08 Setembro 2018
Quando a atitude em relação à profecia se conjuga com a inteligência “política”, até mesmo as palavras não expressadas exercem uma profunda ressonância na alma dos interlocutores. É precisamente esse o caso do Papa Francisco e do seu “não dito” por ocasião da publicação do dossiê de Dom Carlo Maria Viganò.
A reportagem é de Mario Corbo, publicada em Settimana News, 05-09-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ainda no avião, voltando da viagem para a Irlanda, poucas horas após a publicação do documento assinado por Viganò, o Papa Francisco, dirigindo-se aos jornalistas, afirmou textualmente: “Leiam vocês, atentamente, o comunicado e façam o seu julgamento. Eu não vou dizer uma palavra sobre isso. Acredito que o comunicado fala por si mesmo, e vocês têm a capacidade jornalística suficiente para tirar as conclusões. É um ato de confiança: quando tiver passado um pouco de tempo, e vocês tiverem tirado as conclusões, talvez eu falarei. Mas gostaria que a maturidade profissional de vocês fizesse esse trabalho: isso lhes fará bem, de verdade. Vai bem assim”.
Essas palavras, formuladas na hora, pareceram, para muitos observadores da primeira hora, frias e inadequadas, quando comparadas com a virulência das acusações dirigidas contra Francisco e com o consequente pedido de renúncia.
Ao contrário, elas são surpreendentes, pois revelam a sabedoria política de um homem de fé que conhece muito bem as dinâmicas em curso dentro da Igreja por ele governada. Quaisquer palavras ditas naquele momento teriam sido manipuladas e utilizadas contra ele. Só o silêncio total poderia, até certa medida, protegê-lo, naquele momento, de mais ataques provenientes do componente curial reacionário e conservador, que Francisco conhece bem tanto no que concerne à sua periculosidade, quanto à inépcia argumentativa dos seus principais expoentes.
A escolha do silêncio, portanto, diz muito mais do que qualquer discurso autodefensivo destinado a ser inevitavelmente instrumentalizado: a) no comunicado, não há nada de que Francisco deva se defender ou de que seja necessário se justificar com urgência; b) a leitura do documento revelará imediatamente os limites intelectuais e morais do seu autor e a inconsistência das suas declarações.
Esse é o motivo pelo qual Francisco convida a ler o texto e a formular, com autonomia, um julgamento sobre ele. Ele está convencido de que o comunicado de Viganò contém carências objetivas tão chamativas que podem ser percebidas até mesmo por leitores não adeptos aos trabalhos.
E é isso mesmo.
A leitura avança com dificuldade por causa da péssima qualidade da escrita, que lembra o estilo e a ênfase típicos das revistas de escândalos de segunda categoria, que propõem fofocas e ilações como se fossem verdades indiscutíveis. O discurso é caracterizado por uma total evanescência argumentativa que o torna, ao mesmo tempo, cansativo e risível.
O leitor, avançando na análise do documento, se dá conta imediatamente das razões que levaram o Papa Francisco a estimular a formulação de um julgamento autônomo por parte dos sujeitos interessados. De fato, o texto implode por conta própria, até mesmo em um olhar superficial. Qualquer réplica de Francisco teria dado dignidade e conferido uma espécie de reconhecimento a um entrelaçamento de confidências pruriginosas que, com um espírito delatório, o zeloso Dom Carlo Maria Viganò relata ter exposto ao longo dos anos pelo bem da Igreja e pela preservação da sua integridade moral.
Não vou entrar em detalhes (creiam-me, o documento absolutamente não merece ser examinado analiticamente) e – assumindo com humildade a exortação de Francisco – convido o eventual leitor desta minha contribuição a enfrentar pessoalmente a leitura do texto de Viganò.
Em geral, pode-se dizer que o atento e integérrimo monsenhor conta casos que dizem respeito aos costumes sexuais (neste caso, homossexuais) do arcebispo emérito de Washington, Theodore McCarrick, objeto de rumores recorrentes segundo os quais ele teria tido encontros frequentes com seminaristas (não se fala de menores): “Shared his bed with seminarians” [Compartilhou sua cama com seminaristas].
Viganò diz que ficou sabendo desses casos durante os encargos que lhe foram confiados por João Paulo II, como delegado para as Representações pontifícias (de 1998 a 2009) e pelo Papa Bento XVI, como núncio apostólico nos Estados Unidos da América (de 19 de outubro de 2011 até o fim de maio de 2016).
Portanto, o documento se refere a episódios, em grande parte, ocorridos em um período anterior ao do Papa Francisco, ou seja, durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, durante os quais Viganò desempenhava cargos de responsabilidade nos Estados Unidos.
O monsenhor fala de informativos enviados à Santa Sé relativos aos comportamentos “imorais” de McCarrick, muitas vezes desatendidos (Bento XVI, segundo Viganò, teria imposto sanções restritivas contra McCarrick, na realidade nunca cumpridas pelo arcebispo de Washington. Não existe nenhuma documentação nem rastro objetivo dessas sanções).
Além disso, Viganò narra um encontro com o Papa Francisco – que teria ocorrido em junho de 2013 – durante o qual ele teria denunciado ao atual pontífice os comportamentos do prelado estadunidense, em uma modalidade totalmente privada, sem qualquer evidência objetiva.
O monsenhor acusa Francisco de não ter tomado medidas imediatas contra McCarrick após as suas revelações, esquecendo-se de que, quando as acusações na forma de fofocas assumiram uma consistência formalmente processável, o Papa Bergoglio interveio com uma determinação e uma dureza que não têm iguais na história da Igreja, fazendo com que as declarações de princípio fossem seguidas pelos fatos, não de modo sumário e vingativo, como Viganò queria, mas de acordo com aquelas modalidades garantistas que sempre devem ser adotadas, também em procedimentos ativados contra os piores criminosos.
De fato, no dia 28 de julho passado, com um procedimento que nunca foi implementado anteriormente por nenhum pontífice, o Papa Francisco privou do status cardinalício justamente o prelado McCarrick, quase com 90 anos, assim que os atos do processo canônico, movido contra ele, chegaram a cumprimento.
Esse é o único fato incontroverso. O resto são apenas ilações e maledicências.
Paro por aqui. Tudo isso não me apaixona.
Muitas questões permanecem em aberto, especialmente no que diz respeito às dinâmicas da disputa que dilacera a partir de dentro a instituição eclesiástica e aos seus possíveis desdobramentos, mas um dado emerge com clareza a partir desse caso: a força de um homem de fé firmemente plantado no mundo, do qual se conhece não só a beleza, mas também a feiura, conseguindo governar com sabedoria o navio que tem sob seu comando, sem perder a melhor rota, mesmo no momento da tempestade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco: palavras e silêncios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU