29 Março 2019
Se pintássemos o quadro da magistratura, em 2018, teríamos um homem, heterossexual, branco, idade de 47 anos, casado, com filhos e católico.
O artigo é de Ana Paula Lemes de Souza, publicado por CartaCapital, 27-03-2019.
08 de março é o dia que, desde 1975, a ONU oficializou para a celebração do dia internacional das mulheres e a rememoração de suas lutas sociopolíticas, que foram travadas, notadamente, no contexto dos séculos XIX e XX, a partir do movimento feminista europeu, que, inspirado pelo iluminismo positivista, passou a buscar a emancipação da mulher pela igualdade de direitos. Hoje, no século XXI, apesar de tantas mudanças, inclusive nos feminismos, a busca ainda continua sendo pela emancipação, dessa vez, do predicado mulher, que, para falar como Donna Haraway, não se trata de categoria inocente, o que aprendemos a murros e pontapés.
Ocorre que o mercado se apropria dessa data e a capitaliza, torna o seu símbolo uma flor.
Nada contra as flores, é claro, mas o simbólico é aristotélico, pois remete à fragilidade ou à “fraqueza das mulheres”, para falar como Immanuel Kant, o que, segundo ele, justificava-se pela “preservação da espécie”.
O dia 08 de março remete às lutas operárias. Alguns mencionam que, no ano de 1857, houve um incêndio proposital em uma fábrica, que matou 129 mulheres, que reivindicavam direitos iguais. Outros apontam que, em março de 1911, na fábrica de roupas Triangle Shirtwais, em Nova York, houve um incêndio, em que morreram 123 mulheres e 23 homens, em virtude de condições precárias de trabalho e não em decorrência de questões diretamente relacionadas ao gênero.
Independentemente desses incêndios, desde a antiguidade até a contemporaneidade, as mulheres são mortas, incendiadas e violentadas. Ainda continuamos sendo queimadas, só que, agora, em fogueiras simbólicas! Diante disso, não podemos nos esquecer de que moramos na terra colonial de nome Brasil, um país que, de modo esquizofrênico, em 2018, elegeu um presidente que tem o inegável discurso de ódio às mulheres, sendo estas as primeiras a serem ameaçadas…
A caça às bruxas se trata de política de estado: o modo de controlar corpos e de dominação epistêmica, a forma de eliminação do poder feminino que se coloca contra o patriarcado. As mulheres que abortavam, as curandeiras, as médicas, as pensantes, aquelas que ameaçavam o domínio do falus, eram e ainda são perseguidas, enquanto o feminicídio é a morte do corpo não doutrinado ou domesticado. Se o feminicídio da caça às bruxas feudal era a forma de eliminação das mulheres, hoje ainda existem outras maneiras de eliminação.
Ainda temos a proibição do aborto, que mata tantos corpos, especialmente, das negras e pobres. Temos a resistência à criminalização da homofobia (PL 122/2006), discutida recentemente no STF (ADO 26 e MI 4733), com julgamento temporariamente suspenso. Temos a “Cura Gay” (PL 4.931/2016), a dificultação do procedimento abortivo em caso de violência sexual (PL 5.069/2013), a fixação da heteronormatividade na conceituação da família (PL 6.583/2013), a imunidade penal dos líderes religiosos (PL 6.314/2005) e a eliminação de diretrizes educacionais que orientem o respeito às diferenças sexuais, sob o boicote denominado “ideologia de gênero”. Inclusão recente, temos também a PEC 6/2019 da previdência, que ignora as múltiplas jornadas das mulheres, equivalendo aos homens o tempo para a aposentadoria.
Enquanto política de Estado, a caça às bruxas reserva às mulheres o espaço doméstico. Elas não foram mortas em nome do passado obscurantista e feudal, conforme nos fizeram acreditar, mas em nome do futuro, do novo arquivo “moderno”, “cientificista” e “iluminado”, “fabril”, “capitalista”, “masculino” e “potente”, berço também da acumulação primitiva e formato da família moderna, que se apropria e oculta o trabalho doméstico normalmente exercido pela mulher.
Fortemente, concordamos com a visão do ministro Barroso, de que o STF é uma “vanguarda iluminista” que “empurra a história”, rumo ao “progresso moral e civilizatório”. O STF tem feito justamente a caça às bruxas, que teve seu ápice no final da idade média e início do período moderno, com a eliminação das mulheres e dos corpos diferentes, empurrando a história jurídica do país no abismo, em nome da dita “moralidade” e “civilização” eurocentristas, violentas em tantos sentidos, provocando um verdadeiro epistemicídio. Se a história das mulheres é a dos pontuais silêncios, no campo do direito, torna-se interessante perguntar: como o direito – ou as organizações/instituições jurídicas, ou, ainda, os seus profissionais – constroem e reconstroem o sujeito mulher?
O direito “moderno” se encaixa nesse padrão, cabendo ao feminismo refutar sua a neutralidade epistemológica, pois, lembremos, falamos de um direito feito por homens e para homens. Assim, não nos estranha que, de acordo com o último senso do judiciário, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais, para falar como Belchior.
Pois, se pintássemos o quadro da magistratura brasileira, em 2018, teríamos um homem, heterossexual, branco, idade de 47 anos, casado, com filhos e católico. Esse é o quadro que dói mais…
Se as chamas da Inquisição ainda estão acesas, não queremos flores nesse mês de março! Sendo a mulher o sujeito histórico do patriarcado, queremos que a data se preste à rememoração política, para que não esqueçamos de que vivemos em um mundo patriarcal e machista – e que ainda precisa de um dia das mulheres!
Façamos o voo das bruxas, vamos rir juntas, curar nossos fundamentalismos, ressuscitar comunitarismos e reinventar nossas práticas políticas – e, claro, as jurídicas também!
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Vamos falar de machismo no Direito? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU