24 Agosto 2017
“A mística, substância e nuance de toda a experiência religiosa, tinha se tornado, entre os séculos XVI e XVII, um setor, uma categoria, uma especialidade. Nessa passagem, tinha se realizado o coração teológico da modernidade.”
A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 22-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A “mística” agrada: e isso deveria preocupar muito. De fato, ela parece ser o reconfortante lugar de um “faça-você-mesmo” religioso: feito de velas e CDs gregorianos, agroturismos espiritualistas e pedaços de suposto Oriente usados como um perfume.
Mas a história nos ensina que o místico é o lugar do risco e da dor incurável: aquele que, de acordo com um famoso apólogo de Simone Weil, habita os dois amantes que vão, pontualmente, a um compromisso, mas, equivocando-se sobre o lugar, encontram-se irremediavelmente distantes em um desejo tornado eterno pela sua insaciabilidade.
A história dessa experiência é possível hoje graças a duas figuras que eu gostaria de evocar a partir de dois episódios. O primeiro episódio é situado na Turíngia de 1896, onde os amigos da revista Die christliche Welt se reúnem para um seminário. Fala Julius Kaftan, dogmático seguidor de Ritschl. A discussão, em vez de entrar no mérito das suas teses, é capturada pelo primeiro comentário de um jovem de cerca de 30 anos: “Meus senhores, aqui oscila tudo...”.
O jovem audaz é Ernst Troeltsch, um dos gigantes da filosofia da religião e da história, que, dali até a sua morte em 1923, faria uma contribuição decisiva para a análise da experiência religiosa.
Na sua reconstrução, a “mística” parecia ser quase uma essência necessária da religião, equilibrada pela função da comunidade e do culto: uma essência que devia ser circunscrita, sabendo, porém, que, “sem misticismo, não há verdadeira religião”.
Com base nessa investigação, Troeltsch, cujas posições crescem em denso diálogo com as teses de Max Weber sobre a modernidade, desenvolve a sua crítica a Kant, culpado de negligenciar “o problema do apriori religioso” e o apreço por Spinoza, ao qual dá o mérito de conceber “o mito da religião positiva como forma expressiva da religião mística”.
O segundo episódio situa-se em Paris, no dia do funeral de Michel de Certeau, o jesuíta, que morreu aos 60 anos de idade no dia 9 de janeiro de 1986. Por sua vontade, no seu funeral, um disco de Edith Piaf faz ressoar o mais “místico” dos versos de Michel Vaucaire: “Rien de rien” (“não, nada de nada, não me arrependo de nada”).
Com essa voz, despedia-se do mundo o intelectual poliédrico e refinadíssimo, que, atravessando de olhos fechados os cruzamentos entre filologia e psicanálise, entre história e teologia, tinha descoberto quando, como e por que um adjetivo – “místico” – tornara-se um substantivo – “a mística”.
De fato, aquela que era a substância e a nuance de toda a experiência religiosa tinha se tornado, entre os séculos XVI e XVII, um setor, uma categoria, uma especialidade. Nessa passagem, de acordo com Certeau, tinha se realizado o coração teológico da modernidade: a tradição cristã destinava a um percurso de apropriação interior aquilo que, antes, buscava e encontrava outros equilíbrios. Ia na direção de uma marginalidade que se subtraía à hegemonia eclesiástica e, ao mesmo tempo, iluminava as suas fissuras.
Entre Troeltsch e Certeau, portanto, irradia-se em todas as direções uma questão que é historiográfica e também existencial, que toca a história da literatura e das instituições, os mundos do Oriente e do Ocidente.
Quem traça um mapa detalhado disso é o livro L’anti-Babele. Sulla mistica degli antichi e dei moderni [O anti-Babel. Sobre a mística dos antigos e dos modernos] (Ed. Il Nuovo Melangolo, 649 páginas), que, pela organização de Isabella Adinolfi, Giancarlo Gaeta e Andreina Lavagetto, reúne os ensaios dedicados por muitos amigos ao fim do ensino universitário de Paolo Bettiolo, professor em Pádua e refinado leitor das grandes tradições cristãs.
Um mapa que, disposto em uma sequência cronológica, retribui progressivamente ao leitor que embarcou no longo caminho que passa de Jesus aos gnósticos, de Barsanúfio de Gaza a Rémy de Gourmont, de Eckhart a Buber, de Clemente de Alexandria a Benjamin.
A dimensão “mística” é uma categoria que serve para compreender fenômenos que não podem ser reduzidos a uma anacrônica tensão entre religiosidade da instituição e religiosidade da subjetividade. Começando pela experiência de Jesus: nesse livro – com toda a cautela exigida ao exegeta – Mauro Pesce lê a experiência do batismo no Jordão como o encontro com um sinal do céu, um momento do tempo histórico, no qual os diversos relatos evangélicos escancaram todo o repertório da experiência mística: a voz, a visão, a certeza interior. Até as de Simone Weil – como mostra Isabella Adinolfi – que entende que a “mística” não é deixar-se raptar pelo cotidiano, mas habitar a quarta dimensão na qual os dois amantes colocados em lugares equivocados do espaço não se encontraram.
Porque, no fim, só a fraqueza e a espera podem “realmente” se encontrar: e tornar-se como Deus, que “não ama como eu amo, mas como uma esmeralda é verde”.
E nisso, não por acaso, são duas vozes do judaísmo, em diálogo entre si, que estendem o fio tenso entre Troeltsch e Certeau: a de Martin Buber e de Walter Benjamin, e que chega à hipótese “sem dúvida herética” da Qaballa, de acordo com a qual não virá um dia em que as línguas serão devolvidas à unidade, mas no qual a tradução será “inconcebível”, e as palavras serão “pedras inanimadas”, e os homens e as mulheres serão libertados “do fardo e do esplendor do colapso de Babel”, em um silêncio sem igual: que é aquilo ao qual também aspira aquilo que está sob a vulgaridade de um misticismo da moda e de uma preventiva nostalgia do exótico.
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A diferença entre o místico e o exótico. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU