10 Mai 2019
Deus escolheu um povo que na Bíblia, com frequência, é representado como o seu rebanho. Assim, três leituras deste Domingo empregam esta imagem, que faz lembrar outra: a do Deus pastor. Este que sonha com um «rebanho» sempre maior e que venha a incluir todas as nações da terra, todas chamadas à salvação.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 4º Domingo da Páscoa - Ciclo C (12 de maio de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas
1ª leitura: “Sabei que vamos dirigir-nos aos pagãos” (Atos 13,14.43-52).
Salmo: Sl. 99(100) - R/ Sabei que o Senhor, só ele, é Deus, nós somos seu povo e seu rebanho.
2ª leitura: “O Cordeiro será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida” (Apocalipse 7,9.14-17).
Evangelho: Às minhas ovelhas, “Eu dou-lhes a vida eterna” (João 10,27-30).
Às vezes, é preciso sair das imagens, mesmo sendo elas imagens evangélicas. Mas isto, claro, só depois de haver explorado toda a sua significação. A figura do "pastor", do criador de ovelhas, se em outras épocas dizia alguma coisa, ela agora se tornou estranha à maior parte de nós. Sabemos que o pastor tinha de ser um pouco veterinário, um pouco meteorologista, um observador atento etc. Alguém, portanto, cheio de competências, justificando a sua autoridade.
Hoje, no entanto, não apreciamos muito ser comparados a animais, ainda mais a animais que, sempre balindo, seguem passivamente uns aos outros. E irresponsáveis, pois toda a responsabilidade é assumida pelo pastor. Felizmente as mesmas Escrituras vêm em nosso socorro, mostrando-nos que as imagens devem ser convertidas e superadas.
Neste capítulo 10 de João, Jesus diz ser ele o pastor que faz as ovelhas entrarem e saírem pela porta, ao contrário do ladrão. E também, sem qualquer transição, ser ele mesmo a porta; o que faz pensar em 14,6: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.
Mas isto não é tudo: este pastor do capítulo 10 torna-se o Cordeiro no Apocalipse 7,17: "o Cordeiro que está no meio do trono será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida" (2ª leitura). O Cordeiro, portanto, torna-se o seu contrário, o pastor. Além disso, o trono nos faz pensar na cruz, e as fontes nos remetem ao Salmo 23. Jesus, aliás, já se havia declarado "o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo", em João 1,29. Com certeza, uma alusão ao rito do bode expiatório.
Podemos ver então que as imagens vão mudando as suas características, chegando até a inverter os seus significados.
Conforme nossa aritmética, "o Pai e eu" somam dois. Só que não! Este dois, aqui, é Um só. Em Deus, os contrários se reconciliam e a multiplicidade não é mais incompatível com a unidade. Sabemos que, com o Espírito, iremos para Três. Impossível aqui refazermos mais uma vez uma exposição sobre a Trindade. Lembremos somente que este fundo do Ser que chamamos de Deus, Ele é em Si mesmo intercâmbio.
Sendo assim, podemos então compreender porque as imagens se choquem violentamente, passando-se uma para a outra (o cordeiro e o pastor, por exemplo), mesmo quando, à primeira vista, elas até se contradigam. É difícil para nós não considerar o "Pai" como o Deus por excelência; e o "Filho" e o "Espírito" como uma espécie de subalternos, afeitos a tarefas de primeira importância, sem dúvida, mas dependentes de uma autoridade superior. A nossa lógica falha quando dizemos: são três vezes Um e isto faz somente Um.
Pois é uma Unidade que está se fazendo incessantemente, porque Deus é autor de Si mesmo, e, de uma só vez, necessariamente e livremente. Por esta Unidade, portanto é que Jesus emprega a mesma fórmula: "ninguém vai arrancá-las" (as ovelhas) sucessivamente da "minha mão" (v. 28) e "da mão do Pai" (v. 29). Se o Pai é "maior que todos", o Filho igualmente, pois que fazem somente Um. Maior que todos, quer dizer, "acima" de todo o resto tomado em conjunto, acima de todas as "potestades e dominações", como escreve Paulo, que poderiam tentar empreender arrancar-nos da "mão" divina.
Superemos o aspecto negativo e desagradável desta imagem. A palavra "rebanho", ausente de nossa leitura, encontra-se no v. 16: "um só rebanho, um só pastor". Rebanho é a imagem da unidade. Assim como o Pai e o Filho são Um, os homens devem acabar por se reunirem num só corpo. "Pai, guarda-os em teu Nome que me deste, para que sejam Um como nós" (17,11), diz Jesus, para além de qualquer imagem. Esta unidade não apaga a consistência, a personalidade de "cada um", por isso a palavra "rebanho" só é empregada uma vez neste capítulo 10: Jesus preferencialmente fala de "suas ovelhas" no plural; ele as conhece e as chama cada uma por seu nome (v. 3). Mais ainda, nada aconteceria se elas não conhecessem o pastor nem escutassem a sua voz (v. 3-5 e, sobretudo, v. 14). De novo, constatemos que, nos domínios de Deus, o "Um" não se opõe ao "múltiplo" nem a comunidade à singularidade. A unidade entre nós, entre as "ovelhas", produz-se somente pela participação na unidade do Pai e do Filho: "para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade" (17,20-22. Ver também 15,4). Se Cristo nos diz tudo isto, é para nos revelar a nossa verdade última, mas também porque somos parte interessada nesta unidade: ela não pode se fazer sem a nossa adesão. Só livremente é que nos tornamos "participantes da natureza divina" (2 Pedro 1,4).
Quem aceita passar do estado de detentor da autoridade ao de «servidor» não conhece nenhuma diminuição nem alteração do que se pode chamar de valor. Ao contrário, é no momento em que alguém aceita dar algo de si mesmo para fazer o outro existir que ele se faz criador, que se torna semelhante a Deus e que entra na intimidade divina. Assim, em certo sentido, só quem se quer «servidor» é que se torna «senhor». Em nossa 2ª leitura, foi quem deu a sua vida, fazendo-se de Cordeiro, é que está «no meio do Trono».
Temos ainda aí uma inversão: este Cordeiro glorificado e sentado no trono acha-se no meio dos que têm fome e sede. Ele os habita e seu Trono são eles. Este Deus-em-nós está em trabalho para nos fazer percorrer o caminho que Ele mesmo seguiu, o caminho do dom de si mesmo que nos conduz «para as fontes da água da vida» (2ª leitura). Não vamos acreditar que para isso seja preciso fazer esforços «morais» consideráveis. Basta que nos abramos para acolher o que nos vem de qualquer modo e saiamos para fora das nossas muralhas defensivas. Isto, no fundo, significa escolher viver em liberdade, muito conscientes de que muitas das escolhas que nos tentam, longe de ilustrar esta liberdade, não poderiam senão nos subjugar. Autores antigos chamaram isto de «abandono à Providência». Sem esquecer que este abandono está intimamente ligado a um imenso desejo que, enfim, não é outro senão o desejo de viver.
Com esta certeza: nada nem ninguém nos poderá arrancar da mão criadora do Pai, mão que não é outra senão a mão do próprio Cristo (versículos 28 e 29). O Cristo conhece pessoalmente cada uma das suas «ovelhas» e nenhuma se perderá. «O Senhor é meu pastor, nada me há de faltar» (Salmo 23). Seja o que for que nos aconteça.
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Pastor sem fronteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU