17 Mai 2019
"Onde estão projetos alternativos? Pelo momento é um enorme clamor que pode derrubar montanhas de ignorância acumulada. Mas sucedidas por quê? Esse é o momento desafiante que temos pela frente", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Caiu uma das falsas e superficiais afirmações: o país está irremediavelmente apático. Essa cantilena sempre voltava no passado e era logo adiante desmentida por tempos fortes do povo na rua. Nunca é possível uma mobilização permanente, mas ela irrompe em momentos críticos de apoio ou de perigo. Vivemos no passado os grandes movimentos durante a campanha das Diretas Já. Assim foi depois com os caras pintadas contra Collor. Ou a mobilização em São Paulo em 2013. Antes no suicídio de Getúlio ou na morte de Tancredo.
Que causa maior e mais contagiante do que a defesa da educação para as novas gerações? Coloco neste texto, orgulhoso, um cartaz brandido ontem por um participante: os jovens de 68 encontram os jovens de 2019. Incluo-me com orgulho no primeiro grupo. No Chile (setembro de 1967) e nos Estados Unidos (agosto de 68) aderi às manifestações com entusiasmo. Sentíamos uma mudança epocal chegando. Lembro da emoção ao assistir, naquele ano, o musical Hair sucessivamente em Nova Iorque, em Londres, em San Francisco e finalmente aqui no Rio. Com a canção final carregada de esperança: Let the sunshine in.
Agora, a grande motivação está sendo a defesa da educação ameaçada, não somente por problemas orçamentários porém, principalmente, diante de uma campanha ignorante e primária contra um processo educacional necessariamente crítico.
Tudo isso despertou o dinamismo aparentemente hibernado e os jovens saem às ruas, com professores, pais e mães, técnicos em educação, pensadores, cientistas, políticos, etc.
A mobilização ocorreu em mais de 200 cidades, com cerca de 1,5 milhões de participantes (segundo a insuspeita Veja). Mesmo as Diretas já não tiveram a abrangência nacional deste porte. Pode-se dizer, com certeza, que foi a maior mobilização da história a nível nacional.
Colaborou para isso a pseudo-política educacional absurda e suicida deste governo. Depois, a reação se incrementou a partir de declarações aberrantes e violentas do presidente e do ministro da educação. É incrível como o governo soube trabalhar tão bem contra ele mesmo.
Estas manifestações não foram capturadas por grupos específicos, mas tiveram uma presença plural. Organizações educativas, estudantis ou políticas aderiram, claro está, sem conseguir ou tentar hegemonizar o processo. Aliás, paradoxalmente, elas não têm sido capazes de explicitar propostas coerentes e de união. Isso mais adiante poderá ser um freio, mas no momento permitiu uma participação diversa, múltipla e democrática. Penso que inclusive há grupos que votaram em Bolsonaro – com exceção de grupelhos radicais dos olavetes e da família imperial – e que agora, ou se calam confusos ou estão aderindo aos protestos.
Nunca um governo está se liquefazendo tão rapidamente diante do clamor das ruas. O jornalista Ascânio Seleme, que dirigiu O Globo, escreveu em sua coluna de 16/5: “Se os filhos afugentaram do pai os ministros políticos e técnicos, Olavo (de Carvalho) afugenta os militares. O perigo de isolamento de Jair Bolsonaro é real. Para quem faz tudo para parecer que somente a derrota interessa, o caminho para o fracasso não poderia estar mais aberto e desimpedido”. Indicação de um jornalista bem posicionado no sistema sobre o fim de um governo que nem começou?
As manifestações (badernas para o simplório ministro) podem apressar o desenlace. O general Mourão e Rodrigo Maia desembainham silenciosamente seus punhais. Os meios de comunicação, estampando a amplitude das mobilizações, parecem indicar um sinal verde que recebem dos setores dominantes. É patético como Guedes fala no vazio, permanentemente desmentido em tudo o que afirma. O ambicioso Moro deve estar arrependido de ter caído numa arapuca que pode engoli-lo.
Não podemos ficar na celebração triunfalista - e de certa maneira enganosa –, mas exigir a elaboração urgente de propostas para a educação, para outras políticas sociais e econômicas. A oposição a um governo titibitate deveria ter em conta um enorme patrimônio acumulado no país por anos de educação popular (Movimento de Educação de Base, Movimento Popular de Cultura do Recife, Centros de Cultura popular, etc.), com notáveis experiências-piloto educativas. O Brasil, nessa área, é visto do exterior (New York Times, Washington Post, El País, La Reppublica, etc.) com admiração e respeito.
A UNESCO publicou informes entusiastas sobre nossa política educativa entre os anos 1958-1964. Colaborei nesse levantamento: Problemática de la educación en América Latina (CELAM, Bogotá, 1967); Youth participation in the development process: a case study in Panama (em colaboração com Lucia Ribeiro, coleção Experiments and innovations in education, vol. 18, The Unesco Press, 1976, traduzido ao espanhol e francês ); Educação e participação (em várias línguas, Fao, Roma, 1980; IFDA Dossier nº27, Genebra,1982; Indian Institute for Development, Kerala, 1981).
Acusa-se tolamente Paulo Freire, um dos maiores educadores a nível mundial, sem ter a mínima ideia de quem era e do que fez no Brasil (60-64), no Chile (68-72), em Harvard (70), no Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (74-79), depois na volta ao Brasil em 80. A enorme bibliografia sobre Paulo Freire indica a riqueza de uma fecunda prática educativa. Obra imensa com raízes em nossa identidade e entre “os condenados da terra”: Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1972; a terceira obra de ciências sociais mais citada no mundo, com traduções em muitas línguas), Conscientization (2002), Pedagogia da esperança (2022) e tantos outros livros. Sobre ele: Revisitando Paulo Freire (2012), Educação popular na perspectiva freiriana (2009). Recebeu 48 títulos honoris causa e menções universitárias pelo mundo afora (o brasileiro que ostenta o maior número de menções).
Diante disso, vêm afirmações tolas sobre um tal de marxismo cultural (sabem eles, os ignorantes, que Paulo nunca foi marxista?). É na área educacional que fica claro que o rei está nu. Talvez aí comece o princípio do fim.
Volto ao dito antes: diante desse vazio, onde estão projetos alternativos? Pelo momento é um enorme clamor que pode derrubar montanhas de ignorância acumulada. Mas sucedidas por quê? Esse é o momento desafiante que temos pela frente.
Dia 15 de maio fomos acompanhar Marina Bandeira, falecida na véspera. Por anos Secretária-Geral do Movimento de Educação de Base (acordo da Conferência dos Bispos, CNBB, com o Ministério da Educação da época), tinha a têmpera de educadora e a valentia para denunciar tempos sombrios que chegaram com torturas e perseguições. Voltam agora as perseguições. Lembrei, na ocasião, que era o momento exato, pelo país afora, de manifestações diante de uma educação ameaçada. Pedi a Marina, onde esteja, que interceda por nosso Brasil. Fui calorosamente aplaudido.
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A maior mobilização da história do Brasil: desafios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU