19 Mai 2019
“Bolsonaro enfrenta os principais meios de comunicação, colide com o Parlamento, colhe ressentimento nas Forças Armadas, perde a aprovação popular. Simultaneamente, a economia parece se encaminhar para uma nova recessão. Não é improvável que Bolsonaro seja despachado pelos mesmos atores que o levaram ao poder”, escreve Eduardo Crespo, doutor em economia, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Maio/2019. A tradução é do Cepat.
A ilusão do Brasil como potência emergente já é uma lembrança distante. Foram deixados para trás o fervor pela descoberta do pré-sal e o orgulho de organizar grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Naquela época, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) prometia inclusão social com "conciliação de classe". O país se tornava mais igualitário e milhões de brasileiros abandonavam suas condições de vida miseráveis.
Embora a economia crescia com taxas moderadas, todos os indicadores melhoravam. Como afirma o cientista político André Singer, em seu livro O lulismo em crise. Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016): “O Brasil parecia incluir os pobres no desenvolvimento capitalista sem que uma única pedra tivesse rasgado o céu limpo de Brasília. Lula havia resolvido a quadratura do círculo e encontrado o caminho para a integração sem confronto”.
O entusiasmo começou a se diluir durante a primeira presidência de Dilma Rousseff. Com a complacência do governo, a economia iniciou um caminho de evitável desaceleração. Em 2013, coincidindo com a comemoração da Copa das Confederações, massivas e até agora inexplicáveis manifestações transbordaram as principais cidades do país. Nas ruas, coincidiam aqueles que reivindicavam melhorias na infraestrutura e orçamentos mais altos para a saúde e a educação com aqueles que pediam para moderar a inflação e combater os gastos públicos. Durante 2014, foi desatado o segundo grande escândalo de corrupção da era do PT, a Lava Jato, em coincidência com as eleições presidenciais. As esperanças de inclusão pacífica haviam chegado ao fim.
Desde então, os brasileiros vivem anos de loucura, ódio, paranoia e alucinações coletivas. A Lava Jato paralisou empresas públicas e privadas, divulgando denúncias e efetuando prisões de seus administradores principais, e desencadeou uma crise sem precedentes em um Parlamento tomado por denúncias. O governo do PT, talvez atemorizado pelo clima destituinte e com as mobilizações, contribuiu para o desconcerto e desencanto popular, assumindo como próprio o diagnóstico da oposição.
Seria necessário frear a economia e gerar desemprego – isso chegou a ser dito explicitamente - por meio de um severo ajuste fiscal, pedindo o auxílio dos tecnocratas neoliberais para renovar a legitimidade do executivo frente ao poder econômico. As consequências foram catastróficas. O Brasil entrou na pior depressão de sua história, o desemprego disparou e o colapso da popularidade da presidenta abonou a estratégia de golpe em curso.
Após sua destituição em um grotesco impeachment, em 2016, o gabinete de transição liderado pelo então vice-presidente Michel Temer, com o apoio majoritário do Congresso, liderou uma revanche de classes sem precedentes na história recente do Brasil. Sancionou uma ambiciosa reforma trabalhista e impôs um utópico teto ao gasto público por 20 anos como emenda constitucional.
Desde então, a economia caminha a passo de tartaruga, com um crescimento em torno de 1%, em 2017 e 2018. O PIB per capita é 9% menor que em 2013. Ao contrário do que se esperava, a derrocada não favoreceu os partidos da direita tradicional, como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ou o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) de Temer.
Com a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, a frustração, o ódio, a crescente insegurança, o tsunami antissistema e o fervor religioso instigado pelas igrejas evangélicas, consagraram Jair Messias Bolsonaro, um ex-capitão do Exército e ex-deputado localizado na extrema direita. A campanha eleitoral esteve infestada por mensagens exaltadas. Modernas técnicas de manipulação instalaram fantasmagóricas conspirações, como o fantasma de um temível complô comunista regional à espreita para assaltar a propriedade privada, a cultura e até mesmo a sexualidade dos brasileiros.
O governo de Bolsonaro não tem outro plano senão alimentar esses fantasmas entre seus seguidores mais exaltados, pagar dívidas de campanha e reduzir salários, direitos e poder de negociação de trabalhadores. Para este último, nomeou Paulo Guedes como ministro da Fazenda, representante do setor financeiro, formado em Chicago, e próximo à ditadura de Augusto Pinochet no Chile, um fanático das privatizações que busca eliminar todos os itens orçamentários possíveis e reformar a lei de aposentadorias e pensões, um objetivo prioritário do qual depende a continuidade de Bolsonaro na presidência.
Caso essa lei não seja aprovada, apontam vários analistas, o governo do capitão tem os meses contados. O aumento previsto nos gastos do sistema previdenciário, somado ao teto constitucional sobre os gastos do governo, já está estrangulando os orçamentos regionais e forçando cortes fiscais descentralizados e caóticos.
Por que o Brasil começou essa deterioração sem fim? Duas hipóteses principais podem ser sustentadas. Uma polarização sustentada na luta de classes e uma muito provável intervenção dos Estados Unidos através do aparato governamental brasileiro. O primeiro tem elementos facilmente discerníveis. O Brasil ainda mantém características herdadas da era colonial.
Além de ter, como qualquer sociedade contemporânea, capitalistas e trabalhadores formais, tem uma população excedente volumosa que gira em torno de 40% e que sobrevive em atividades precárias e de baixa produtividade, venda ambulante, serviços domésticos e vários tipos de atividades ilegais.
Além disso, aqueles que compõem esse subconjunto são em sua maioria negros e de origem indígena, muitos nascidos no nordeste do país. Como as políticas distributivas naturalmente favoreceram esse segmento, não deveria surpreender que a reação das associações empresariais, do setor financeiro e dos meios de comunicação tenham conseguido mobilizar muitos trabalhadores formais que compõem a classe média e habitam os principais centros urbanos.
Em relação à segunda hipótese, embora não estejam disponíveis evidências conclusivas, há inúmeras indicações de que o aparato de inteligência estadunidense teria implantado dispositivos de guerra híbrida sobre o sistema político brasileiro. Deve se recordar que a Lava Jato começou nos Estados Unidos e que a presidente Dilma Rousseff era espionada pelos órgãos de defesa daquele país.
As investigações contaram com um apoio logístico incomum para a precariedade do sistema judiciário e policial brasileiro. O realinhamento internacional do Brasil após o golpe parlamentar também é impressionante.
Até onde chegarão os efeitos destrutivos? Existem três grandes processos de decomposição em andamento. Primeiro, o governo promove uma redução generalizada nos gastos com saúde e educação. No caso das universidades, foram bloqueados itens orçamentários em mais de 40% do total. É até sugerido que a educação básica nas escolas poderia ser substituída pela educação nos lares.
Em segundo lugar, o extremismo ideológico reverteu décadas de tradições estatais brasileiras. É o caso da política externa multilateral comprometida com a paz defendida pelo Itamaraty, substituída por relações "carnais" com os Estados Unidos e seus principais aliados, como Israel. Essa guinada pode até incluir a participação do Brasil em intervenções militares lideradas por Washington na região.
E o mais grave de tudo, cumprindo promessas de campanha, o governo se apressa em relaxar as condições de venda e uso de armas na população. Alguns analistas interpretam que podem estar orquestrando a montagem de milícias privadas. Desde os anos 1980, como uma "solução" para o aumento do crime e da marginalização, nos bairros periféricos das grandes cidades, antigos membros das forças de segurança, com a colaboração de membros ativos, começaram a vender serviços de segurança privada.
Embora incialmente as chamadas milícias contassem com a complacência dos vizinhos, gradualmente foram se tornando organizações clandestinas que atuam como grupos de extermínio. Monopolizam negócios imobiliários ilegais e disputam com os cartéis do narcotráfico a venda de drogas e o controle de territórios.
A família Bolsonaro tem ligações estreitas com as milícias do Rio de Janeiro. Foram seus representantes nas câmaras legislativas e chegaram a empregar vários membros desses bandos no gabinete do então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro. Um dos milicianos que assassinaram Marielle Franco morava no condomínio fechado onde o próprio Bolsonaro residia. Se confirmada essa suspeita, se estaria aprofundando a decomposição e o desmanche do aparato estatal.
Hoje, o estado brasileiro não controla amplos territórios urbanos que estão nas mãos de milícias e traficantes de drogas. As forças de segurança que ainda respondem formalmente aos governos estão majoritariamente envolvidas em atividades mafiosas. Bolsonaro, assim como figuras macabras da "nova política", como os governadores Wilson Witzel do Rio de Janeiro e João Dória de São Paulo, com a legitimidade dos votos, encorajam essa transformação do Brasil em uma espécie de estado falido. Se a esse quadro se soma a persistência do desemprego e a continuidade da deterioração econômica, as consequências podem ser irreversíveis. O conflito distributivo no Brasil pode pôr fim aos últimos traços de uma sociabilidade civilizada.
Existe capacidade de resposta na sociedade brasileira? A devastação é definitiva? O principal adversário de Bolsonaro não é a oposição, mas o próprio governo. Os principais membros da coalizão governante não desperdiçam um único dia para surpreender com novos escândalos, incluindo brigas verbais ruidosas. O presidente mantém o tom belicoso de campanha e ganha inimigos em todas as filas, especialmente no parlamento.
A figura caricaturesca do astrólogo Olavo de Carvalho, ideólogo da família Bolsonaro, com a aprovação do presidente, mantém uma disputa acirrada com membros do governo, especialmente com militares como o vice-presidente Hamilton Mourão. Essas idas e vindas enfraquecem o governo e dão força a seus inimigos.
Bolsonaro enfrenta os principais meios de comunicação, colide com o Parlamento, colhe ressentimento nas Forças Armadas, perde a aprovação popular. Simultaneamente, a economia parece se encaminhar para uma nova recessão. Não é improvável que Bolsonaro seja despachado pelos mesmos atores que o levaram ao poder.
Seja qual for o resultado político, se o curso econômico não for revertido, a decomposição continuará seu curso com ou sem o "Mito", como seus seguidores chamam o presidente brasileiro, que está no poder há menos de seis meses.
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Brasil no desmanche. Artigo de Eduardo Crespo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU