19 Mai 2019
Bolsonaro deflagrou uma Blitzkrieg contra a sociedade brasileira e a natureza. Mas a sociedade começou a se mobilizar para derrotá-lo, política, científica e ideologicamente.
A reportagem é de Luiz Marques, publicada por Jornal da Unicamp, 14-05-2019.
O dia 15 pode e deve vir a ser mais um passo importante na demonstração para a sociedade de que, como escreve Jânio de Freitas, “a vida pública de Bolsonaro é demarcada pela ideia de morte”. [I] De fato, o ideário da política como campanha militar de eliminação do inimigo e sua defesa dos grupos de extermínio estiveram desde sempre presentes nas atitudes e discursos de Bolsonaro:
“Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio” (2003);[II]
“Vamos fuzilar a petralhada aqui no Acre” (2018); [III]
“Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (2018). [IV]
Essa retórica foi instrumental para ganhar a adesão entusiástica do agronegócio:
“O Geraldo [Alckmin] é um piloto de [Boeing] 747 da Lufthansa: não vai chacoalhar, vai jantar, atravessar o Atlântico bem tranquilo. Só que não estamos voando em céu de brigadeiro, estamos voando sobre a Síria. O Bolsonaro é um piloto de [caça] F-16. O Brasil precisa de um piloto de F-16.”
A declaração acima, datada de 29 de abril de 2018, foi feita pelo deputado estadual Frederico d’Avila (PSL-SP), conselheiro e diretor da Sociedade Rural Brasileira, e vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja (APROSOJA). [V] O deputado não expressava apenas sua opinião pessoal, mas repercutia os tambores de guerra do agronegócio como um todo, cuja agenda centra-se na liberdade para desmatar e no uso indiscriminado de agrotóxicos. Já em fevereiro de 2018, Frederico d’Avila, outrora um fidelíssimo de Alckmin, afirmava que “hoje o agro é 95% Bolsonaro”, fato reconhecido inclusive por Nilson Leitão, deputado federal (MT), então líder do PSDB na Câmara, bem como da Frente Parlamentar da Agropecuária, a assim chamada “bancada do boi”: “Como novo líder do PSDB na Câmara, é difícil, mas posso atestar o mesmo. É um fenômeno claro”. [VI]
Esse “fenômeno claro” traduzia a identificação quase total das lideranças do PSDB com o “piloto de caça” do agronegócio. Líder do PSDB na Câmara e presidente do PSDB em Mato Grosso, Nilson Leitão é indiscutivelmente uma dessas lideranças, inclusive em número de delitos, pois respondia em 2017 a sete processos ou ações penais no STF. Em 2015, o STF aceitou a denúncia de sua participação em um esquema para invadir a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, no nordeste do Mato Grosso. Leitão era então o vice-presidente da Comissão Especial que analisava o projeto de lei que permite explorar mineração em terras indígenas, além obviamente de ter votado em 2012 a favor da alteração do Código Florestal proposta pelo PCdoB.[VII]
Não bastam, assim, os deméritos pessoais de Alckmin, representante de parcelas do empresariado urbano, para explicar sua humilhante derrota eleitoral (4,79% dos votos válidos). Ela se deve também, e sobretudo, ao fato de ter sido defenestrado por seu partido, a ponto de Doria fazer campanha aberta por Bolsonaro, mesmo antes do segundo turno.
Transformar as eleições num teatro de operações bélicas em favor de Bolsonaro não foi, portanto, apenas uma bandeira do agronegócio e do submundo das fake & hate news disseminadas por algoritmos replicantes. A guerra contra os direitos constitucionais dos indígenas e quilombolas, contra os direitos humanos em geral, contra a floresta amazônica, contra os remanescentes do Cerrado e demais biomas brasileiros, contra a Universidade pública, contra a ciência, em suma, contra a Constituição, a sociedade e o meio ambiente, foi deflagrada em ordem unida pela esmagadora maioria dos empresários, rurais e urbanos, representados na frente PSL-PSDB-Democratas, em torno da qual gravita uma pequena nuvem de siglas partidárias indecifráveis. Alckmin, Amoedo (2,5%), Meirelles (1,2%), Álvaro Dias (0,8%) e outros candidatos que se pretendiam representantes do empresariado foram esnobados por este e receberam juntos menos de 10% dos votos válidos.
A primeira batalha, a das eleições, foi ganha por Bolsonaro, ou melhor foi perdida pelo PT, que lhe ofereceu em bandeja essa vitória estratégica, graças a uma conjunção de quatro fatores: (1) a desmoralização da boa parte de suas lideranças por envolvimento em corrupção; (2) a aliança autodestrutiva com o PMDB e o agronegócio, consubstanciada no quarteto Dilma-Temer-Aldo Rebelo-Kátia Abreu; (3) a recusa narcísica das lideranças do PT em se associar, sem pretensão de hegemonia, a uma ampla aliança interpartidária contra a extrema-direita, mesmo após a fragorosa derrota eleitoral sofrida em 2016. As urnas bem que avisaram, mas o PT não ouviu[VIII]; (4) enfim, e acima de tudo, a crise econômica abissal, da qual o PT foi, diga-se de passagem, apenas parcialmente responsável, embora tenha sido apresentado como o único réu.
Esses quatro fatores explicam os 57,7 milhões de votos válidos, a maior parte deles não a favor de Bolsonaro, mas contra o PT. Não obstante a imensa superioridade política, moral e intelectual de Haddad (inclusive dentro do PT), Bolsonaro surfou na adesão maciça do empresariado à sua retórica de guerra e na frustração do eleitorado popular, excitada até o paroxismo por uma sórdida campanha na esgotosfera das redes. Não se deve, enfim, esquecer que Bolsonaro beneficiou-se da ofensiva ideológica internacional da extrema-direita contra a socialdemocracia, a governança global, os direitos civis e o Estado laico, dos EUA às Filipinas, passando pela Turquia, a Itália, a Hungria e outros países europeus.
Vitórias sem mérito próprio são em geral vitórias de Pirro, quase equivalentes a derrotas. É exatamente o caso de Bolsonaro, pois antes mesmo de completar seis meses de governo, sua metralhadora giratória, de tão desastrada, já começa a unir contra ele até parte dos que com ele se identificam ideologicamente. Como escreveu Antônio Prata: “Quem sabe o tiro da arminha de mão não esteja saindo pela culatra e Bolsonaro consiga o que o PSDB e o PT não conseguiram: juntar no mesmo barco todos os que, mesmo que com diferentes visões de mundo, tenham apreço pela democracia, pelas leis, pelos direitos humanos, enfim, por todo esse mimimi efeminado chamado civilização”. [IX]
Mesmo o empresariado, encantado com Paulo Guedes, cogita agora entrar nessa união, dada a inversão de expectativas: no início do ano, a projeção de crescimento do PIB em 2019 era de 2,5%. Caiu em seguida para 2,2%. “Agora”, segundo Alexandre Calais, editor de economia do Estadão, “as projeções do governo para o PIB já estão mais perto de 1,5%. No mercado, há quem fale em algo mais perto de 1%”. [X] Em suma, um crescimento igual ou ainda mais baixo que o de 2018 (1,1%).
Um exemplo didático desse tiro pela culatra é a liberação do porte de armas pelo decreto-lei presidencial de 7 de maio, celebrada como um troféu pelos que votaram em seu pistoleiro predileto, imitando sua “arminha na mão”. Bolsonaro não decepciona os seus, pois cumpre uma promessa de campanha feita em agosto de 2018. Referindo-se ao MST, ele então afirmou: “cartão de visita para invasor tem que ser cartucho 762 com excludente de ilicitude”.
Incitar fazendeiros ou seus prepostos ao assassinato implicaria imediato enquadramento legal e impeachment para qualquer governante, não fosse o Congresso ser dominado pelas bancadas da Bíblia, da bala e do boi e, sobretudo, pelos bancos, impacientes em recolher os frutos da reforma da Previdência. A “função social da propriedade”, o respeito pelos povos da floresta, a proibição de envenenar com agrotóxicos os trabalhadores e os consumidores, a justiça social ditada pelos ideais mais elementares e consagrados da ética, em suma, os princípios elementares da Constituição do Brasil e da Declaração Universal dos Direitos Humanos são desqualificados pela extrema-direita como “populismo”, quando não como “comunismo” ou “marxismo cultural”, termos que repetem como papagaios.
Os dados do Censo Agropecuário de 2006 (o último disponível) mostram, contudo, que o MST tem a razão a seu lado: as propriedades rurais no país com mais de mil hectares somam apenas 0,9% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. As propriedades com mais de 2.500 hectares (0,3% dos estabelecimentos rurais) concentram 30,4% da área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área até dez hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos rurais do país, mas ocupam menos de 2,3% da área rural total. Como sublinha Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil, “o tema da terra é a expressão máxima da desigualdade” no país. [XI] Bolsonaro e o agronegócio têm enfim uma solução simples e “final” para a concentração extrema da propriedade fundiária, um dos mais estruturais e históricos problemas do país: criminalizar os “sem terra”, transformar o MST (um movimento sabidamente desarmado!) em uma organização terrorista e abater os “invasores” a tiros. Afinal, como diz Frederico d’Avila, seu piloto de caça está sobrevoando a Síria…
Abater não apenas pessoas, mas também o máximo número possível de indivíduos de outras espécies. O recente Relatório da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services, IPBES) alerta com mais força que nunca sobre a aceleração do colapso da biodiversidade: 1 milhão de espécies encontram-se agora ameaçadas de extinção, em decorrência sobretudo da destruição das florestas pelo agronegócio global e pela caça. [XII] O fuzilamento dos pobres pelos jagunços dos fazendeiros e a liquidação dos animais silvestres pelos caçadores é, para Bolsonaro e o agronegócio, o mesmo combate, pois o decreto libera a compra de balas por cada cidadão no limite de cinco mil por ano (contra 50 unidades anteriormente), sendo que para os CAC – Colecionadores, Atiradores esportivos e Caçadores – não há limites. Os caçadores por “esporte”, indivíduos que compõem o mais sádico, covarde e necrófilo segmento da espécie humana, estão no céu. Mas por pouco tempo, pois o decreto-lei é claramente inconstitucional e deve ser derrubado pelo Congresso e/ou pelo STF. Como afirmou Marcos Perez, professor da Faculdade de Direito da USP: “Não há dúvida nenhuma de que o decreto é escancaradamente ilegal. E por ser ilegal ele é inconstitucional”. [XIII]
O Brasil e o mundo estão começando a se organizar para defender a Universidade pública, a ciência, as florestas e seus povos tradicionais, alvos prioritários do governo em sua guerra contra a biosfera e contra os esforços de construção de uma sociedade mais letrada, mais justa e sustentável. Três manifestações, em âmbito estadual, nacional e internacional, situam-se no mesmo comprimento de onda e mostram uma idêntica percepção do que está em jogo.
(1) O primeiro é a Carta de apoio ao movimento em defesa da ciência brasileira,datada de 4 de maio e assinada pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (CRUESP).
Os Reitores saem “em defesa da pesquisa e contra os cortes de recursos para o sistema nacional de CT&I e educação superior, na expectativa de que a inegável contrapartida dada pelas instituições científicas brasileiras aos impostos pagos pelo contribuinte seja reconhecida e respeitada”. E reiteram seu apoio ao conjunto das instituições representativas da ciência do Brasil, a começar pelo SBPC, a Academia Brasileira de Ciências e a Associação Nacional de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), reunidos em Brasília em 8 e 9 de maio, num esforço heroico de salvar a educação e a ciência no país. Mas Bolsonaro jamais entenderá as razões pelas quais nossa espécie entende se distinguir, dentre as demais do gênero Homo, pelo adjetivo sapiens. O sentido desse adjetivo lhe escapa porque o saber, a reflexão e a capacidade de simbolização não são, para ele, um valor em si. De onde o rancor que nutre contra as humanidades e a dimensão especulativa da ciência em geral.
(2) O segundo documento é o Comunicado dos Ex-Ministros de Estado do Meio Ambiente, divulgado no dia 8 de maio no Instituto de Estudos Avançados da USP, acusando o governo Bolsonaro de promover uma “política sistemática, constante e deliberada de destruição das políticas meio ambientais”.
Eis o teor essencial do documento assinado por Rubens Ricupero, Gustavo Krause, José Sarney Filho, José Carlos Carvalho, Marina Silva, Carlos Minc, Izabella Teixeira e Edson Duarte:
“A governança socioambiental no Brasil está sendo desmontada, em afronta à Constituição. (…) Estamos diante de um risco real de aumento descontrolado do desmatamento na Amazônia. (…) É urgente a continuidade do combate ao crime organizado e à corrupção presentes nas ações do desmatamento ilegal e da ocupação de áreas protegidas e dos mananciais, especialmente nos grandes centros urbanos. (…) É grave a perspectiva de afrouxamento do licenciamento ambiental, travestido de “eficiência de gestão”, num país que acaba de passar pelo trauma de Brumadinho. (…) Tampouco podemos deixar de assinalar a nossa preocupação com as políticas relativas às populações indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais, iniciada com a retirada da competência da Funai para demarcar terras indígenas. Há que se cumprir os preceitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, reforçados pelos compromissos assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional, há muitas décadas. (…) Somos um dos países megabiodiversos do planeta, o que nos traz enorme responsabilidade em relação à conservação de todos os nossos biomas. (…) Reafirmamos que o Brasil não pode desembarcar do mundo em pleno século 21. Mais do que isso, é preciso evitar que o país desembarque de si próprio”.
(3) Enfim, dada a iminência e a envergadura internacional da ameaça Bolsonaro, acrescenta-se aos apelos nacionais, um chamamento à ação publicado em 26 de abril de 2019 na Science, uma das mais importantes revistas científicas do mundo. O documento é subscrito por 602 cientistas europeus e por duas entidades representativas de mais de 300 nações indígenas brasileiras:
– Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
– Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
O Brasil, que abriga uma das últimas grandes florestas do planeta, está atualmente em negociações comerciais com seu segundo maior parceiro comercial, a União Europeia (UE). Instamos a UE a aproveitar esta oportunidade crítica para garantir que o Brasil proteja os direitos humanos e o meio ambiente.
As florestas, o Pantanal e o Cerrado do Brasil são cruciais para uma grande diversidade de povos indígenas, a estabilidade de nosso clima global e a conservação da biodiversidade. Ao trabalhar para desmantelar as políticas contra o desmatamento, a nova administração do Brasil ameaça os direitos indígenas e as áreas naturais que eles protegem.
A UE despendeu mais de 3 bilhões de euros em importações brasileiras de ferro em 2017, apesar dos padrões de segurança perigosos e do desmatamento extensivo gerado pela mineração. Somente em 2011, a UE importou carne bovina e ração animal associada a mais de 1.000 km2 de desmatamento brasileiro [equivalente a mais de 300 campos de futebol por dia]. Por conseguinte, a UE precisa urgentemente reforçar os esforços em prol do comércio sustentável e defender os seus compromissos com os direitos humanos, proteção ambiental e mitigação das mudanças climáticas.
Cessar o desmatamento faz sentido em termos econômicos, já que as florestas intactas são críticas para manter os padrões de chuva dos quais a agricultura brasileira depende. A restauração de terras degradadas e a melhoria dos rendimentos poderiam atender à crescente demanda agrícola por pelo menos duas décadas, sem necessidade de desmatamento.
Exortamos a UE a condicionar as negociações comerciais com o Brasil a: (i) defender a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; (ii) aperfeiçoar os procedimentos para rastrear commodities associadas ao desmatamento e a conflitos em relação aos direitos indígenas; e (iii) consultar e obter o consentimento dos Povos Indígenas e das comunidades locais para definir critérios estritamente sociais e ambientais para as commodities negociadas.
A UE fundou-se nos princípios do respeito aos direitos humanos e à dignidade humana. Hoje, tem a oportunidade de assumir uma liderança global no apoio a esses princípios e a um clima habitável, fazendo da sustentabilidade a pedra angular de suas negociações comerciais com o Brasil.
Sim, o mundo precisa condicionar as importações de commodities brasileiras a uma inequívoca demonstração de que não foram produzidas em detrimento das florestas, de seus povos e de sua fauna. Mas cabe a nós, brasileiros, em primeiro lugar, entender a relação entre nosso próprio carnivorismo e a destruição da Amazônia. Mais da metade das emissões de gases de efeito estufa no Brasil provém da destruição da floresta e do metano liberado pela atividade entérica do gado bovino. No Brasil, o passo mais importante a ser dado por cada um de nós para a sobrevivência das sociedades e de nossos próprios filhos e netos é parar ou diminuir drasticamente o consumo de carne. Para muitos, entre os quais me incluo, transitar para uma dieta sem carne, ou quase sem carne, é uma luta constante, mas absolutamente necessária. Não dá mais para “fazer de conta” que nada temos a ver com a destruição da Amazônia e com as mudanças climáticas. O bife que você come é carne ao molho madeira(Greenpeace, 2015).
Bolsonaro assume o poder num momento crucial da história do Brasil e do mundo. Crucial porque os cientistas advertem que a Amazônia está no limiar de um dieback, de uma transição acelerada para um tipo de vegetação não florestal, o que terá consequências catastróficas e irreversíveis (as palavras são realmente essas) para a agricultura, o clima e os recursos hídricos do país, do continente e do mundo. Antônio Donato Nobre em mais de uma ocasião [XIV] e o editorial da revista Science Advances de 21 de fevereiro de 2018, assinado por Carlos Nobre e Thomas Lovejoy, advertem que: [XV]
“Sinergias negativas entre desmatamento, mudanças climáticas e uso extensivo de fogo indicam um ponto crítico para o sistema amazônico de transição para ecossistemas não florestais na parte leste, sul e central da Amazônia uma vez atingido 20% a 25% de desmatamento”.
Cerca de 20% da floresta amazônica já foram desmatados por corte raso, de modo que estamos no limiar da catástrofe. A tragédia Bolsonaro vai, portanto, além até mesmo da crítica contundente dos ex-ministros do Meio Ambiente: Bolsonaro está fazendo não apenas o Brasil desembarcar do século XXI e de si próprio. Está fazendo o Brasil e o mundo desembarcarem irreversivelmente – repita-se: irreversivelmente – de suas últimas chances de manter as mudanças climáticas em um nível ainda viável para qualquer sociedade organizada. Se não forem detidos por uma ampla aliança das sociedades, e o quanto antes, Trump e Bolsonaro corresponderão na história da humanidade ao que, nas tragédias, representa a sempre insignificante “falha trágica”.
Em outubro de 2018, Debra Roberts, co-diretora do Grupo de Trabalho II do IPCC declarou: “Os próximos poucos anos serão provavelmente os mais importantes de nossa história”. [XVI] Esse mesmo chamado final ressoa nas vozes de Kathleen Dean Moore e de grande parte dos cientistas: “Estamos vivendo um ponto crítico. Os próximos anos serão os mais importantes na história da humanidade, talvez na história da vida planetária”. [XVII] Sir David King, ex-Cientista Chefe do governo do Reino Unido, reafirmou mais uma vez essa realidade que os cientistas estão tentando desesperadamente nos fazer entender: “O que fizermos nos próximos 10 anos determinará o futuro da humanidade pelos próximos 10 mil anos”. [XVIII]
Hoje, o trabalho mais importante dos cientistas e de todas as pessoas dotadas de informação qualificada é mostrar aos seus próximos, aos partidos e à sociedade como um todo que nosso presente e nosso futuro estão “por um fio”. Esse trabalho não é simples, dada a resistência a sair de zonas de conforto, mas é fecundo e já tem dados seus frutos, pois todas as criaturas e agremiações que respeitam o valor do fato, da ciência, da razão e do diálogo começam a perceber o perigo existencial iminente a que a humanidade e a biosfera estão hoje expostas. Bolsonaro é a exceção. Deu e continua dando mostras de que cultiva apenas a arma com que dorme[xix] e o ódio aos que ele não entende. Ele representa a negação de tudo o que a civilização preza e necessita para existir: florestas, direitos e convívio pacífico. Ele precisa ser derrotado e o será, politicamente, pela civilização, para que esta sobreviva.
Notas:
[I]Folha de São Paulo, 12/V/2019.
[II]Cf. Bernardo Mello Franco, “Em discursos, Bolsonaro já exaltou milícias e grupos de extermínio”. O Globo, 14/X/2018.
[III]Cf. Janaína Ribeiro, “’Vamos fuzilar a petralhada’, diz Bolsonaro em campanha no Acre”.. Exame, 4/IX/2018.
[IV] Veja, 22/X/2018.
[V] Veja-se entrevista dada a Igor Gielow: “Ruralista troca Alckmin por Bolsonaro e diz que tempo de tucano passou”. Folha de São Paulo, 29/IV/2018.
[VI] Cf. Igor Gielow, “Aliança de ruralistas com Bolsonaro preocupa Alckmin”. Folha de São Paulo, 10/II/2018.
[VII] “Leitão é o quarto deputado com maior número de processos no STF”. Circuito Mato Grosso, 12/V/2017; Alceu Castilho e Isabela Sanchez, “Relator da CPI da Funai é um dos recordistas em acusações criminais no STF”. De olho nos ruralistas, 17/V/2017.
[VIII] Em 2016, o PT perdeu 60,2% das prefeituras em relação a 2012 e perdeu a prefeitura de São Paulo para João Doria no primeiro turno: 3 milhões de votos contra apenas 967 mil para Haddad, uma derrota sem precedentes na história política da cidade.
[IX] Cf. Antônio Prata, “Bolsonaro vai unir o Brasil”. Folha de São Paulo, 5/V/2019.
[X] Cf. “Nuvens mais escuras no horizonte da economia”. O Estado de São Paulo, 10/V/2019.
[XI] Cf. Amélia Gonzales, “Estudo mostra concentração de terras no Brasil, expressão máxima da desigualdade social”. G1, 6/XII/2016.
[XII] Cf. Erik Stockstad, “Can a dire ecological warning lead to action?” Science, 10/V/2019.
[XIII] Cf. Letícia Mori, “Por que o decreto de armas de Bolsonaro pode acabar sendo derrubado”. Folha de São Paulo, 11/V/2019.
[XIV] “O futuro climático da Amazônia”. Relatório de Avaliação para a Articulación Regional Amazônica (ARA), 2014 .
[XV] “Amazon Tipping Point”. Science Advances, 4, 2, 21/II/2018. Repercutido em L. Marques, “Ponto crítico na Amazonia”. Jornal da Unicamp, 5/III/2018.
[XVI] Cf. IPCC Press Release 8 October 2018 Summary for Policymakers of IPCC Special Report on Global Warming of 1.5ºC approved by governments.
[XVII] Cf. The Second Warning (filme): “We are living in a hinge point. The next couple of years will be the most important years in the history of humanity, maybe in the history of planetary life”.
[XVIII] Citado por Pallab Ghosh, “Climate change: Scientists test radical ways to fix Earth’s climate”. BBC, 10/V/2019.
[XIX] Cf. Leandro Colon, “Bolsonaro diz que dorme com arma do lado da cama no Palácio da Alvorada”. Folha de São Paulo, 13/III/2019.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Alastra-se o rechaço a Bolsonaro; análise de Luiz Marques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU