08 Mai 2018
A visão do Manifesto Comunista sobre desigualdade brutal e alienação nunca foi tão atual. Mas que dizer de suas concepções sobre o Estado e o horizonte pós-capitalista?
A pergunta é de Yánis Varoufákis, economista, blogger e político grego membro do partido Syriza, ex-ministro das Finanças do Governo Tsipras, em trecho adaptado do livro Yanis Varoufakis’s introduction to The Communist Manifesto, publicado por Vintage Classics e reproduzido por Outras Palavras, 06-05-2018. A tradução é de Antonio Martins.
Para que um manifesto vingue, ele precisa falar para nosso coração como poesia, ao mesmo tempo em que contamina a mente com imagens e ideias que são espantosamente novas. Ele precisa abrir nossos olhos para as verdadeiras causas das mudanças desconcertantes, perturbadoras e excitantes que ocorrem a nosso redor e expor as possibilidades das quais a situação atual está grávida. Ele deve fazer com que nos sintamos desesperançosamente inadequados, por não termos reconhecido nós mesmos estas verdades, e precisa mostrar que agíamos como cúmplices ingênuos, ao reproduzir um passado condenado. Por fim, ele precisa ter o poder de uma sinfonia de Beethoven, convocando-nos a ser agentes de um futuro que encerra o sofrimento desnecessário das maiorias e inspira a humanidade a realizar seu potencial de liberdade autêntica.
Nenhum manifesto fez isso melhor que aquele publicado em fevereiro de 1848, na Liverpool Street, em Londres. Encomendado por revolucionários ingleses, o Manifesto Comunista (ou Manifesto do Partido Comunista, seu título original) foi escrito por dois jovens alemães – Karl Marx, um filósofo de 29 anos interessado no hedonismo de Epicuro e na racionalidade de Hegel, e Friedrich Engels, de 28, herdeiro de uma fábrica em Manchester.
Como trabalho de literatura política, o Manifesto permanece atual. Seus trechos mais famosos, incluindo a abertura (“Um espectro assombra a Europa – o espectro do comunismo”) têm qualidade shakespeareana. Como Hamlet, diante do fantasma de seu pai assassinado, o leitor é compelido a refletir: “Será mais nobre sofrer na alma as pedradas e flechadas do destino feroz? Ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim?” Na leitura imediata de Marx e Engels, não se tratava de um dilema acadêmico, a debater nos salões da Europa. Seu Manifesto foi um chamado à ação. Invocar o espectro do comunismo frequentemente levou a perseguições ou, em alguns casos, a longos anos de cárcere. Hoje, um dilema similar confronta os jovens: conformar-se com uma ordem estabelecida que se desagrega e é incapaz de se reproduzir; ou opor-se a ela, com custos pessoais consideráveis, em busca de novas formas de trabalho, desfrute e vida?
A ambição de todo Manifesto é ver além do horizonte. Mas fazê-lo como Marx e Engels – que descreveram com precisão uma era que chegaria apenas um século e meio depois, além de analisarem as contradições e escolhas com que nos defrontamos hoje – é verdadeiramente espantoso. No final dos anos 1840, o capitalismo era tropicante, local, fragmentado e tímido. Mas Marx e Engels enxergaram muito longe e previram um sistema globalizado, finaceirizado, inflexível, todo poderoso. Este é o monstro que se tornou real depois de 1991, no exato instante em que o establishment proclamava a morte do marxismo e o fim da História.
Os erros de previsão do Manifesto Comunista foram sempre exagerados. Lembro que, no início dos anos 1970, mesmo os economistas de esquerda criticavam um prognóstico central do Manifesto: o de que o capital iria “abrigar-se em toda parte, estabelecer-se em toda parte, lançar conexões em toda parte”. Referindo-se à triste realidade do que eram os então chamados países do “terceiro mundo”, argumentavam que o capital perdera seu impulso bem antes de expandir-se além de sua “metrópole” na Europa, Estados Unidos e Japão.
Empiricamente, estavam corretos. As corporações transnacionais europeias, norte-americanas e japonesas que operavam nas “periferias” da África, Ásia e América Latina limitavam-se ao papel de extratoras de recursos naturais e pareciam incapazes de difundir o capitalismo nestas regiões. Supunham que, em vez de incutir nestes países o desenvolvimento capitalista (conduzindo “todas as nações, inclusive as mais bárbaras, à civilização”), o capital externo reproduzia o subdesenvolvimento no “terceiro mundo”. Era como se o Manifesto tivesse apostado demais na habilidade do capital de espalhar-se para todos os cantos e frestas. A maior parte dos economistas, inclusive os simpáticos a Marx, duvidavam da previsão do Manifesto segundo a qual “a exploração do mercado mundial” daria “um caráter cosmopolita à produção e consumo de cada país”.
Como vimos mais tarde, o Manifesto estava correto, ainda que tardiamente. Foi necessário o colapso da União Soviética e a inserção de dois bilhões de trabalhadores chineses e indianos no mercado capitalista para que a previsão se cumprisse. Para que o capital se globalizasse plenamente, os regimes que juravam fidelidade ao Manifesto precisaram ser feitos em pedaços. Alguma vez a História produziu uma ironia mais deliciosa?
Qualquer leitor atual do Manifesto se surpreenderá ao descobrir uma imagem tão atual de um mundo que se avança, assombrado e temeroso, à beira da inovação tecnológica. Na época do Manifesto, era a máquina a vapor que lançava o maior desafio aos ritmos e rotinas da vida feudal. Os camponeses eram varridos para as engrenagens das máquinas e uma nova classe de senhores, os donos das fábricas e comerciantes, usurpava da nobreza o controle sobre a sociedade. Agora, são a inteligência artificial e a automação que aparecem como ameaças disruptivas, prometendo varrer “todas as relações fixas e congeladas”. “A revolução incessante… dos instrumentos de produção”, o Manifesto proclama, transforma “o conjunto das relações da sociedade”, promovendo “constante revolução da produção, distúrbio ininterrupto de todas as condições sociais, incerteza e agitação permanentes”.
Para Marx e Engels, porém, esta ruptura deve ser celebrada. Ela age como catalisador para o empurrão final de que a humanidade precisa para livrar-se dos preconceitos que escoram a grande barreira entre os que possuem as máquinas e os que as concebem, operam e trabalham. “Tudo o que é sólido desmancha no ar, e tudo o que é sagrado é profanado”, eles escrevem no Manifesto sobre os efeitos da tecnologia, “e o ser humano é por fim compelido a encarar, sem ilusões, as reais condições da vida e suas relações com seus semelhantes”. Ao dissolver impiedosamente nossos preconceitos e falsas certezas, a mudança tecnológica nos força, aos chutes e berros, a enxergar como são patéticas nossas relações sociais.
Hoje, constatamos tudo isso em milhões de palavras, impressas ou online, no debate sobre o desencanto com a globalização. Embora celebrem o fato de bilhões terem passado da pobreza abjeta à relativa pobreza, os jornais veneráveis do Ocidente, as personalidades de Hollywood, os empreendedores do Vale do Silício, os bispos e mesmo financistas multibilionários lamentam algumas das consequências menos desejáveis: desigualdade insuportável, ganância sem máscaras, mudança climática, e o sequestro da democracia pelos banqueiros e ultra-ricos.
Nada disso deveria surpreender um leitor do Manifesto. “Toda a sociedade”, argumenta o texto, “está se dividindo cada vez mais em dois campos hostis, em duas grandes classes que se confrontam diretamente”. À medida em que a produção é mecanizada e a margem de lucro dos proprietários de máquinas torna-se o motor central de nossa civilização, a sociedade divide-se entre proprietários que não trabalham e trabalhadores despossuídos. A classe média é o dinossauro na sala, à beira da extinção.
Ao mesmo tempo, os ultra-ricos tornam-se culpados e intranquilos, à medida em que veem as vidas de todos os demais afundar na precariedade ou numa escravidão assalariada insegura. Marx e Engels previram que esta minoria extremamente poderosa iria, ao final, mostrar-se “incapaz de governar” sociedades tão polarizadas, por não estar em posição de garantir aos escravos assalariados um existência digna. Entrincheirada em suas comunidades muradas, consumida pela ansiedade e incapaz de desfrutar suas riquezas. Muitos de seus integrantes, suficientemente inteligentes para compreender seu próprio interesse de longo prazo, reconhecem o Estado de bem-estar social como a melhor política possível para a própria segurança. Mas, explica o Manifesto, a natureza de sua classe social os levará a não fazer o seguro, e eles agirão incansavelmente para evitar o pagamento dos impostos necessários.
Não é o que aconteceu? Os ultra-ricos são uma minoria insegura, permanentemente aborrecida, entrando e saindo o tempo todo de clínicas detox, buscando consolo em gurus psicológicos ou empresariais. Enquanto isso, toda a sociedade luta para colocar comida na mesa, pagar pela Educação, migrar de um cartão de crédito para outro e lutar contra a depressão. Agimos como se nossas vidas fossem descontraídas e garantimos gostar do que fazemos. Na realidade, choramos ao dormir.
Os políticos do establishment, os economistas acadêmicos e os filantropos – todos respondem a esta situação da mesma maneira, lançando condenações ferozes contra os sintomas (a desigualdade de renda), enquanto ignoram as causas (a exploração que advém dos direitos desiguais de propriedade sobre as máquinas, a terra e os recursos). Alguém duvida que estejamos num impasse, chafurdando num desespero que alimenta os populistas interessados em explorar os piores instintos das massas?
Com o rápido uso da tecnologia avançada, estamos nos aproximando do momento em que teremos de decidir como nos relacionar uns com os outros de maneira racional e civilizada. Não podemos continuar a nos esconder por trás da suposta “inevitabilidade do trabalho” e das normas sociais opressivas que ela impõe. O Manifesto dá ao leitor do século 21 a oportunidade de olhar através do caos e reconhecer o que precisa ser feito para que a maioria possa passar da revolta a novos arranjos sociais, em que “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. Ainda que não contenha nenhum manual sobre como chegar lá, o Manifesto continua a ser uma fonte incontornável de esperança.
Se o Manifesto conserva o mesmo poder de mobilizar, entusiasmar e envergonhar que tinha em 1848, é porque a luta entre as classes sociais é tão velha quanto o tempo. Marx e Engels resumiram isso em 16 palavras audaciosas: “A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de classes”. Das aristocracias feudais aos impérios industrializados, o motor da história sempre foi o conflito entre as tecnologias, que revolucionam, e as convenções de classe anteriores. A cada revolução da tecnologia social, o conflito entre nós muda de forma. As velhas classes morrem e ao final apenas duas permanecem: a que possui tudo e a que não possui nada; a burguesia e o proletariado.
É neste dilema que nos encontramos hoje. Embora devamos ao capitalismo o fato de ter reduzido todas as distinções de classe ao abismo entre os proprietários e os não-proprietários, Marx e Engels querem que percebamos: o sistema não é capaz de sobreviver às tecnologias que engendra. É nosso dever de romper com a velha noção dos meios de produção privados e forçar uma metamorfose, que deve levar à propriedade social das máquinas, da terra e dos recursos. Agora, que novas tecnologias espalharam-se também entre sociedades limitadas pelas relações de trabalho primitivas, a miséria generalizada instalou-se. Nas palavras inesquecíveis do Manifesto, “uma sociedade que conjurou meios tão gigantescos de produção e troca é como o feiticeiro que já não é capaz de controlar os poderes do mundo infernal que convocou com suas palavras”.
O feiticeiro sempre imaginará que seus aplicativos, motores de busca, robôs e sementes geneticamente modificadas trarão riqueza e felicidade a todos. Mas, uma vez lançadas em sociedades divididas entre proprietários e trabalhadores despossuídos, estas maravilhas tecnológicas comprimirão os salários e os preços a níveis que geram lucros reduzidos para a maior parte dos negócios. Apenas os setores de alta tecnologia, a indústria farmacêutica e as poucas corporações que exercem poder excepcionalmente grande sobre nós realmente se beneficiam. Se continuarmos a assinar os contratos de trabalho entre empregadores e empregados, os direitos de propriedade privada governarão a sociedade e dirigirão o capital para limites desumanos. Só abolindo a propriedade privada dos instrumentos de produção maciça, e substituindo-a por um novo tipo de propriedade comum, que atue em sintonia com as novas tecnologias, será possível enfrentar a desigualdade e buscar a felicidade coletiva.
Segundo a teoria de história de Marx e Engels, resumida em 16 palavras, o atual impasse entre trabalhadores e proprietários sempre esteve assegurado. “Igualmente inviável”, o Manifesto sentencia, é “a queda de burguesia e a vitória do proletariado”. Até agora, a História não cumpriu tal previsão, mas os críticos esquecem-se de que o Manifesto, como qualquer outra peça importante de propaganda, apresenta a esperança na forma de certeza. Assim como Lord Nelson dirigiu-se a seus soldados, antes da batalha de Trafalgar, dizendo-lhes que a Inglaterra “esperava” que cumprissem seu dever (tendo muitas dúvidas de que o fariam), o Manifesto coloca sobre o proletariado a expectativa de que cumprirá seu dever, inspirando-o a unir-se e libertar-se da escravidão assalariada.
Ele o fará? Nas condições atuais, parece improvável. Mas, de novo, foi preciso esperar que a globalização surgisse, nos anos 1990, para que a avaliação do Manifesto sobre o poder do capital pudesse ser plenamente realizada. Será que o novo, e cada vez mais precário, proletariado global precisará de mais tempo para jogar o papel histórico que o Manifesto antecipou? Enquanto o julgamento não se completa, Marx e Engels nos dizem que se temermos a retórica da revolução, ou tentarmos nos distrair de nosso dever uns com os outros, seremos colhidos por uma espiral vertiginosa, em que o capital impregnará e dissolverá o espírito humano. A única certeza, segundo o Manifesto, é que viveremos um futuro distópico, a não ser que o capital seja socializado.
A respeito da distopia, o leitor cético provocará: e a própria cumplicidade do Manifesto ao legitimar regimes autoritários e temperar o espírito dos guardas de Gulags? Em vez de responder de forma defensiva, lembrando que ninguém culpa Adam Smith pelas loucuras de Wall Street, ou o Novo Testamento pela Inquisição, podemos especular como os autores do Manifesto poderiam ter respondido a esta acusação. Acredito que, com o benefício da retrospetiva, Marx e Engels confessariam um importante erro de sua análise: reflexividade insuficiente. Significa que eles foram incapazes de refletir suficientemente, e mantiveram um silêncio judicioso, sobre o impacto que sua própria análise teria sobre o mundo que estavam analisando.
O Manifesto lançou uma narrativa potente em linguagem incisiva, construída para tirar os leitores da apatia. O que Marx e Engels foram incapazes de prever é que textos poderosos e prescritivos tendem a reunir discípulos, fiéis – mesmo igrejas – e que estes seguidores poderiam usar o poder outorgado a eles pelo Manifesto em seu próprio favor. Ao fazê-lo, eles poderiam oprimir outros camaradas, construir sua própria base de poder, ganhar posições ou influência, tomar o controle do Politburo e aprisionar quem quer que resistisse.
De modo similar, Marx e Engels não souberam avaliar o impacto de seu texto sobre o próprio capitalismo. Assim como o Manifesto ajudou a construir a União Soviética, seus satélites na Europa oriental, Cuba de Fidel, a Iugoslávia de Tito e diversos governos social-democratas no Ocidente, estes desenvolvimentos não provocariam uma reação em cadeia capaz de frustrar as previsões e análises do Manifesto? Depois da Revolução Russa e da II Guerra Mundial, o medo do comunismo forçou os regimes capitalistas a adotar sistemas de aposentadoria, de saúde pública e até a ideia de obrigar os ricos a pagarem para que os estudantes pobres e pequeno burgueses frequentassem universidades liberais. Ao mesmo tempo, a hostilidade à União Soviética desertou a paranoia e criou um clima de medo que se mostrou particularmente fértil em figuras como Joseph Stalin e Pol Pot.
Acredito que Marx e Engels teriam lastimado não antecipar o impacto do Manifesto nos partidos comunistas que o texto antecipou. Estariam culpando s si mesmos por negligenciarem o tipo de dialética que tanto gostavam de analisar: como os Estados dirigidos por trabalhadores iriam se tornar cada vez mais totalitários em resposta à agressão capitalista e como, em sua resposta ao medo do comunismo, estes Estados capitalistas iriam tornar-se crescentemente civilizados.
Abençoados, é claro, são os autores cujos erros resultam do poder de suas palavras. Ainda mais abençoados são aqueles cujos erros são autocorrigíveis. Hoje, os Estados de trabalhadores inspirados pelo Manifesto quase já se foram, e os partidos comunistas desagregaram-se ou se perderam. Livre da competição com os regimes inspirados pelo Manifesto, o capitalismo globalizado age como se estivesse determinado a criar um mundo… que só pode ser explicado pelo Manifesto.
O que torna o Manifesto realmente inspirador hoje são suas recomendações no aqui e agora, num mundo em que nossas vidas são constantemente conformadas pelo que Marx descreveu, em uma obra anterior – os Manuscritos Econômicos e Filosóficos – como “uma energia universal que rompe cada limite e cada vínculo para estabelecer-se como a única política, a única universalidade, o único limite e o único vínculo”. Dos motoristas do Uber aos ministros de Finanças, aos executivos bancários e aos tristemente pobres, todos podemos nos desculpar quando nos sentimos esmagados por sua “energia”. O alcance do capitalismo é tão pervasivo que pode às vezes parecer impossível imaginar um mundo sem ele. Apenas um pequeno passo separa os sentimentos de impotência de sucumbir à ideia de que não há alternativa. Mas, espantosamente (afirma o Manifesto) é precisamente quando estamos prostrados diante de tal ideia que as alternativas abundam.
O que menos precisamos no atual cenário são sermões sobre a injustiça do sistema, denúncias de desigualdade crescente ou vigílias para nossa soberania democrática que se esvai. Também não deveríamos suportar atos desesperados de escapismo regressivo: exigir o retorno de algum Estado pré-moderno ou pré-tecnológico onde poderemos nos agarrar ao seio do nacionalismo. O que o Manifesto oferece em momentos de dúvida e submissão é uma explicação clara e objetiva sobre o capitalismo e seus males, vistos através da luz fria e dura da racionalidade.
O Manifesto argumenta que o problema do capitalismo não é produzir muita tecnologia, ou ser injusto. O problema do capitalismo é ser irracional. O sucesso do capital ao ampliar seu alcance por meio da acumulação pela acumulação é obrigar os trabalhadores a trabalhar como máquinas por ninharias, enquanto os robôs são programados para produzir o que os trabalhadores já não podem comprar e o que eles próprios, robôs, não precisam. O capital é incapaz de fazer uso racional das máquinas brilhantes que engendra, condenando gerações inteiras à privação, a um meio-ambiente decrépito, ao desemprego e a lazer real zero – tudo em busca de ocupação e sobrevivência. Até os capitalistas reduzem-se a autômatos conduzidos pela angústia. Vivem sob o medo permanente de que, a não ser que mercantilizem os demais humanos, deixarão de ser capitalistas – engrossando as fileiras desoladas do precariado-proletariado em expansão.
Se o capitalismo parece injusto é porque escraviza a todos, ricos e pobres, desperdiçando recursos humanos e naturais. A mesma “linha de produção” que produz riquezas incalculáveis também gera infelicidade profunda e insatisfação em escala industrial. Por isso, nossa primeira tarefa – segundo o Manifesto – é reconhecer a tendência desta “energia” toda poderosa a destruir a si própria.
Quando indagado por jornalistas sobre quem ou o quê é a maior ameaça ao capitalismo hoje, contrario suas expectativas respondendo: “o capital”! É, claro uma ideia que plagio há décadas do Manifesto. Dado que não é nem possível nem desejável anular a “energia” do capitalismo, o truque é acelerar o desenvolvimento do capital (para que ele queime como um meteoro cruzando a atmosfera), ao mesmo tempo em que resistimos (por meio de ação coletiva e racional) a sua tendência a vaporizar o espírito humano. Em poucas palavras, a recomendação do Manifesto é que empurremos o capital até seus limites, enquanto limitamos suas consequências e nos preparamos para socializá-lo.
Precisamos de mais robôs, melhores painéis solares, comunicação instantânea, redes sofisticadas de transporte não poluente. Mas ao mesmo tempo, precisamos nos organizar politicamente para defender os fracos, empoderar as maiorias e preparar terreno para reverter os absurdos do capitalismo. Em temos práticos, isso significa tratar a ideia de que não há alternativas com o desprezo que ela merece, enquanto rejeitamos todos os apelos a um “retorno” a uma existência menos modernizada. Nada havia de ético na vida sob formas anteriores de capitalismo. Programas de TV que investem maciçamente em nostalgia calculada, como Downton Abbey, deveriam nos tornar felizes por viver em nossa época. Ao mesmo tempo, deveriam nos encorajar a pisar no acelerador da mudança.
O Manifesto é um destes textos emotivos que nos falam de modo diferente em épocas distintas, refletindo nossas próprias circunstâncias. Há alguns anos, eu me dizia um marxista errático e libertário e era fustigado tanto por não-marxistas quanto por marxistas. Logo a seguir, encontrei-me numa posição política de certa proeminência, num período de intenso conflito entre o governo grego de então e alguns dos agentes mais poderosos do capitalismo. Reler o Manifesto para escrever este texto foi um pouco como convocar os fantasmas de Marx e Engels a expressar um misto de censura e apoio em meu ouvido. Adults in the Room, minha memória do tempo em que fui ministro das Finanças da Grécia, em 2015, conta como a primavera grega foi esmagada por um combinação de força bruta (da parte dos credores do país) e divisão em meu próprio governo. É tão honesto e acurado quanto pude fazê-lo. Vistos da perspectiva do Manifesto, no entanto, os verdadeiros agentes históricos são reduzidos a figuras de camafeu ou ao papel de vítimas quase passivas. “Onde está o proletariado em sua história?” – quase posso ouvir Marx e Engels gritando-me agora. “Ele deveria ser o sujeito a confrontar os poderes do capitalismo, com seu apoio apenas lateral.”
Felizmente, reler o Manifesto ofereceu também algum consolo, ao endossar minha visão de que se trata de um texto libertário. Onde o Manifesto ataca as virtudes burguesas-liberais, ele o faz devido a sua dedicação e mesmo amor a estas. Liberdade, felicidade, autonomia, individualidade, espiritualidade, desenvolvimento autoconduzido são ideais que Marx e Engels valorizavam acima de tudo. Se eles se encolerizam com a burguesia, é porque esta tenta negar à maioria qualquer oportunidade de ser livre. Dada a aderência de Marx e Engels à fantástica ideia hegeliana segundo a qual ninguém é livre enquanto alguém estiver aprisionado, sua disputa com a burguesia é que esta sacrifica a liberdade e individualidade de todos no altar capitalista da acumulação.
Embora Marx e Engels não fossem anarquistas, eram avessos ao Estado e seu potencial para ser manipulado por uma classe contra outra. No máximo, eles o veem como um mal necessário, que sobreviveria num futuro pós-capitalista coordenando uma sociedade sem classes. Se esta leitura do Manifesto tem força, a única forma de ser comunista é ser libertário. Seguir o apelo do Manifesto: “Uni-vos!” é na verdade inconsistente com ser um stalinista de carteirinha ou com perseguir a reconstrução do mundo à imagem dos regimes comunistas passados.
Quando tudo já foi feito e dito, qual a base essencial do Manifesto? E por que alguém deveria hoje – especialmente os jovens – preocupar-se com história e política?
Marx e Engels basearam seu Manifesto numa resposta simples e tocante: pela felicidade humana autêntica e a liberdade genuína que deve acompanhá-la. Para eles, estas são as duas únicas coisas que realmente importam. Seu Manifesto não se assenta em invocações germânicas estritas ao dever, ou apelos às responsabilidades históricas que nos inspiram a agir. Ele não moraliza nem aponta o dedo. Marx e Engels tentaram superar as fixações da filosofia moral alemã, e os motores do lucro capitalista, com um apelo racional, porém empolgante, aos valores básicos compartilhados em nossa natureza humana.
É central a sua análise o abismo cada vez maior entre os que produzem e os que possuem os instrumentos de produção. O nexo problemático entre capital e trabalho assalariado impede-nos de apreciar nosso trabalho e nossos artefatos, e converte patrões e trabalhadores, ricos e pobres, em bonecos trêmulos e descerebrados, obrigados a viver uma existência sem sentido por forças que não controlam.
Mas por que precisamos da política para lidar com isso? A política não é embrutecedora – especialmente a socialista, que segundo dizia Oscar Wilde, “ocupa muitas noites”? A resposta de Marx e Engels é: porque não podemos acabar individualmente com esta idiotia; porque não virá do mercado um antídoto a esta estupidez. A ação política coletiva e democrática é nossa única chance de liberdade e alegria. Para tanto, as longas noites são um pequeno preço a pagar.
A humanidade pode ser capaz de construir os arranjos sociais que permitam “o livre desenvolvimento de cada um”, como “condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas — vale repetir –, podemos acabar na “ruína comum” da guerra nuclear, do desastre ambiental ou da insatisfação mortificante e sem perspectivas. Na situação atual, nada está garantido. Podemos nos voltar ao Manifesto para inspiração, compreensão e energia mas, ao fim, o que irá prevalecer está em nossas mãos.
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Por que Marx, no século 21? Artigo de Yánis Varoufákis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU