16 Agosto 2019
O fundador da Open Arms entregou ao Papa o colete de uma menina que não conseguiram salvar. O Papa o colocou no Vaticano como se fosse uma relíquia.
A reportagem-entrevista é de José Luis Pinilla, publicada por Religión Digital, 15-08-2019. A tradução é do Cepat.
Há pouco mais de um ano e meio, publicávamos na Revista Ventana Europea uma entrevista com o nosso amigo Oscar Camps, com que tive a oportunidade de conversar como diretor da mesma.
Resgatei seu conteúdo, desta vez, após as respostas de tão baixo perfil político frente aos cruéis acontecimentos repletos de falta de misericórdia e liderança espanhola e europeia, após a deriva e ancoragem da situação da Open Arms no Mediterrâneo. Um mar tão necessitado de ondas... de solidariedade e não exatamente de indiferença que mata ou se assume como perfil.
Justamente a Igreja espanhola, por meio da Rede Migrantes com Direitos (antes também tinha sido analisada publicamente também pelo Secretário Geral da CEE, D. Luis Arguello), publicava uma dura e concreta ‘Nota’ em que destacava o contraste das ofertas destes dias: Frente à ação de rejeitar, ignorar, bloquear e penalizar que é o que está acontecendo, o Papa propõe – e a Igreja espanhola lhe acompanha – que “a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode ser resumida em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar, que expressam a missão da Igreja em relação a todos os habitantes das periferias existenciais”.
A entrevista que publicávamos naquele momento e outros contatos (o último, em maio deste ano, na recente entrega a Heleno Maleno do Prêmio Padre Arrupe de Direitos Humanos, na UP de Comillas, onde compartilhávamos os infortúnios das travas desconcertantes da Administração a seu trabalho, diante dos tristes fatos atuais) me fizeram recordar que nossa relação com Oscar Camps começou quando facilitamos um encontro de Oscar com o Papa, no Vaticano. Me vem à lembrança uma fotografia de Oscar entregando um colete salva-vidas ao Papa que viralizou.
Assim me contava:
“Levamos para ele um colete de uma menina síria de seis anos, que não pudemos resgatar. Morreu afogada com sua família. Quando levantei o colete, todos os seguranças nos cercaram, mas foi anedótico porque apesar de nossos esforços, não houve nenhum problema. Em seguida, veio e em um tom muito cordial e aberto nos agradeceu pelo trabalho e nos animou a continuar”.
“Disse-nos que estamos fazendo um grande trabalho, parabenizou-nos, que estávamos em suas orações. Nos minutos que estive com ele, percebi o quanto estava consciente da situação, da informação que possui e do grau de responsabilidade que se atribui”.
“Eu fui para retribuir a visita que ele nos fez em Lesbos e lhe expliquei como víamos os fatos. E este não será o último colete: entregaremos mais coletes para conscientizar deste problema”.
“Ficou comovido quando lhe contei a história. Pegou o colete, levou e lhe entregamos uma carta. Fiquei impressionado com o seu calor humano, sua ternura, sua proximidade. Insisti para que continue com o seu trabalho de denúncia e de desvelamento destas situações em Bruxelas, na Europa, no mundo”.
O Papa entregou esse colete a Michael Czernyc e Fabbio Baggio para que fosse colocado de forma visível na sede da Seção Migrantes e Refugiados, criada pelo Papa. Assim fizeram. Não há uma vez quando vou a Roma, que não me aproxime para contemplar essa espécie de relíquia. E, de fato, se tornou uma das imagens mais divulgadas pela Comissão Episcopal de Migrações da CEE.
Era o Colete de uma menina que não puderam salvar. Por isso, hoje, ao escutar as declarações atuais de algum responsável político que denunciam que Oscar Camps não tem capacidade jurídica para solicitar asilo aos 31 da Open Arms (e se quem possui não a exerce, o que fazemos?), não faço mais que relembrar de um caso de outra menina que Oscar Camps nos narrava na entrevista citada.
Tratava-se de Miracle, que veio à vida a bordo do Open Arms.
Dizia Oscar:
“Não há melhor lugar no mundo que o colo de uma mãe. Nisto todos concordamos. Ao pensar nisso, me vem à cabeça uma menina, Miracle, que veio à vida a bordo de nosso barco com bandeira espanhola, o Open Arms. Nós, uma equipe de 15 voluntários e voluntárias profissionais de salvamento marítimo, a conhecemos pela primeira vez. Era a tripulação 29 de nossa ONG. Sua mãe, de nome Peace, fugia de Gana. A pobre Peace deu à luz em nosso barco, e reitero o fato porque ninguém no mundo deveria se encontrar na situação de ter que fazer isso nessas condições”.
Dois bonitos nomes, não é verdade? Milagre e Paz, comentei. E continuei perguntando: O que você sentiu?
“Ao ter a pequena Miracle em nossos braços, percebemos que aquilo que queremos é protegê-la. A ela e a todas as presentes e futuras Miracles que infelizmente se veem obrigadas a viver condições infra-humanas. Mas ao segurá-la em nossos braços, recordamos também as milhares e milhares que resgatamos em nosso desejo de ajudar a salvar as vidas de todos aqueles que se afogam na fronteira mais mortífera do mundo. Cada uma destas pessoas resgatadas tem uma história pessoal que a levou a consegui-la. Mas, muitas outras, infelizmente, ficam pelo caminho”.
“Este é um drama que comove a todos nós, sobretudo nós que estamos na linha de frente”, dizia Oscar. “Nós que vimos essas pessoas chegarem, sobretudo resgatando crianças sem poder fazer o mesmo com seus pais. Inclusive, tendo que deixar a crianças órfãs em um país que não é o seu, em um continente que não é o seu. E à mercê de administrações que não sabemos o que está fazendo.
Ainda conservo frases soltas como apontamentos que reuni de Oscar, naquele momento. Por exemplo, estas. E termino.
“Uma vida não é mais valiosa por ter nascido deste lado, será pelo que façamos com ela. Protejamos as vidas dos mais vulneráveis!”.
“É uma menina e acaba de nascer no barco Open Arms de bandeira espanhola e nasceu deste lado, do nosso lado uma vida a mais roubada ao mar”.
São apenas crianças. Interesse primeiro e prevalente do menor. Depois que venham todas as outras considerações (legais, políticas, econômicas, estratégicas...). São apenas crianças. Para compreender isto e atuar em consequência, vemos que, diante dos poderes espanhóis, europeus e mundiais, sejam reais e fáticos (ainda que ensinem com um rosário em suas mãos, como Salvini) ou provocados para nos causar, nem os milagres valem. Continuarão lavando sua consciência, acusando de ingênuos aqueles que, de acordo com o evangelho radical, se entregam ao salvamento. O Papa já disse: Não se trata apenas de Migrantes, mas de nossa humanidade”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não se trata apenas de migrantes, mas de nossa humanidade”. Entrevista com Óscar Camps, fundador da Open Arms - Instituto Humanitas Unisinos - IHU