companheiros de jaula a resistirem à opressão, naquele tempo, e que está nos animando hoje a denunciar o trabalho escravo, a terra concentrada, a matança dos jovens, o incessante extermínio do índio, a violência homicida do preconceito, a política desvirtuada. E a anunciar, contra toda esperança que sim, tem jeito de mudar essa história. Na vida dominicana, esse projeto tem como espaço, primeiro, a própria comunidade, espaço para uma vida acordada ao ideal evangélico e, como tal, casa de pregação, ‘verbo e exemplo’ (pela palavra e pela prática). Ao celebrar 800 anos de vida em missão, a Ordem Dominicana tem consciência do quão distante e ao mesmo tempo necessário continua sendo este ideal...
Como se trabalha a formação política e de direitos humanos dentro da Ordem dominicana?
Não se pode pensar numa formação dominicana, aqui, na América Latina, sem se referir, necessariamente, a algumas testemunhas, mestres da fé, que ilustraram a história da Ordem, aqui, no continente, pela sua coragem político-evangélica. Como, por exemplo, Antônio de Montesinos e Bartolomeu de las Casas, no século 16! Ou Joseph Lebret, Mateus Rocha, Samuel Ruiz, Celso Pereira, Tomas Balduíno, Henri des Roziers, nos séculos 20 e 21. Trabalhar os direitos humanos é beber na própria história desta Ordem. (Sem dela, claro, ocultar algumas manchas de triste recordação: afinal, como em qualquer instituição e qualquer grupo social, as contradições fazem parte...). Até hoje é lembrado o nome de Francisco de Vitória, um eminente jurista da Universidade de Salamanca, na Espanha, tido como fundador do Direito Internacional dos povos. Ele que, naquele século 16, alimentou, com argumentos sólidos, a contestação do sistema colonial mortífero, genocida, uma empreitada tocada nas Américas pelo incansável confrade Bartolomeu. E segue para todos nós um modelo de atitude profética e missionária o sermão proferido pelo Frei Antônio de Montesinos, no 4º Domingo do Advento, 21 de dezembro de 1511. O texto havia sido preparado e redigido em equipe. Antônio recebeu do seu prior o preceito formal de pregá-lo aos colonizadores, em nome da comunidade. Uma mensagem de tremenda indignação, "de fogo”, como gosta de dizer nosso Frei Carlos Josaphat, e uma mensagem que não perdeu a sua atualidade até aos dias de hoje: "Vocês estão todos em pecado mortal”, em virtude dos crimes que cometiam contra os índios. "Com que direito” vocês conquistam este país, escravizam, oprimem seus habitantes? "Estes não são seres humanos” a serem respeitados em seus direitos e a serem amados por vocês, cristãos? Essa memória insurgente é a coisa mais preciosa no DNA da Ordem. Nossa família dominicana, no Brasil, se orgulha de manter uma Comissão de Justiça e Paz dedicada a tornar atual esse grito dos primeiros tempos, oferecendo meios concretos de formação, estudo e engajamento. Isso tudo traz necessárias consequências para a missão, que a família dominicana pretende assumir, e para a teologia que verbaliza, em termos atuais, a nossa compreensão do Evangelho. Uma questão de coerência entre vida e princípios, prática e teoria.
Como avalia o protagonismo da mulher dentro da Ordem dominicana?
A origem primeira da Ordem de São Domingos não foi uma comunidade de homens, mas, sim, de mulheres: as irmãs de Prouilhe (perto de Tolouse, na França) constituíram a primeira comunidade conventual, imaginada por Domingos de Gusmão, a partir da qual, na sequência, foram se enxertando e se multiplicando comunidades de pregadores itinerantes, radicados em conventos. Portanto, o protagonismo foi das mulheres, em primeira hora. Hoje mesmo, a família dominicana comporta muito mais mulheres (existe, mundo afora, cerca de 45 mil dominicanas) do que homens (em torno de 7 mil dominicanos). E, por sinal, comporta ainda muito mais leigos e leigas (cerca de 100 mil). 800 anos após a caminhada iniciada no sul da França por são Domingos, no século 13 (um momento histórico por sinal não menos perturbador do que o nosso), todos eles se reconhecem neste chamado para caminhar, defender o direito, anunciar a boa notícia da libertação, viver a alegria do Evangelho, e seguir caminhando. Desta missão, os jovens têm toda a possibilidade de participarem, em pé de igualdade. No Brasil, o movimento juvenil dominicano, o MJD (laico), é um dos espaços dessa missão comum.
Como você avalia a sociedade atual, quando se trata da busca por espiritualidade, fé e contato com o ambiente religioso?
Nossa sociedade experimenta, de forma contraditória, a tal secularização, um movimento que vem de longe e no qual a humanidade faz a experiência da sua crescente capacidade de entender a si mesma e o seu mundo, e do seu crescente poder de criar a si mesma e o seu mundo (ou destruir). Um movimento que parece destronar, irremediavelmente, o que de explicação e de poder se colocava até então no divino, no sagrado, no religioso. Para colocar no seu lugar uma razão triunfante, um desejo narcísico ou um desespero abismal? Trata-se de um movimento complexo, às vezes, exaltante, às vezes, angustiante, que obriga a depurar constantemente o que investimos na fé, e no chamado espaço religioso, deslocando valores, crenças, papéis. Da nossa capacidade de assumir e entender essa mudança de longo prazo, marcada hoje por uma aceleração inédita, depende nossa capacidade de inventar o espaço religioso, que corresponde a este momento de nossa história, sem crispação nem saudosismo, sem (novo) iluminismo nem (novo) triunfalismo. Para essa imensa conversão, esse parto, as palavras do profeta assassinado, Jesus, continuam oferecendo um norte (um sul!) precioso. Continuam sendo exigências basilares para esse trabalho a afirmação da dignidade e da liberdade do ser humano, e a fé na sua qualidade de imagem e semelhança àquele que chamamos ‘Deus’. Dito isto, é fácil verificar que não faltam, mundo afora e igualmente aqui, no Brasil, crispações e saudosismos, resistências, oportunismos, fanatismos. Propõe-se ersatze [plural da palavra alemã ersatz, que significa ‘substituto’] de religião, espiritualidades de mercado, religiosidades baratas; oferecem-se profetas de si mesmo, usurpadores do divino, novos mercadores do templo. Vale o conselho de Jesus: reconhecerei a árvore pelas suas frutas. Não adianta gritar, nem que seja ‘Senhor, senhor!’, para que venha o Reino da Justiça. Precisamos trabalhar, transformar, denunciar, anunciar, caminhar, contemplar, celebrar, acolher o inédito da promessa. Fazer, segundo outro lema da Ordem Dominicana (Veritas, domina mea), obra de verdade.
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Martírio de Frei Tito contribuiu para conversão da Igreja, afirma frade dominicano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU