08 Junho 2018
O livro Dos. La máquina de la teología política y el lugar del pensamento, do filósofo italiano Roberto Esposito, foi o tema da apresentação feita pelo professor José Roque Junges no ciclo de estudos A contemporaneidade em debate – Intérpretes e obras, na noite de 5 de junho no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua fala, ele tomou por base a tradução feita na argentina pela Amorrortu Editores (2015).
“É um desafio apresentar o pensamento de Esposito, em especial esse livro”, reconheceu Junges. Antes de tratar especificamente da obra que motivou o evento, Junges detalhou o que chamou de linhas mestras do pensamento de Roberto Esposito. A primeira, paradigma imunitário, relaciona-se ao campo do direito e trata do dispositivo biopolítico em relação com a lógica comum (encargos do comum). “O direito desempenha o papel imunológico na sociedade, e na sociedade moderna, essa imunidade se volta a agentes internos também, não apenas a externos”, disse. “O direito moderno é contratual, não comunitário, portanto, defende os direitos de cada um. É o modo pelo qual cada um se imuniza. Por isso se torna a própria ameaça da sociedade, pois defende os indivíduos.” Conforme Junges, “os anticorpos modernos são os direitos humanos”. A segunda fase de Esposito, máquina teológico-política, se insere no campo da filosofia: dispositivo da pessoa em relação à lógica do impessoal. É nesta fase que se situa a obra de Esposito comentada no evento.
Ao detalhar o livro, Junges apresentou as causas da resistência e impermeabilidade da teologia política à análise crítica. Por primeiro, a diversidade de contextos e significados aos termos teologia e política. Depois, a inerência ao fenômeno que se quer interpretar impede o distanciamento. “É necessário olhar o fenômeno desde fora com outros esquemas mentais e modelos linguísticos livres de sua sintaxe na qual estamos metidos”, explicou. “Conceitos como desencantamento, secularização, profanação têm origem teológico-político, pressupondo o que deveriam explicar.” Heidegger foi quem primeiro compreendeu essa dificuldade, ao tomar distância do conceito de secularização, tido por ele como desorientador. “A impenetrabilidade está ligada à maquinação, segundo Heidegger, conceito semelhante a dispositivo em Foucault.” Conforme Junges, o significado compreende uma assimilação que exclui: separando o que declara unir e unificando o que divide, mediante a submissão de uma parte ao domínio da outra (teologia X política).
Junges estabeleceu um itinerário histórico da tese da presença do dois em um: “a prepotência de uma parte que pretende ser o todo, eliminando a outra”. Para Hegel, o destino do Cristianismo é incluir no seu interior o que historicamente ajudou a superar. “Ele conecta o cristianismo reformado e o advento do império germânico numa perspectiva política”, explica. Carl Schmitt retoma a questão de Hegel, mas, diferentemente deste, “a assimilação exclusiva acontece não só para fora, mas dentro do corpo político, pois a possibilidade da democracia está condicionada à individualização de um inimigo a ser expelido, reduzindo o dois a um”.
Ao citar Ernst Kantorowicz e seu livro Os dois corpos do rei, Junges afirma que “a redução do dois a um está interiorizada no corpo do próprio soberano: uma parte privada e mortal e outra pública e imortal, por analogia às duas naturezas de Cristo que tomam o lugar da figura teológica da Trindade”. Em outras palavras, “politicamente o três (Pai, Filho, Espírito Santo) reduzido a dois (Pai e Filho), por sua vez reduzido a um (Deus)”.
Erick Peterson “ataca a teologia política de Schmitt a partir de uma perspectiva trinitária para impedir a analogia entre o monoteísmo religioso e o monoteísmo político, assim evitando o desdobramento na economia salvífica entre o Pai que reina e o Filho que governa em seu lugar”. Jacob Taubes coloca-se na tensão entre Schmitt e Peterson, “invertendo as relações de precedência entre o teológico e o político em favor do primeiro, falando de uma teologia negativa, isto é, subtraída de toda forma de poder terreno, assegurando à teologia um papel de potência contraposta, mas simétrica ao político”. Para Taubes, o conceito teológico de “povo judeu” é o não povo, contraposto a todas as características de povo. Jan Assmann afirma que “tanto no caso cristão como no judeu, não se sai do léxico teológico-político”, porque “não se trata de ver na relação entre teologia e política mais poder num ou noutro, mas a inevitabilidade de sua implicação politizando a teologia e teologizando a política, numa espécie de retomada do conceito de maquinação de Heidegger”. Para Junges, “o que une os dois é a captura exclusiva de um em relação ao outro”.
Após formular este panorama, Junges afirmou que “não é por acaso que os intérpretes da teologia política tenham feito uso da categoria de pessoa, como sujeito, sentido etc.”. Para Hegel, a noção de pessoa é o foco da função soberana. Weber suscita a personalidade carismática para fazer frente à entropia política. E Schmitt engloba os dois sentidos anteriores no conceito político central da decisão pessoal. Para Schmitt, a categoria pessoa produz ordem que inclui a possibilidade de conflito, portanto, exclusão. Possibilita subjetividade política que diferencia no corpo político o amigo e o inimigo.
“A origem dessa categoria está na visão teológica cristã e na visão jurídica romana, ambas vinculam unidade e separação num nexo produtivo com determinados efeitos”, afirma Junges. Na visão cristã, “o laboratório teológico da categoria de pessoa são a Trindade e a Encarnação para articular identidade e pluralidade na divindade”. Na visão romana, “o laboratório jurídico da categoria de pessoa serve para criar um operador de despersonalização que reduz certo tipo de seres humanos ao regime da coisa, permitindo separar pessoa de coisa”.
Junges afirma que, na modernidade, “a categoria de pessoa migra do léxico objetivista para um paradigma subjetivista, quando o conceito de sujeito passa do plano jurídico para o filosófico”. Essa compreensão “articula uma conexão antinômica entre política, direito e teologia que marca até hoje sua trajetória”. Originada na conjunção entre teologia cristã e direito romano, o dispositivo da pessoa está incrustado na máquina teológico-política.
Hegel, reportando-se ao direito romano, “conecta Hobbes, para trás, e Schmitt, para frente, com a categoria de soberania que define pessoa. Pessoa identifica-se com sujeito, dando origem ao nexo entre subjetividade e sujeição que, segundo Foucault, se exigem mutuamente. Adquire importância a decisão soberana encarnada na pessoa do monarca”.
Junges salienta que se para Hegel a categoria de pessoa está ligada aos dogmas da Trindade e Encarnação pelo conceito de soberania, “para Locke, ela está ligada ao juízo universal com o conceito de responsabilização”. Locke produz uma dessubstancialização da categoria de pessoa, “quando ela deixa de ser substrato para tornar-se uma identidade individual necessária para reconhecer a responsabilidade e atribuição das ações e a consequente imputação pela qual a pessoa é identificada em termos jurídicos que se desdobra entre um eu que julga e um eu que é julgado”.
Kant separa o sujeito em duas ordens distintas e opostas: “a sensível, identificada com as causas eficientes (meios), e a inteligível, responsável pelos fins, subordinando a primeira à segunda, potencializando o efeito binário do dispositivo”. John Stuart Mill estabeleceu uma concepção utilitarista “que chega hoje a Singer e Engelhardt, separando verdadeiras pessoas e simples expoentes do gênero humano, estando estas à disposição das primeiras através dos custos econômicos de sua sustentação”. O nível de personalização sempre está ligado ao inverso: a necessária despersonalização. “O limite para separar um de outro é a presença do pensamento na qualificação de pessoa, identificado com a soberania pessoal. Aqui pensamento está plenamente identificado com sujeito individual.”
Ao tratar do itinerário do impessoal e o papel do pensamento, Junges afirma que “a redução do pensamento ao espaço individual do sujeito é o epicentro do dispositivo teológico-político da pessoa”. O deslocamento do pensamento na filosofia do impessoal é o caminho de desconstrução da máquina teológico-política. “Por isso se entende o confronto e a perseguição na história do ocidente àqueles (Averroes, Giordano Bruno e Baruch Spinoza) que defenderam a impessoalidade do pensamento, seguidos de outros autores mais atuais, como Schelling, Nietzsche, Bergson, Deleuze”, explica. “Todos defendem uma exteriorização do pensamento em relação à interioridade da consciência ou ao sujeito individual. A despersonalização do pensamento sabota o dispositivo da pessoa, descarrilhando a máquina teológico-político.”
Averroes “parte da concepção aristotélica, obscurecida por séculos pela filosofia personalista, radicalizando a unidade e impessoalidade do pensamento”. Isso, no entanto, “não significa que o ser humano não pense, mas que a relação entre indivíduo e pensamento não é essencial e permanente, mas potencial e contingente”. Junges distingue que “o ser humano não é sujeito do pensamento, mas ocasião para o pensamento, o que leva a perguntar o que é o ser humano, quando não pensa, e o que ocorre com um pensamento ainda não pensado”.
“O pensamento não pertence a ninguém, porque é de todos e todos podem pensar, impedindo a superioridade em relação àqueles que não pensam. O intelecto possível é uma simples potencialidade, uma pura receptividade, desprovida de qualquer prerrogativa que não seja a de fazer visível os objetos iluminados pelo intelecto agente que é o meio para pôr em contato a inteligência divina e a potência imaginativa do ser humano. Pensamento é uma competência que todos têm e ninguém pode apropriar-se dela com exclusividade”, afirmou Junges. “Assim a inteligência é uma potência coletiva que não é a propriedade de alguns em detrimento de outros, mas um recurso de todos.”
Bruno e Spinoza criticam o dispositivo da pessoa como eixo sobre o qual gira a máquina teológico-política. Bruno questiona os dogmas de Trindade e da Encarnação, enquanto Spinoza o conceito de Deus pessoa e a recusa do dualismo entre a substância corpórea e a substância espiritual. Também vincula a consciência individual com o substrato corporal com o qual está inseparavelmente integrada e, através dele, com o conjunto do gênero humano e das outras espécies viventes. “Spinoza parte da identificação de um Deus privado de atributos pessoais de soberano com a ordem racional das coisas.”
Junges cita autores modernos que partem de Spinoza com distintos propósitos: Schelling, Nietzsche, Bergson e Deleuze. Schelling “afirma na subjetividade uma indistinção entre a personalização e a despersonalização, movimento destituinte que ataca o pensamento dividido entre um saber objetivante destinado ao fracasso e uma sabedoria que não encontra lugar, nem em Deus nem no ser humano, por ser irredutível a uma forma pessoal”. Schelling coloca o pensamento contra si mesmo, caminho seguido por Nietzsche, que “separa o pensamento em dois estratos diferentes e contrastantes: um de caráter individual, bloqueado numa lógica imunitária; outro livre de limites predefinidos, capaz de conectar com as fontes profundas da vida”. Conforme Junges, “Nietzsche é o primeiro que consegue penetrar nas engrenagens da maquinação teológico-política”.
Bergson e Deleuze adotam o paradigma genealógico, tomando distância do dispositivo teológico-político e passando à crítica da categoria de sujeito e consequentemente a de objeto. “Em Bergson, a ruptura clara com o léxico subjetivista aparece na análise da percepção, separada da consciência e do corpo subjetivo, radicada no substrato impessoal da realidade”. Junges salienta que “a exteriorização da percepção é uma crítica do dispositivo deformante das categorias de tempo e espaço como se elas fossem aplicadas à realidade, e a consciência não é a origem da realidade, mas o seu resultado”. Em resumo, não existem dois substratos da realidade em que um domina o outro para unificar, mas uma multiplicidade de diferenças.
Deleuze acentua o plano da imanência, entendido como algo não contrário a transcendência. “Se a imanência se opusesse à transcendência, a primeira seria absorvida pelo vazio da segunda”, afirma. “Todos os conceitos criados por Deleuze incluem, por diferença, o seu aparente contrário, levando a mudar a própria dinâmica de exclusão da máquina teológico-política.”
Para Junges, essa permanente inclusão do contrário significa apontar a estrutura oikonomica da configuração capitalista, interrompendo o seu efeito de ocultação, e na outra máquina mais abarcadora da unicidade do ser revela a potência desruptiva da vida. “Não é que desapareçam os conflitos, mas Deleuze capta que a máquina não pode ser atacada desde fora, porque, no plano da imanência, não existe um fora.”
O que é necessário, diz Deleuze com um termo teológico, é uma conversão do dispositivo no seu contrário. “Este é o objetivo do pensamento impessoal: não se opor frontalmente à tradição da pessoa e do sujeito, mas fazê-lo rodar sobre seu eixo até desativar sua potência de exclusão.” Esta dinâmica de transformar o dispositivo teológico-político em seu contrário aparece na noção da dívida. “No momento que todos estão endividados, desaparece a categoria de crédito. A violência da dívida se transforma na solidariedade de um múnus compartido, como resultado de um conflito contra a ordem teológico-política que unifica o mundo na forma de sua divisão.” A dívida, para que possa ser extinta, “não deve ser paga, mas levada de uma dimensão econômica a um estatuto ontológico que compreende aquilo que cada um deve desde sempre a todos”. Assim, “somente assumindo a dívida comum é possível a remissão”.
Junges afirma que “a figura bíblica da libertação de todas as dívidas, não confinada ao ano sabático, pode converter-se, no espelho filosófico e político, naquilo que a teologia política pode entrever como a possibilidade inaudita de sua dissolução”.
José Roque Junges é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, especialista em História do Brasil Contemporâneo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, mestre em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutor em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. É professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. Livros publicados: Bioética: Perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação: Resposta cristã à crise ambiental (São Paulo: Loyola 2001); Evento Cristo e Ação Humana: Temas fundamentais de ética teológica (São Leopoldo: Unisinos, 2001); Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004); Bioética: Hermenêutica e Casuística (São Paulo: Loyola, 2006); (Bio) Ética Ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2010); Bioética Sanitarista: desafios éticos da Saúde Coletiva (São Paulo: Loyola, 2014).
Assista à palestra na íntegra:
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