21 Março 2017
No século XIX, velho barbudo já dizia: quem não se opõe à acumulação desenfreada do capitalismo não tem qualquer autoridade para criticar o escândalo das carnes.
O artigo é de Gustavo Henrique Freire Barbosa, advogado e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, publicado por Outras Palavras, 20-03-2017.
Eis o artigo.
No capítulo de O Capital sobre a jornada de trabalho, Marx trata da adulteração do pão revelada pelo relatório do comitê da Câmara dos Comuns elaborado nos anos de 1855 e 1856 em Londres. Muito embora tenha reconhecido a irregularidade na produção de pães, o comitê, tratando com a “mais terna delicadeza o free trader que compra e vende mercadorias adulteradas to turn an honest penny (para ganhar um centavo honesto)”, concluiu que o livre-comércio abrangeria também o direito de comercializar produtos falsificados, levando o pensador alemão a tecer críticas mais do que pertinentes à incrível condescendência das instituições inglesas: “o inglês, tão apegado à Bíblia, sabia que o homem, quando não se torna capitalista, proprietário rural ou sinecurista pela Graça Divina, é vocacionado a comer seu pão com o suor de seu rosto, mas ele não sabia que esse homem, em seu pão diário, tinha de comer certa quantidade de suor humano, misturada com supurações de abscessos, teias de aranha, baratas mortas e fermento podre alemão, além de alune, arenito e outros agradáveis ingredientes minerais”[1].
Ainda no mesmo capítulo, Marx simula um ultimato de um trabalhador que exige um pagamento justo pela sua força de trabalho além de uma jornada de trabalho correspondente com a dignidade humana, queixa que faz ao burguês “sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência”. Denunciando a separação da narrativa do capital com as idiossincrasias de quem o maneja, prossegue: “podes muito bem ser um cidadão exemplar, até mesmo membro da Sociedade para a Abolição dos Maus-Tratos dos Animais, e viver em odor de santidade, mas o que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate um coração”[2].
A lição possível de extrair destes trechos é de que o capital, em suas mais diversas expressões, é uma força impessoal, vulcânica e alheia à moral particular de quem detém os meios de produção — pessoas que, em sua condição de capitalistas, correspondem apenas ao capital personificado. Sua alma, assim, é a alma do capital, que tem um único impulso vital: o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor e, como um vampiro, viver apenas da sucção do trabalho vivo, vivendo conforme mais trabalho vivo é capaz de sugar[3].
Para sobreviver em um ambiente de concorrência, o capitalista é obrigado a se despir de seus valores morais particulares e abraçar a ética do livre-mercado, atuando impulsivamente no sentido de adotar o maior número possível de subterfúgios para diminuir os custos da produção e aumentar seu excedente de lucro sob o risco de ser engolido por seus concorrentes. O fato de tais subterfúgios serem lícitos ou ilícitos é apenas um detalhe.
Assim, não são novidades as notícias recentes envolvendo as duas gigantes nacionais no ramo do comércio de carnes, JBS e BRF, acusadas de adulterar seus produtos e colocá-los no mercado em condições completamente impróprias para o consumo, incluindo a disposição de carne apodrecida com injeções de ácido ascórbico e recheada de papelão.
O escândalo serviu para desmistificar de vez dois pontos defendidos de forma entusiástica pela apologética do livre-mercado: o primeiro, relacionado à livre-iniciativa, consolida-se enquanto quimera diante do fato de que as condutas são atribuídas a duas marcas que formam um oligopólio responsável pela brutal maioria dos produtos dispostos nas prateleiras dos supermercados (a BRF, por exemplo, detém a Sadia e a Perdigão, enquanto a JBS é dona da Friboi, Seara e a da Big Frango, além de uma série de incontáveis mercadorias de diferentes estampas produzidas por estes conglomerados); o segundo ponto, por sua vez, diz respeito à própria liberdade de consumo e da consciência do risco que se corre ao consumir determinados produtos. Por força do Código de Defesa do Consumidor, em boa parte dos casos temos acesso a informações suficientes de que a ingestão de determinados alimentos pode nos causar problemas de saúde, a exemplo dos refrigerantes, transgênicos e demais mercadorias em cujo rótulo constam seus ingredientes, químicos e estabilizantes. No caso em análise, os conglomerados em questão não só sonegaram o risco à saúde que suas mercadorias adulteradas podem causar aos consumidores como elevaram ilícita e exponencialmente este risco, em uma clara relação de causa e efeito em prol unicamente do pináculo do modo de produção capitalista que é a acumulação predatória a qualquer custo.
Assim, para que vendam mais e engordem suas margens de lucro, acabam por demolir de vez os pilares do liberalismo neoclássico que são a livre concorrência e a liberdade de escolha, em mais um exemplo da clássica contradição entre as forças produtivas – também apontada por Marx – por meio da qual se evidencia que o modo de produção capitalista é incapaz de concretizar os próprios princípios nos quais se funda.
Abundam contradições nesse sentido. O fato de produzirmos alimentos suficientes para alimentar a população do planeta ao passo que quase um bilhão de pessoas ainda padecem de fome[4] é uma das mais categóricas provas de que, estando a produção alimentícia encarcerada pela dinâmica da acumulação e da propriedade privada, gêneros alimentícios jamais serão produzidos com a principal finalidade de saciar a fome das pessoas, mas sim para contemplar os interesses da meia dúzia de entidades que dominam o mercado mundial de produção de alimentos. O fato de não serem encontrados recursos para resolver problemas como o da fome enquanto trilhões de dólares em recursos públicos foram disponibilizados da noite para o dia para salvar especuladores e agentes do sistema financeiro internacional responsáveis pela crise de 2008 dá a dimensão de que o problema jamais foi a insuficiência de recursos, mas sim as formas de sua canalização e a ausência de maneiras de organização social que permita aos cidadãos e cidadãs a apropriação democrática dos recursos e resultados econômicos.
Nessa perspectiva, quem não está disposto a se posicionar de forma contrária à ética predatória de acumulação desenfreada do capitalismo e sua tendência natural à formação de monopólios e oligopólios não possui qualquer autoridade para criticar o escândalo das carnes. Da mesma maneira, também não possui quaisquer condições de sair em defesa da liberdade promovida pela apologia vulgar do livre-mercado — mesmo a liberdade de consumir nos próprios termos e premissas dos códigos mercantis que costumam condicionar e confundir o exercício da liberdade ao ato de comprar, gerando um exército de consumidores falhos que, segundo Bauman, pagam o preço amargo da confusão entre cidadania e consumo promovida pelo capitalismo pós-moderno.
Enquanto permanecer existindo a contradição das forças produtivas referente à produção e à distribuição de alimentos, gigantes do agronegócio como a BRF e a JBS – conhecidas violadoras de direitos ambientais, trabalhistas e responsáveis por conflitos no campo envolvendo comunidades indígenas e ribeirinhas – continuarão existindo e, sobretudo, produzindo veneno em forma de comida, coroando um sistema plenamente disfuncional e hostil a qualquer prospecção emancipatória da humanidade.
Notas:
1 O Capital, Livro I. Boitempo Editorial, 2014, páginas 322 e 323.
2 Idem, página 308.
3 Idem, página 307.
4 Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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Friboi, BRF e a “ética” do livre-mercado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU