20 Outubro 2018
Em 2019 acontece o oitavo centenário do famoso encontro de Francisco de Assis para a revista com Al Malik Al-Kamil, sultão do Egito, que inspirou uma tradição ao diálogo, cujo valor para a atualidade torna-se cada vez mais de dramático significado. Ultrapassando as linhas do exército cruzado, envolvido no cerco de Damietta, para ir ao encontro com Al-Malik, Francisco de Assis tornou-se o emblema da superação das barreiras entre povos, culturas e religiões.
O artigo é de Giuseppe Buffon, publicado por L'Osservatore Romano, 17/18-10- 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para celebrar o evento de Damietta, a Pontifícia Universidade Antonianum está organizando uma série de conferências, que ocorrerão em locais significativos para uma geopolítica da paz e da coexistência pacífica entre os povos: Murcia-Granada, Veneza, Roma, Jerusalém, Damietta e Istambul. Para a apresentação desse itinerário de estudo sobre o significado do evento de Damietta, a própria universidade vai dedicar, em 19 de outubro, a jornada de estudo A hospitalidade do Egito. Francisco de fato se apresenta a al-Malik como hóspede e o próprio sultão se mostra acolhedor e hospitaleiro, oferecendo uma infinidade de presentes. Essa atitude do santo não é surpreendente quando se considera que o centro de sua mensagem, como ele mesmo escreve no capítulo IX da primeira regra, é constituído pelo exemplo de Cristo pauper et hospes, pobre e hóspede. Pobres e peregrinos, hóspedes e refugiados constituem para Francisco a imagem concreta de Cristo.
Os pobres de seu tempo não são, contudo, apenas aqueles que não possuem bens, mas também aqueles que são privados dos direitos civis, os excluídos, como se poderia dizer, da cidadania. São pessoas sem meios de subsistência, que para viver recorrem a trabalhos temporários e, eventualmente, à esmola. É significativo notar que o Islã da época de Francisco se mostre sensível às necessidades dos pobres e, portanto, também em relação à escolha de pobreza professada pelos seguidores de Francisco.
Quem afirma isso é um de seus biógrafos, Boaventura de Bagnoregio, que, aliás, emprega justamente a hospitalidade de Damietta e aquela oferecida em seguida aos frades itinerantes em terras muçulmanas, para expor o mundanismo de um Ocidental apegado à riqueza e ao poder, a ponto de declarar ilegítimos os seguidores de Francisco e Domingos que haviam renunciado a toda posse. O biógrafo refere-se em particular aos mestres da universidade de Paris, que exigiam a supressão das Ordens mendicantes, precisamente por causa de seu pauperismo: "Certa vez alguns frades viajaram para os países dos infiéis e encontraram um sarraceno que, movido pela piedade, ofereceu-lhes o dinheiro necessário para a alimentação. Eles o recusaram, e aquele homem ficou maravilhado, porque via que eles não tinham nada. Mas quando ele finalmente compreendeu que eles não queriam dinheiro, porque eles haviam se tornado pobre por amor de Deus, apegou-se a eles com tanto afeto que prometeu fornecer a eles, enquanto tivesse condições, todo o necessário. É, portanto, um crime horrível e abominável para um cristão, pisar esta pérola preciosa, que um sarraceno honrou com tanta veneração".
Que Francisco se apresentasse ao sultão como hóspede também pode ser deduzido pelo fato que não só na primeira regra, mas também naquela oficial, a chamada regra bulada, ele prescrevia que os irmãos, ao entrarem em uma casa dissessem: Pax huic domui, Paz a esta casa.
A saudação de paz muitas vezes aparece nas saudações de suas cartas, provando assim ser condição prévia de cada encontro, seja este mediante um escrito ou em pessoa. A paz é para ele a porta de ingresso na casa, lugar da hospitalidade, e via de acesso para toda relação, inclusive aquela com Al-Malik. Não se trata, portanto, apenas de uma saudação, mas de uma modalidade desarmada de se apresentar ao outro, de uma modalidade de vida, que provoca reações e críticas até mesmo dentro da fraternidade dos Menores, onde alguns manifestam desconforto ao adotá-lo como estilo da itinerância apostólica.
A saudação de paz não é de fato um simples "não briguem". Também não é uma advertência contra vícios que geram conflitos, dirigida unicamente à esfera interior. Não se trata, portanto, de um Francisco pacifista, ou seja, colado no nível horizontal, nem de um Francisco espiritualista, pregador de uma conversão unicamente interior. O desejo de paz para ele constitui uma autêntica revelação de Deus num contexto de luta e duros conflitos que ele próprio experimentou em Assis, como resultado dos nascentes burgos italianos. O estilo pacifista da fraternidade minorítica, revelado pelo Altíssimo, como a própria Regra, entra em contraste com a lógica de seu tempo – aquela dos conflitos entre os burgos – e no ambiente das cruzadas de Damietta assume uma relevância especial precisamente por causa de um nível muito mais elevado de conflitualidade.
O encontro de Francisco com a Al-Malik, que ultrapassa a linha de frente dos Cruzados, demonstra ser, assim, uma tentativa extrema de expandir inclusive geograficamente a sua mensagem de paz evangélica. Mesmo a iconografia primitiva do santo, que nos afrescos da Capela Bardi colocam o episódio do encontro com o Sultão logo depois daquele da pregação aos animais, revela seu desejo de estabelecer contatos não só com as criaturas, mas com a própria alteridade islâmica: um universalismo antropológico, além de geográfico e social.
As mesmas normas a respeito daqueles que vão entre os sarracenos, inseridas no capítulo XVI da primeira regra, redigidas justamente ao seu retorno de Damietta, podem ser consideradas como indicativas da atitude assumida por Francisco durante aquele episódio: "Os frades que vão entre os infiéis (...) não façam nem litígios nem contendas, mas estejam submetidos a toda criatura humana por Deus (2, 13)."
Inclusive definir a sua posição como contrária à cruzada seria uma subestimação do radicalismo da sua proposta, aquela de uma sujeição absoluta, de uma pequenez absoluta. Qualquer "anti", mesmo para um bom propósito, seria como uma concessão à lógica do poder, a uma presunção, a um desejo de mudança alheia, que resulta estranho àquela renúncia a todo domínio professado por Francisco. A sua é uma opção por uma pobreza e hospitalidade evangélicas que se traduzem com a renúncia a toda reivindicação de domínio, seguindo o exemplo do Cristo pauper et hospes.
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O hóspede do Sultão. Oito séculos da viagem ao Egito de Francisco de Assis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU