25 Abril 2019
Há cerca de cinco anos um fenômeno incompreensível começou a ser notado pelos associados da Cooperativa Agrária São José, que produz vinhos na cidade de Jaguari, região centro-oeste do Rio Grande do Sul. Em uma das mais antigas cooperativas gaúchas, fundada em 1932, nada parecido havia acontecido antes. “Começaram a enrugar as folhas dos parreirais, torcer e definhar a produção. Nossos técnicos analisavam e não encontravam doença nenhuma”, conta o presidente da entidade, João Minuzzi.
A reportagem é de Felipe Prestes, publicada por Sul21, 24-04-2019.
Embora já existissem suspeitas, só no ano passado é que se comprovou a causa do problema: análises mostraram que o culpado pela queda na produção da cooperativa era a presença do 2,4-D, um herbicida utilizado largamente nos últimos anos por sojicultores. O produto é usado no combate da buva, uma planta tida como “invasora”, que criou resistência ao glifosato.
“Produzíamos cerca de 18 toneladas de uva e agora cinco, seis”, relata o presidente da cooperativa. A queda na produção tem trazido consequências bastante graves. “Eu comprei neste ano várias toneladas de uva. Não tenho mais matéria-prima para fazer o vinho”, conta. Se, em um futuro próximo, mais de 30% das uvas utilizadas na produção do vinho vierem de não-associados, esta operação pode deixar de ser considerada um ato cooperativo, implicando em uma série de mudanças para a São José, como, por exemplo, o aumento de tributos.
Mas o problema não fica restrito à Cooperativa São José, muito pelo contrário: se estende por diversas regiões do Estado, como, por exemplo, a região da Campanha. “Faz uns três anos que a gente começou a sentir a pouca produção, mas não se sabia o motivo. Então alguns produtores mais experientes, e que também plantavam soja, perceberam a causa. A perda é gigante em praticamente todas as vinhas da região”, conta a presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, Clori Peruzzo.
“O 2,4-D é similar a um hormônio, envia mensagens para a planta, por isto quantidades muito pequenas já causam sintomas, causam uma desregulação”, relata o engenheiro agrônomo e chefe da Divisão de Agrotóxicos da FEPAM, Gianfranco Badin Aliti. “Nas plantas mais sensíveis mesmo que não leve à morte, causa queda de produção, de floração, na safra atual e nas seguintes”, explica.
Por este efeito duradouro do 2,4-D muitos agricultores têm simplesmente desistido de trabalhar com uva. “O 2-4,D está erradicando os parreirais. Tu plantas e ele não vem mais, sobe uns 50 centímetros, bate o veneno e não cresce mais. Os associados estão largando e plantando fumo no lugar”, lamenta Minuzzi, da cooperativa de Jaguari.
Na Campanha, a presidente da associação teme que isto também possa acontecer. “Muitas plantas morreram ao longo desses três anos. Então nós temos que replantar. Mas se não pararem de aplicar esse produto, nem vale a pena replantar”, diz Clori Peruzzo.
(Foto: Cooperativa Agrária São José)
Entre setembro e dezembro do ano passado, a Secretaria Estadual de Agricultura coletou 61 amostras de videiras, em 21 municípios e encontrou 2,4-D em 56 amostras, em 18 municípios. Apesar de a maioria das amostras terem sido coletadas na Região da Campanha, o 2,4-D aparece nos parreirais de municípios de várias regiões do Estado, como São Borja, na Fronteira Oeste; Monte Alegre dos Campos, nos Campos de Cima da Serra; e Sobradinho, na Região Central do Estado. A Secretaria também detectou o 2,4-D em cinco amostras de oliveiras em Candiota e uma em Santana do Livramento. E também em duas amostras de cinamomo, e uma em milho, azevém, campo nativo, pasto e guabiju.
Os problemas ocorrem devido à deriva, que é quando o agrotóxico aplicado em uma lavoura vai para fora da área de cultivo. A pulverização aérea costuma trazer maiores riscos de deriva, mas o 2,4-D costuma ser aplicado por tratores e mesmo assim tem gerado deriva. Pairam dúvidas sobre que distância o 2,4-D pode atingir. Fala-se em dois a três quilômetros, mas os vitivinicultores dizem ter sido atingidos por aplicações a até dez quilômetros de suas propriedades.
O Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) projeta prejuízos de R$ 94 milhões, com redução de 32% apenas na colheita atual da uva, sem considerar que os efeitos do 2,4-D vêm sendo notados há alguns anos. “Nós projetamos de forma muito conservadora os prejuízos”, ressalta Helio Marchioro, conselheiro do Instituto. “Não consideramos custos intangíveis, como o custo de implantação, de parreirais que precisarão ser implantados novamente. Só consideramos o custo da safra e o valor agregado no vinho, com preços conservadores”.
Mas a deriva do 2,4-D não coloca em perigo apenas atividades econômicas. “Se encontrou 2,4-D até em área urbana de Bagé e ninguém fala na questão da saúde humana, do meio ambiente que está sendo contaminado, dos trabalhadores rurais que aplicam, as crianças, gestantes, idosos todas as crianças que ficam expostas”, ressalta o coordenador do Fórum Gaúcho de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos, Rodrigo Valdez de Oliveira. “O Brasil ano passado foi responsável por 20% do consumo mundial de agrotóxicos. Pena que essa situação só tomou relevo por conta do problema entre cadeias econômicas”, lamenta.
(Foto: Cooperativa Agrária São José)
O Ministério Público Estadual apura os danos causados pelo 2,4-D. Por meio da assessoria de imprensa, o MP informa que em meados de março o promotor responsável pela investigação, Alexandre Saltz, chamou “representantes dos diversos setores atingidos pelo agrotóxico para buscar uma avaliação sobre o impacto do mesmo na economia do estado, já que há indícios de que prejudica culturas de uva, oliva, maçã, produção de vinho, dentre outras”. A assessoria informa ainda que o promotor aguarda “documentações desses produtores e buscando reunir-se com os secretários de Estado da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente para ver quais providências serão tomadas”. Por fim, esclarece que, “dependendo das respostas dos secretários, o MP não descarta o ajuizamento de ação para proibir a utilização do 2,4-D no Estado”.
Anteriormente, a promotora Anelise Grehs, coordenadora do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais do Ministério Público Estadual, chamou as partes envolvidas para buscar uma solução conjunta, mas não houve acerto. O Governo do Estado também criou um Grupo de Trabalho para discutir a questão com todas partes envolvidas, mas a primeira reunião só foi ocorrer no último dia 17. E os vitivinicultores têm pressa, pois o preparo do plantio de soja e, portanto, a aplicação de 2,4-D, começa em junho. “No mais tardar final de maio temos que ter isto resolvido”, defende Clori Peruzzo.
O impasse entre os produtores de uva e vinhos e os de soja parece residir na suspensão ou não do uso da substância. Os vitivinicultores com quem o Sul21 conversou são taxativos. “A gente não vê alternativa senão a suspensão pelo menos neste ano para a gente trabalhar mais tranquilo”, afirma Peruzzo. O conselheiro do Ibravin Helio Marchioro concorda: “Não tem outra saída”.
Em 2017, a Prefeitura de Jaguari propôs e a Câmara de Vereadores aprovou a suspensão do uso de 2,4-D durante o período de 15 de setembro a 15 de março na área de vitivinicultura da cidade. Ainda assim, a utilização do princípio ativo em municípios próximos tem feito com que os parreirais de Jaguari sejam atingidos. “Tem que ter uma lei de nível estadual”, conclui João Minuzzi.
Para o coordenador do Fórum Gaúcho de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos, a solução também seria a suspensão do uso do 2,4-D. “Não há tempo para que o Estado regule esta matéria. O que eu acho que seria acertado seria uma suspensão do uso do 2,4-D para este ano até que sobrevenha uma legislação ou decreto estipulando uma série de medidas para minimizar esses problemas”, afirma.
Porém, a tendência é que a suspensão não ocorra. A FEPAM, responsável pelo cadastro dos agrotóxicos no Estado, já descartou a hipótese. O órgão encaminhou a questão para a Comissão de Cadastro, que é formada por três integrantes técnicos da Secretaria de Saúde, três da Agricultura e três da FEPAM. “Para suspender tem que ter fundamentação e, neste caso, nós não vimos fundamentação. Eu levei para a Comissão e eles foram bem enfáticos de não haver restrição. Mas faço uma ressalva: isso não significa que ele não seja perigoso”, afirma o engenheiro agrônomo e chefe da Divisão de Agrotóxicos da FEPAM, Gianfranco Badin Aliti.
O agrônomo ressalta que o produto é largamente utilizado na Europa e nos Estados Unidos e que o problema maior pode estar residindo na má aplicação. “Quanto maior a gota do produto, menos ela fica volátil, gotas pequenas podem atingir distâncias maiores. Isso depende da pressão do equipamento. Um equipamento bem regulado pode diminuir a deriva, embora não se possa garantir que não aconteça”, explica.
Outro órgão que poderia suspender o uso do 2,4-D seria a Secretaria Estadual de Agricultura, mas o secretário Covatti Filho descarta esta medida. “A suspensão do 2,4-D, por si só, não resolve o problema, considerando que, em nossa visão, os prejuízos registrados em outras culturas foram decorrentes de aplicação incorreta do herbicida. Trocar um produto por outro não é garantia de solução para uma situação que teve como causa, conforme nossa análise preliminar, a aplicação incorreta. Em nosso entendimento, a resolução deste conflito passa por uma discussão profunda com diferentes cadeias produtivas”, afirma.
“Se proibir o 2,4-D o problema vai se transferir para o glifosato ou para outro produto. É preciso um regramento que force as boas práticas de aplicação”, defende o presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (APROSOJA-RS), Luiz Fernando Fucks. Conforme o dirigente, a tecnologia de pulverização existente permite evitar a deriva. Segundo ele, foi feito um mau uso do 2,4-D, especialmente na região da Campanha, onde o vento é muito forte. “Naquela região de fronteira agrícola o pessoal não está muito consciente. Por isso que chegou a necessidade de um regramento”, diz, embora o problema esteja afetando também outras regiões do Estado.
Fucks afirma que o controle de plantas invasoras, como a buva, é fundamental no plantio de soja. “A buva é muito difícil de controlar, se você não controlar de um ano para outro a população aumenta muito”. Ele explica que, sem o uso de agrotóxicos, seria necessário o revolvimento da terra, o que baixa muito a produtividade.
O presidente da Cooperativa São José discorda da necessidade do uso de 2,4-D. Segundo ele, a utilização desta substância é uma questão meramente econômica. “Eu também planto soja e não uso o 2,4-D. Todos nós da cooperativa plantamos soja. Não é como estão falando, que não seria possível plantar sem o 2,4-D. Existem várias outras substâncias que podem ser utilizadas. Só sai um pouco mais caro. É pela relação custo-benefício”, afirma. João Minuzzi ressalta ainda que a buva já tem oferecido maior resistência ao 2,4-D, fazendo com que seja necessário utilizar um volume maior do agrotóxico, o que já minimiza mesmo a justificativa econômica de seu uso.
O conselheiro do Ibravin Helio Marchioro afirma que, apesar de a soja trazer divisas para o país, privilegiar o cultivo dela em detrimento de outras culturas não traz benefícios econômicos. “Nós queremos apoio de todos para que não haja uma valoração de uma cultura em detrimento de outras. A soja tirou do campo centenas de famílias e botou na cidade, gerando custos para os municípios, como, por exemplo, de saneamento. Mas a soja não agrega valor, os municípios arrecadam muito pouco com ela. E gera pouco emprego. No caso da uva, tem agregação de valor, tem o vinho, o rótulo, a garrafa. Tem mão-de-obra para colher, na indústria, nas vendas, no enoturismo, na hotelaria”, compara.
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2,4-D: o herbicida que tem feito agricultores desistirem de produzir uvas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU