22 Abril 2019
"Se a páscoa, segundo a fé cristã, lembra a libertação dos escravos do Egito pela mão de Deus, conforme conta o Antigo testamento bíblico, e a ressurreição de Jesus Cristo, de acordo com o Novo, o deus de Bolsonaro está mais para um ídolo do que para um deus", escreve Jacques Tavora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
A invocação do nome de Deus aparece frequentemente nas falas do presidente (?) Jair Bolsonaro, dando ênfase devota ao Seu Nome e leis em muitos dos seus pronunciamentos públicos. Embora este costume possa induzir muita gente a acreditar que ele esteja se referindo ao Deus reverenciado por cristãos e cristãs - como acontece agora durante a semana chamada santa, na qual se recorda a morte e a ressurreição de Jesus Cristo - se é a este Deus que o representante o Poder Executivo da União está se referindo.
O certo parece indicar, por uma consulta mesmo superficial à bíblia, comparando-se o que nesse livro é escrito sobre Deus com as políticas desenvolvidas por Bolsonaro, não ser bem Este o deus em quem o presidente crê e cumpre Sua Vontade. Isso não significa muito para a população descrente ou agnóstica e num Estado que se constitui laico sustentando apenas a liberdade de religião prevista na Constituição Federal.
Não há necessidade de muita argumentação para se ter cuidado com a fé religiosa e os cruéis desvios que ela provocou sobre toda a humanidade no passado. Aliás, no chamado antigo como no novo testamento da bíblia, há muitas passagens onde isso aparece de forma trágica, em que se adverte as/os seguidoras/es do Deus lá Revelado, sobre as inúmeras falsificações da Sua Identidade, inclusive entre aquelas/es que se proclamam religiosas/es e crentes fiéis. Os exemplos desse fato, de tão repetidos na história, por quem se julgou institucionalmente autorizado para isso, acabou confundindo Deus com um ídolo, transformando-O numa caricatura fundamentalista, um policial de costumes, juiz que só pune e condena, vigilante milícia (!), “dono do raio e do trovão”, fantasma a quem só se deve fugir de medo.
Para que se tenha uma percepção aproximada deste ente considerado como deus pelo presidente (?), algumas de suas palavras e atitudes servem de pista. Ele não cansa de repetir um gesto de mão agressivo, semelhante ao porte de uma arma, revólver ou o que seja. Imaginar um deus que apoia uma conduta dessas como forma de vida, arrisca assemelhá-lo a um bandido, um ladrão ou um traficante.
Bolsonaro também tem aversão clara a gente pobre e desvalida. Vem fechando qualquer possibilidade de ação pública pacientemente montada no passado, dentro da própria administração pública, para proteger e defender direitos sociais de trabalhadoras/es, índias/os, quilombolas, gente sem terra, sem teto, catadoras/es de material.
Um receituário ortodoxo de adesão à tese neoliberal está sendo implementado no país, de que o capital e o mercado vão se encarregar de afastar do seu caminho toda aquela multidão que, se é pobre e não tem dinheiro, não compra, não ativa a economia, só atrapalha, deve ser excluída de qualquer consideração ou assistência, pois é a própria responsável pelo seu estado de pobreza ou miséria.
Uma política com um tal poder, no caso do apoio à violência armada, contraria de forma expressa o amor ao próximo do Deus cristão e, no caso da violência econômica, a preferência por Ele revelada, entre muitas outras provas, pela famosa promessa “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Evangelho de São Lucas, capítulo 6, versículo 20).
Não sendo o Deus das cristãs e dos cristãos o deus do presidente (?), de quem ele está falando? A resposta, se alguém desatento não encontrá-la na bíblia, pode conferi-la em muitas publicações sobre teologia e economia. Duas delas merecem lembrança pela extraordinária adequação do diagnóstico que fazem do “deus mercado”.
Uma está resumida por Jung Mo Sung, numa entrevista que concedeu à Carta Maior em julho de 2016, disponível na internet sob o título de “O deus mercado e a religião capitalista”:
“Por que pobre é pobre? Porque é culpado. Ele merece a sua pobreza”. Segundo essa lógica, “o pobre que não pode comprar brinquedo para o filho assume a culpa duas vezes: pela pobreza e por sentir culpa em ser pobre”. Enquanto isso, o Mercado se consolida enquanto juiz transcendental. “Se a culpa é de todos, por conta da distribuição de riqueza, quem é o juiz que faz essa destruição? O Mercado. Mas, eu posso questionar o mercado? Não. Ele é inquestionável, está além do bem e do mal, do injusto e do justo”. Na medida em que não estão; sob o juízo humano, o Mercado se torna algo sagrado. “E o sagrado é aquilo que é separado do sistema profano, acima do juízo e do questionamento da justiça”, explicou.
Para o reconhecimento desse sagrado “juiz transcendental” como Deus, só por meio da fé, mas a questão se complica muito mais, quando esse deus mercado quer se impor também como ciência, um “paradigma articulador”, onde o interesse próprio, traduzido em prazer, é “a melhor forma econômica de amor ao próximo”... A falácia é desmentida por Hugo Assmann em outra publicação de teologia “A idolatria do mercado”, publicada pela Vozes em 1989, onde o pobre trabalhador e o Pobre da Cruz aparecem de forma nítida como vítimas desse interesse:
“Estamos tocando num aspecto central da teoria sacrifical embutida na teoria econômica neoclássica: a desconsideração e inutilização total do esforço humano, no plano valorativo da economia. Em tese, o suor do trabalhador só vale enquanto é necessário para produzir; uma vez que escorreram, o suor e o sangue não valem absolutamente nada. Ficaram apagados os últimos vestígios de qualquer semelhança possível entre o pobre trabalhador e o Pobre da Cruz. Então, por que pagá-los? No fundo, segundo a lógica dessa teoria, não porque e pelo que trabalhou, mas por duas razões: para que tenha algum rendimento e possa tornar-se consumidor (essa será sua única “função produtiva” diretamente dignificável), e para que volte a trabalhar (embora esse seu trabalho futuro perca de novo, imediatamente seu valor, isto é, seja inutilizado e considerado de nenhum valor, assim que estiver executado). Já dá para perceber que essa teoria “hedonista” do valor, supostamente centrada no “prazer”, é uma teoria macabra do sacrifício. A manipulação das preferências “prazerosas” é a única coisa que interessa a essa teoria do valor, e a partir daí que se tenta refazer uma mensagem afirmadora da “vida”, que nega necessidades e afirma preferências, depois da anulação sádica da dignidade do trabalho e do trabalhador.” (pá g.160).
Se a páscoa, segundo a fé cristã, lembra a libertação dos escravos do Egito pela mão de Deus, conforme conta o Antigo testamento bíblico, e a ressurreição de Jesus Cristo, de acordo com o Novo, o deus de Bolsonaro está mais para um ídolo do que para um deus. É violento, não se escandaliza com a escravidão e, pela adoração que presta ao deus mercado, apoia Judas vendendo Jesus Cristo como qualquer mercadoria.
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O deus de Bolsonaro não é o mesmo Deus da páscoa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU