Como Deus veio entre nós

Foto: Cathopic

16 Dezembro 2022

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre as leituras deste 4º Domingo do Advento, 18 de dezembro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Isaías 7,10-14

O profeta Isaías inicia seu ministério após a vocação e a missão recebida no templo em 740 a.C. (cf. Is 6,1-13). Ele se dirige ao rei Acaz, em uma situação de crise política, e pede-lhe que não tema e que confie no Deus de Israel, porque só quem crê pode permanecer firme (cf. Is 7,4-9). Depois o convida a pedir um sinal ao Senhor, para poder crer.

Diante da recusa do rei, é o próprio profeta quem promete um sinal de salvação da parte do Senhor: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel”, Deus-conosco.

O nascimento de um filho, portanto, será sinal e penhor de que Deus está conosco, com seu povo santo. O trecho do Evangelho de hoje cita essa profecia.

Carta aos Romanos 1,1-7

O início da Carta aos Romanos é teologicamente muito denso: “Paulo” é “servo de Cristo Jesus, apóstolo por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho”. O que contém essa boa notícia?

Aquilo que havia sido prometido pelos profetas nas Santas Escrituras cumpriu-se com a vinda do Filho de Deus ao mundo, “nascido da descendência de Davi” e, portanto, homem frágil e mortal, mas “constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santidade, em virtude da ressurreição dos mortos”.

Eis todo o Evangelho: Jesus nasceu como homem, viveu como homem até a morte e foi ressuscitado dos mortos, tornando-se o Vivente, o Senhor para sempre.

O trecho do Evangelho de hoje ilustra como Jesus é descendente de Davi, o Rei Messias.

Mateus 1,18-24

O Advento está prestes a se concluir, e, depois de três semanas nas quais a espera estava dirigida à parousía, à manifestação final d’Aquele que vem, o Filho do homem na sua glória, agora inicia um tempo de memória: recordamos eventos do passado, a pré-história de Messias, fazemos memória de como o Filho de Deus veio ao mundo, porque são precisamente esses eventos que fundamentam a nossa espera pela vinda gloriosa de Cristo.

Prestemos atenção, portanto: não esperemos pelo Natal, um evento que já aconteceu e que só podemos recordar, mas confessemos a nossa fé no Senhor Jesus também na sua vinda ao mundo, confessemos o mistério central da nossa a fé, a encarnação, nas etapas e nos eventos que manifestaram o desígnio de salvação de Deus.

Qual é, então, a ghénesis (cf. também Mt 1,1), a origem de Jesus? Assim Mateus a narra: há uma jovem de Nazaré da Galileia, Maria, prometida em casamento a José. Esse era o costume nas núpcias judaicas: estas eram estipuladas com o noivado, mas às vezes passava um certo tempo entre o compromisso matrimonial e a convivência dos dois cônjuges, principalmente se fossem adolescentes.

Nesse tempo em que Maria e José ainda não vivem juntos e, portanto, não consumam suas núpcias, acontece aquilo que é humanamente inaudito: Maria encontra-se grávida, seu ventre é fecundado, há nela um filho que espera vir à luz.

O que significa esse fato? Digamos logo: só Deus pode dar aquele Filho, e a ação criadora de Deus opera em Maria. Não é o acaso nem a necessidade, o destino, que presidem essa gravidez, mas sim a vontade do próprio Deus, que quer ser “Aquele que vem” entre os humanos. Eis a gênese de Jesus de Nazaré:

uma mulher, Maria,
o Espírito de Deus que age nela como Espírito criador que “se aninha sobre as águas” (cf. Gn 1,2, versão siríaca)
e um homem que aparece como testemunha.

O evangelista Mateus não se interessa nem na reação psicológica de Maria nem na de José, mas quer nos colocar diante de uma situação real, ainda que na aporia: Maria está grávida sem ter conhecido um homem, e José ignora o que pode ter acontecido. Este último é apresentado como um tzaddiq, ou seja, um justo, um crente, e, tomando conhecimento da situação de Maria, pensa em dissolver o vínculo nupcial, sem dizer nada publicamente, para não a desonrar.

É difícil para nós decifrar o que movia José a tomar essa decisão, e é preciso dizer que os comentários a esse respeito, mesmo os dos Padres da Igreja, são incertos, às vezes até ridículos. Segundo alguns, ele gostaria de aplicar a lei sobre o adultério, mas sem chegar à violência (cf. Dt 22,23-24); segundo outros, está ferido e decepcionado... Mais simplesmente, pode-se pensar que José, tendo acolhido a explicação que Maria lhe dera, estando cheio de temor de Deus, pensa em dar um passo atrás, para não se vangloriar de nenhum direito sobre aquele menino que Maria diz vir de Deus: diante da paternidade de Deus, José renuncia à sua própria paternidade!

Essa aporia só pode ser resolvida por uma revelação, pelo ato de Deus levantar o véu com sua palavra. Eis, então, o anjo, o mensageiro do Senhor, que se faz presente a José enquanto ele dorme, em um sonho, meio pelo qual no Antigo Testamento Deus repetidamente revelou sua vontade e sua ação (como a um dos filhos de Jacó, José, o homem dos sonhos: cf. Gn 37,5-11).

O mensageiro de Deus se dirige a José lembrando-o de sua identidade, que também contém uma missão: “José, tu que és Filho de Davi, que tens um lugar na descendência messiânica, não tenhas medo de tomar contigo Maria, tua esposa. O menino que está sendo gerado nela vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”.

Essa palavra do Senhor pede obediência a José, pede-lhe que seja esposo de uma esposa que lhe dá um filho como Deus prometeu na descendência de Davi a todo o povo santo. José deve aceitar esse despojamento do fato de ser esposo e saber viver uma paternidade que não é dele: uma paternidade que ele exercerá dando ao filho o nome de Jeshu’a, Jesus, que indica sua missão de salvação e, portanto, de perdão dos pecados (cf. Lc 1,77).

José é convidado a se tornar pai, a se sentir pai de um filho que não vem de seu desejo, de sua decisão, mas somente de Deus: ele será pai de Jesus segundo a Lei e assim será chamado por seus conhecidos que não conhecem a profundidade do mistério (cf. Lc 4,22). José deve exercer sua qualidade de filho de Davi sobre aquele que é o Filho de Davi prometido e aclamado (cf. Mt 21,9).

Diante desse relato de milagre, os homens e as mulheres de hoje são tentados a ficar hesitantes, a lê-lo como um mito, mas, com um olhar puro, devemos chegar a entender aquilo que ele quer comunicar em profundidade à nossa fé. Mais do que a forma narrativa, devemos captar a intenção do evangelista, que é esta: fazer com que o leitor compreenda que só Deus poderia nos dar um homem como Jesus, que foi Deus quem o enviou; se Jesus era na forma de Deus e se despojou com a humanização (cf. Fl 2,6-7), então ele é verdadeiramente fruto da vontade de Deus e do consentimento da humanidade a esse “maravilhoso intercâmbio” (antífona das primeiras e segundas Vésperas da solenidade de Maria Santa Mãe de Deus, 1º de janeiro) nessas núpcias. Como dizer que Jesus estava em relação com Deus, que era a presença de Deus entre as pessoas? A unção do Espírito Santo que fecunda o ventre de Maria parece ser um relato adequado para fundamentar a fé.

José, portanto, não recebeu acima de tudo uma “revelação” sobre o Filho, mas uma “vocação”: assim como Oseias foi convidado a se casar com uma prostituta, Jeremias a permanecer solteiro, Ezequiel a permanecer viúvo, José é convidado a acolher Jesus como filho, um filho que na verdade não é seu filho, mas Filho de Deus.

Assim, José dá à sua esposa, Maria, não apenas uma casa, mas também uma família, a de Davi, permitindo-lhe entrar na descendência messiânica, cumprir a promessa de Isaías e impor ao filho o Nome que contém em si também uma missão.

Por isso, Mateus observa: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem – termo que vem da versão grega dos LXX, enquanto o hebraico diz, literalmente, “uma jovem, uma menina” – conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco’” (Is 7,14).

Quando José acordou, sem fazer nenhuma objeção, “fez conforme o anjo do Senhor havia mandado, e tomou consigo sua esposa, a qual, sem que ele a conhecesse, deu à luz um filho que ele chamou de Jesus”. José havia sido definido como “justo”: agora o conhecemos como crente e obediente à palavra do Senhor no silêncio.

As vocações são diversas: há quem seja chamado por Deus para fazer sua vontade proclamando, anunciando, até mesmo gritando (como o Batista, cf. Mt 3,3 e Is 40,3); e há quem seja chamado a executar, a fazer concretamente, em um abismo de silêncio. Nos Evangelhos, não nos é testemunhada nenhuma palavra de José, mas dele são atestados a obediência e o silêncio: não mutismo, mas silêncio de adoração, de custódia, de aprofundamento do mistério.

Essa página pode ser um grande ensinamento para nós: ela nos diz, de fato, que Deus pode nos surpreender e que, quando, segundo a nossa justiça perante ele, tivermos elaborado e decidido um trajeto, o Senhor pode repentinamente nos pedir que mudemos de direção e de caminho, rumo a um horizonte que permanece obscuro para nós.

É a hora de obedecer, dando um passo atrás do outro, certos de que “caminhando se faz o caminho” (Antonio Machado) e que só o Senhor nos precede. Isso deve nos bastar.

 

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