26 Setembro 2017
Algumas dezenas de católicos acusaram publicamente o Papa Francisco de ter cometido heresia, alegando, em uma carta de 25 páginas publicada em 24 de setembro, que a exortação apostólica de 2016 do pontífice, Amoris Laetitia, contradiz o ensino anterior da Igreja.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 25-09-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Os signatários também afirmam que Francisco foi influenciado por "falsos entendimentos da revelação divina" e demonstrou uma "simpatia sem precedentes" a Martinho Lutero, sacerdote e teólogo alemão, cujas críticas à Igreja Católica em 1517 lançaram a reforma protestante.
Mas vários teólogos e estudiosos importantes disseram que as acusações são marcadas pela hipocrisia e representam uma pequena margem dos acadêmicos. Eles observaram que entre os 62 signatários da carta predominam figuras obscuras, alguns listados com descrições relativamente menores, como "sacerdote diocesano" ou "religioso".
"A primeira reação que tive depois de ler o documento foi a respeito dos signatários", disse Richard Gaillardetz, notável teólogo do Boston College. "A importância atribuída ao número de signatários... mascara o fato de serem na verdade figuras marginais".
Gaillardetz, ex-presidente da Associação Teológica Católica dos EUA, disse que, embora os signatários tenham o direito de levar sua opinião adiante, "eles precisam ser reconhecidos como as vozes extremas e automarginalizadas que são".
Massimo Faggioli, teólogo e historiador da Universidade de Villanova, observou que apenas um bispo se juntou ao grupo: Bernard Fellay, que foi ilegalmente ordenado prelado em 1988 e lidera a cismática Fraternidade Sacerdotal São Pio X. A lista de signatários, segundo Faggioli, não tem "nenhum cardeal e nenhum bispo, numa Igreja Católica que tem mais de 200 cardeais e mais de 5000 bispos".
Os organizadores consideraram a carta uma "correção filial" ao papa. Ela carrega o título latino Correctio filialis de haeresibus propagatis ("Correção Filial em razão da propagação de heresias").
A carta, entregue ao papa em 11 de agosto, mas publicada on-line em 24 de setembro, divide-se em duas seções: um resumo de nove páginas que demonstra de que maneira o pontífice teria cometido sete heresias, seguido de 16 páginas de uma "elucidação" para explicar melhor "duas fontes gerais de erro que nos parecem estar promovendo as heresias".
Para apoiar as alegações de heresia, os escritores da carta fazem várias citações de Amoris Laetitia e de declarações públicas e entrevistas concedidas pelo papa desde o lançamento do documento.
Eles criticam particularmente o fato de o papa ter apoiado as diretrizes emitidas por um grupo de bispos argentinos em setembro de 2016, afirmando que a exortação permitia que pessoas que se divorciaram e que se casaram novamente comungassem em privado, mediante certas circunstâncias.
Os escritores da carta também criticam a nomeação papal do cardeal Kevin Farrell para prefeito do novo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida do Vaticano, citando uma entrevista em outubro de 2016 à NCR em que Farrell declara que Amoris Laetitia foi "o Espírito Santo falando conosco".
Amoris Laetitia foi escrita por Francisco após os Sínodos dos Bispos de 2014 e 2015. Embora o documento não faça mudanças definitivas no ensino da Igreja, diz que os bispos e sacerdotes católicos não podem mais fazer determinações morais gerais sobre as chamadas situações conjugais "irregulares", como o divórcio e o novo casamento.
Enquanto os católicos que se divorciaram e se casaram novamente sem ter a antiga união anulada tenham sido tradicionalmente impedidos de receber a comunhão, Amoris Laetitia diz que os sacerdotes devem praticar o "discernimento pastoral" de situações individuais e que tal discernimento pode "incluir a ajuda dos sacramentos".
Gaillardetz, que escreveu vários livros sobre a prática da autoridade no catolicismo, afirmou que os escritores que estão acusando Francisco de heresia pressupõem uma eclesiologia "confusa" ou a teologia da natureza e estrutura da Igreja.
"Francisco não tem medo de ser desafiado e mostrou uma abertura nova para a discussão e a divergência de opiniões na Igreja", disse Gaillardetz.
"No entanto, com este documento, não encontramos um grupo de teólogos e clérigos interessados em expressar seu ponto de vista com humildade, como parte do discernimento contínuo da Igreja em comunhão com seus líderes", acrescentou. "Procuram corrigir o papa por um perigoso senso de sua própria certeza, uma certeza que, aparentemente, não é perturbada pela divergência de princípios que tantos outros na Igreja apresentam com seus pontos de vista".
Stephen Walford, um autor católico britânico que escreveu vários livros sobre o papado e a teologia da Igreja, disse que a acusação de heresia "baseia-se em afirmações que o Santo Padre nunca fez - essencialmente, em mentiras - e muita hipocrisia".
"Os signatários também atacam o papa Francisco por sua atitude em relação a Martinho Lutero, e, no entanto, o que eles próprios acreditam ser aceitável para um papa transmitir não é nada menos do que protestantismo, é um catolicismo DIY (faça você mesmo)", disse Walford, que está trabalhando em um livro sobre Amoris Laetitia e recentemente se encontrou com o papa Francisco no Vaticano.
"Qualquer um que fique algum tempo nas redes sociais sabe da acidez e do julgamento dirigidos aos que são leais ao Papa Francisco: raiva, arrogância, orgulho, ridicularização e grosseria", acrescentou Walford. "Esses são os frutos do mal, e eles nunca conseguirão trazer de volta uma era de ouro que nunca existiu".
A lista de signatários da carta de acusação inclui um antigo funcionário do Vaticano: Ettore Gotti Tedeschi, ex-presidente do Instituto para as Obras de Religião, mais conhecido como Banco do Vaticano. Tedeschi foi destituído do cargo após uma moção de censura, em 2012, pelo conselho administrativo do instituto.
Um religioso aposentado dos EUA juntou-se ao grupo de signatários depois que a carta foi divulgada: o ex-bispo das dioceses de Pensacola-Tallahassee e de Corpus Christi, René Henry Gracida. O cardeal Raymond Burke, um dos quatro cardeais a emitir um conjunto crítico de perguntas, conhecido como "dubia", a Francisco, em setembro de 2016, não assinou a carta.
Os signatários dizem ao papa que estão escrevendo "com profundo sofrimento, mas movidos pela lealdade ao nosso Senhor Jesus Cristo". Depois de listar as sete supostas heresias, também pedem que ele lhes conceda sua benção apostólica.
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Estudiosos dizem que a correção de Francisco por 'heresia' é marcada pela hipocrisia e pela falta de signatários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU