13 Setembro 2018
"As autoridades do Vaticano deveriam ter investigado as alegações sobre McCarrick rigorosamente, em nome do Papa Bento XVI, para ver se a lei canônica aplicável deveria ser usada para pressionar o cardeal a renunciar", escreve Paul Moses, escritor colaborador da Commonweal, em artigo publicado por La Croix International, 12-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Paul Moses é também autor de The Saint and the Sultan: The Crusades, Islam and Francis of Assisi's Mission of Peace (“O Santo e o Sultão: As Cruzadas, o Islã e a Missão de Paz de Francisco de Assis”, em tradução livre) e An Unlikely Union: The Love-Hate Story of New York's Irish and Italians (“Uma União Improvável: A História de Amor e Ódio dos Irlandeses e Italianos de Nova York”, em tradução livre).
O Papa Bento XVI não hesitava em exonerar bispos, como descobriu o bispo William Morris, da diocese de Toowoomba, na Austrália. "É a vontade de Deus que você renuncie", disse Morris citando o que Bento XVI teria lhe dito quando se encontraram em 2009.
Contrasta a maneira direta e vigorosa como o Papa Bento XVI dispensou Morris por discutir a ordenação de mulheres ao sacerdócio com a ambiguidade e o sigilo em torno do tratamento do Vaticano (durante o mesmo período) de alegações de que o então cardeal Theodore McCarrick abusava sexualmente de seminaristas.
Em entrevista ao LifeSiteNews, o boletim de imprensa do movimento de direita contra o Papa Francisco, o arcebispo Carlo Maria Viganò referiu-se à natureza benigna de Bento XVI como a razão pela qual o Papa recebeu McCarrick em Roma após supostamente sancioná-lo com uma ordem proibindo viagens e o ministério público.
"Você pode imaginar o Papa Bento XVI, um personagem tão leve quanto ele, dizendo: 'O que você está fazendo aqui?' Na frente dos outros bispos?", disse Viganò, segundo o jornal.
Mas o Papa Bento XVI era bastante vigoroso ao exonerar bispos quando queria ser. Certamente, a delicadeza é útil, porque o Código de Direito Canônico é cauteloso quanto à exoneração de um bispo.
O cânon 401 § 2 diz que “um bispo diocesano que se tornou menos capaz de cumprir seu ofício por causa de problemas de saúde ou alguma outra causa grave é seriamente requisitado a apresentar sua renúncia ao cargo”.
Mas Bento XVI e seu antecessor, São João Paulo II, invocaram esse cânon muitas vezes, como escreveu o jornalista Sandro Magister em 2012.
Se o caso do bispo Morris é alguma indicação, é mais do que uma “requisição” quando o Papa e seus principais assessores no Vaticano querem que um bispo renuncie. Veja esta carta do cardeal Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos do Vaticano, para Morris:
“Infelizmente, neste estágio, não há outra opção senão pedir a Vossa Excelência que ofereça sua renúncia antes do final de novembro de 2008, para que possa ser publicada no início de janeiro do próximo ano.
Como um ato de obediência filial ao Santo Padre, sua renúncia evitará o embaraço para si mesmo e potencialmente evitará mal-entendidos e divisão entre os padres, religiosos e fiéis da diocese de Toowoomba.
O núncio apostólico entrará em contato com Vossa Excelência a respeito de algumas opções para o seu futuro ministério.
Se Vossa Excelência, infelizmente, recusar-se a cumprir esta solicitação, a Santa Sé será obrigada a anunciar que você foi dispensado do seu cargo como bispo de Toowoomba e que recebeu a designação de uma Sé Titular.”
Morris relata o que aconteceu em seu bem documentado livro de 2014 Benedict, Me and the Cardinals Three (“Bento XVI, Eu e o Trio de Cardeais”, em tradução livre), que oferece um valioso olhar de como o processo do Vaticano de exoneração de um bispo funciona na prática.
Ele escreve que se desentendeu com o que ele chamou de “polícia do templo”, um pequeno grupo entre os sessenta e seis mil católicos de sua diocese que relataram a Roma suas atividades. O bispo Morris discordou das autoridades do Vaticano sobre o uso da absolvição geral no sacramento da reconciliação. Mas a maior preocupação era sua carta pastoral do advento de 2006, que dizia que “se Roma permitisse”, ordenaria mulheres e homens casados como padres.
Isso é um se muito grande - Morris diz que não tentou realmente fazer ordenações ilícitas sob a lei da igreja, ou mesmo defendê-las. Mas sob decretos anteriores, o assunto deveria estar fora de discussão.
Assim, três dicastérios vaticanos entraram em ação e, em dezembro de 2006, Morris foi convocado a Roma para um encontro com o cardeal Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos; cardeal William Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; e o cardeal Francis Arinze, prefeito da Congregação para o Culto Divino.
Morris respondeu que não podia visitá-los, então, em março de 2007, o Vaticano nomeou Charles Chaput, então arcebispo de Denver, para visitá-lo e investigar.
Morris nunca viu o relatório de Chaput, mas os cardeais evidentemente o viram e pressionaram ainda mais para que ele renunciasse. Morris viajou para Roma em janeiro de 2008 para se encontrar com o trio e mais uma vez se recusou a renunciar. Haveria muito mais "requisições".
Depois que ele se encontrou com o Papa Bento XVI em 4 de junho de 2009, Morris escreveu, o cardeal Re prosseguiu com uma carta dizendo que ele deveria renunciar porque prometera ao Papa que o faria. Morris disse que não fez tal promessa e mais uma vez disse ao cardeal que não poderia, em sã consciência, renunciar.
Então houve uma carta de 22 de dezembro de 2009 do Papa Bento XVI pedindo que ele renunciasse e, como Morris resumiu, "lembrando que não há apelo das decisões papais".
No fim das contas, o bispo Morris concordou em "se aposentar" precocemente, aos 67 anos, mas ainda não iria "renunciar". O anúncio do Vaticano em 2 de maio de 2011, no entanto, disse que o Papa Bento XVI o tinha "exonerado dos cuidados pastorais" de sua diocese; e isso foi notícia internacional.
Os bispos da Austrália reuniram-se com Bento XVI cinco meses depois e apoiaram-no com uma declaração conciliadora na qual identificaram a recusa de Morris à "requisição" do Papa de se demitir como o momento crítico.
“O que estava em jogo era a unidade da Igreja na fé e a comunhão eclesial entre o Papa e os outros bispos do Colégio Episcopal”, disseram eles.
Enquanto isso, um sigilo nebuloso cercou o que quer que tenha acontecido no Vaticano em relação às alegações de que McCarrick assediou e abusou sexualmente de seminaristas.
E, no entanto, em retrospecto, a situação de McCarrick provou ser muito mais devastadora para a missão da igreja do que quaisquer ideias progressistas que Morris tenha ousado levantar durante o papado do Papa Bento XVI.
Enquanto o caso contra o bispo Morris estava avançando de forma eficiente no final de 2006, as alegações contra o muito mais influente McCarrick ficaram à deriva, embora o Vaticano já tivesse acumulado uma boa quantidade de informações sobre ele.
O bispo emérito Paul Bootkoski, da diocese de Metuchen, disse que relatou as acusações a respeito de McCarrick ao embaixador papal nos Estados Unidos, o arcebispo Gabriel Montalvo Higuera, em dezembro de 2005.
Naquela época, de acordo com Bootkoski, um acordo legal já havia sido alcançado com um ex-seminarista que disse que era vítima da má conduta sexual de McCarrick, e outra alegação estava sendo investigada.
Essa informação - acusações diretas de má conduta sexual contra McCarrick e acordos legais subsequentes - sustentou preocupações anteriormente comunicadas ao Vaticano pelo reverendo Boniface Ramsey, professor de patrística de 1986 a 1996 no Immaculate Conception Seminary em South Orange, Nova Jersey.
Conforme relatado, o padre Ramsey notificou Montalvo sobre as discussões dos seminaristas a respeito dos supostos avanços sexuais de McCarrick. O núncio pediu-lhe que escrevesse uma carta sobre o assunto no dia 22 de novembro de 2000, um dia depois de ter sido anunciada a nomeação de McCarrick como arcebispo de Washington, D.C.
E, de acordo com uma carta de 11 de outubro de 2006 divulgada pela Catholic News Service em 7 de setembro, a Secretaria de Estado do Vaticano acabou confirmando o recebimento da carta de 2000.
O arcebispo Leonardo Sandri escreveu a Ramsey, então pastor da arquidiocese de Nova York, para perguntar não sobre McCarrick, mas sobre um padre que frequentava o seminário em meio aos "assuntos sérios" que Ramsey havia descrito.
Neste ponto, as autoridades do Vaticano deveriam ter investigado as alegações sobre McCarrick rigorosamente, em nome do Papa Bento XVI, para ver se a lei canônica aplicável deveria ser usada para pressionar o cardeal a renunciar.
Em vez disso, de acordo com a entrevista de Viganò para o LifeSiteNews, o Papa Bento XVI eventualmente sancionou McCarrick “de maneira privada”, talvez em 2009 ou 2010.
“Eu não sei quem foi responsável por este atraso incrível” é a explicação que Viganò oferece em seu “testemunho” de 25 de agosto, alegando um encobrimento das alegações contra McCarrick. "Eu certamente não acredito que tenha sido o Papa Bento XVI."
Talvez todos estivessem ocupados demais lidando com o bispo Morris.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Enfrentando o problema errado. A exoneração do bispo William Morris pelo Papa Bento XVI à luz do caso McCarrick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU