05 Outubro 2018
Dívidas insuportáveis, desigualdade, especulação e ataques à democracia já não são “deformações” do sistema — mas sua própria natureza. Para superá-lo, é preciso rever e renovar os programas da esquerda.
O artigo é de Grace Blakeley, pesquisadora do Institute for Public Policy Research (IPPR) e atualmente prepara um livro sofre a financeirização da economia britânica, publicado por Outras Palavras, 29-09-2018. A tradução é de Eleuterio F. S. Prado.
Filósofos e economistas têm denunciado o caráter parasitário das finanças em relação às atividades produtivas. Platão inicia a República desafiando a ideia de que se deve sempre pagar as dívidas. Adam Smith argumentou que se devem atacar os privilégios dos proprietários de terra; Keynes, por sua vez, clamou pela “eutanásia dos rentistas”. Ora, essa narrativa é ainda válida atualmente. Na verdade, muitos economistas modernos têm argumentado que estamos entrando na era do “capitalismo rentista”, na qual os capitalistas financeiros prosperam às custas dos bons e produtivos industrialistas.
E eles têm um ponto. Acumulam-se evidências de que um montante crescente do produto econômico é apropriado por aqueles que ganham dinheiro com atividades econômicas improdutivas – isto é, monopolizando insumos para produção e cobrando taxas de juros abusivas. A “parcela rentista” na renda total aumentou de 4% para 14% entre 1970 e 2000. Os lucros financeiros se elevaram em magnitude semelhante no mesmo período. E essas duas tendências estão ligadas: grande parte da moderna atividade financeira é pouco mais do que rentismo.
Mas as análises que veem na financeirização uma “perversão” de uma forma mais pura e mais produtiva de capitalismo não conseguem apreender o contexto real. O que emergiu na economia global nas últimas décadas é um novo modelo de capitalismo, muito bem consolidado, ao contrário do que sugere uma dicotomia muito difundida. No décimo aniversário da crise financeira de 2008 que acontece agora, torna-se vital desenvolver novas ferramentas conceituais para entender o capitalismo financeiro, assim como para construir estratégias para superá-lo.
A financeirização – isto é, “a crescente importância dos mercados financeiros, motivos financeiros, instituições financeiras e elites financeiras na operação da economia” – é um processo que começou nos anos 1980 com a remoção das barreiras até então existentes à mobilidade de capital. Os fluxos globais de capital aumentaram, em consequência, de cerca de 5% do PIB mundial em meados dos anos 90 para cerca de 20% em 2007. Agora são, aproximadamente, três vezes mais céleres do que os fluxos do comércio mundial.
O aumento da mobilidade dos capitais facilitou o surgimento de grandes desequilíbrios entre países credores com grandes superávits e devedores com grandes déficits em conta corrente. De acordo com a teoria econômica dos livros didáticos, tais desequilíbrios são autocorretivos. Quando um país tem déficit, o dinheiro flui para o exterior. Se ele não retorna na forma de entradas de capital, o aumento resultante da oferta exercerá pressão para que a moeda se desvalorize. Uma moeda depreciada torna as exportações mais baratas para os consumidores estrangeiros, aumentado, assim, a demanda por suas exportações. No plano da economia global, isto deve produzir o equilíbrio.
No período que antecedeu a crise, o fato desse equilíbrio não ter sido alcançado intrigou alguns economistas. Os países com déficits em conta corrente, devido ao grande tamanho desses déficits, deveriam estar experimentando grandes depreciações cambiais. Essas desvalorizações deveriam, por sua vez, aumentar a competitividade dos bens exportáveis. Ben Bernanke, então presidente do banco central norte-americano (Fed), acusou certas economias emergentes de estarem “acumulando” poupanças para se protegerem de crises futuras, impedindo, assim, que a economia global alcançasse o equilíbrio.
De fato, os países deficitários – embora fossem fracas as demandas pelos bens que exportavam – conseguiram manter fortes as suas moedas porque experimentaram demanda forte por seus ativos – principalmente por seus ativos financeiros. A principal razão para a alta demanda por ativos do Reino Unido e dos EUA foi a desregulamentação financeira realizada pelos governos neoliberais na década de 1980. Eis que ela facilitou uma expansão dramática na provisão de crédito privado para indivíduos, empresas e instituições financeiras.
No Reino Unido, a dívida dos consumidores – composta principalmente por empréstimos hipotecários – alcançou 148% da renda disponível das famílias em 2008, o nível mais alto desde então. Enquanto os empréstimos dos bancos do Reino Unido às empresas não financeiras cresceram 50% entre 2005 e 2008, os seus empréstimos às outras instituições financeiras aumentaram em 260%. O capital do resto do mundo fluiu para bancos no Reino Unido e nos EUA, pois eles estavam propiciando retornos muito significativos.
Altos níveis de empréstimos bancários aumentaram dramaticamente a oferta monetária ampla. Esse dinheiro novo gerou, então, fortes aumentos nos preços dos ativos. No quarto trimestre de 2017, os preços dos imóveis no Reino Unido eram quase dez vezes superiores aos do quarto trimestre de 1979, enquanto que os preços ao consumidor haviam subido apenas cinco vezes no mesmo período. O índice FTSE [1] aumentou de menos de 100 pontos antes de 1980 para quase 3.500 pontos em 2007. Também foram criados novos títulos financeiros nesse período: títulos lastreados em hipotecas (MBSs, ou seja, mortgage-backed securities) e obrigações de dívida colaterizadas (CDSs, ou seja, collateralized debt obligations), os quais devem ser bem familiares para aqueles que viram The Big Short (A Grande Aposta).
O aumento dos preços dos ativos atraiu mais e mais capital internacional, criando um ciclo de autorreforço que levou muitos a acreditarem que a festa continuaria para sempre.
Mas, em última análise, esse modelo, tal como ocorreria com qualquer outro baseado na expansão contínua do crédito privado, acabou se mostrando insustentável. A combinação de mobilidade do capital e desregulamentação financeira levou ao surgimento de uma enorme bolha especulativa que finalmente estourou, resultando na Crise de 2007-8.
Os economistas ortodoxos não conseguiram ver o estouro da bolha chegando. Ao invés de olhar para a história e observar que, nas finanças, um período de calma sempre precede a vinda de uma tempestade, eles enxergaram nos preços em alta dos ativos uma prova da boa administração da economia. Alguns até chegaram a declarar o “fim dos ciclos formados por booms e estouros”. Uma crise financeira tal como a que ocorreu em 2008 simplesmente não se encaixava em seus modelos teóricos.
Alguns economistas, no entanto, previram o que iria acontecer. Nouriel Roubini, que costuma ser chamado de Dr. Catástrofe, antecipou a vinda da Crise de 2008. O livro de Ann Pettifor, A primeira crise da dívida mundial está chegando (The Coming First World Debt Crisis), foi amplamente ignorado pelos economistas em geral. Steve Keen foi ridicularizado por ensinar aos seus alunos que existia uma “bolha de dívida global”. Ora, esses economistas tinham uma coisa em comum: eles haviam lido Hyman Minsky.
De acordo com a “teoria dos dois preços” de Minsky, as regras que regem os preços dos ativos são diferentes daquelas que regem os preços dos bens e serviços. Em essência, essa teoria diz que, durante os momentos de boom, os investidores tornam-se excessivamente otimistas. E, com base em sua experiência recente de obtenção de retornos elevados e em alta, tomam ainda mais emprestado para investir nos ativos cujos preços estão subindo. Assim, por causa do incremento dos investimentos, os preços desses ativos aumentam mais e mais; em consequência da criação desse ciclo de autorreforço impulsionado pelo otimismo, os preços desses ativos são inflacionados desmedidamente.
À medida que o otimismo sobe acompanhando os episódios de fortes retornos, os investidores tomam empréstimos cada vez maiores para investir em projetos cada vez mais arriscados. Eles simplesmente preveem que os retornos continuarão a crescer. Eventualmente, o ciclo financeiro entra em uma fase que é chamada de “finanças Ponzi”: os investidores acumulam mais e mais ativos apenas porque os preços aumentam impulsionados pela especulação do passado recente. É criada, assim, uma inflação de preços de ativos; um ciclo de realimentação positiva gera uma bolha que eventualmente estoura, ocasionando então o que é chamado de um “momento de Minsky”.
O ciclo financeiro é importante pela seguinte razão: eis que o “momento de Minsky” é em geral seguido por um longo período de deflação da dívida, no qual os preços dos ativos começam a cair; ocorre, então, um pânico de venda que catalisa uma reação em cadeia em todo o sistema financeiro. Isto provoca uma deflação na economia real que produz uma queda na lucratividade e, assim, a necessidade de liquidar ainda mais ativos para quitar dívidas.
À medida que a confiança das empresas e dos consumidores é abalada, isso se reflete em quedas no emprego e na produção. A estabilidade financeira é minada por uma espiral de deflação das dívidas que reflete de modo reverso a subida do ciclo financeiro tanto em tamanho quanto em severidade. Os empréstimos perigosos antes feitos exacerbam agora essa dinâmica, reforçando a desaceleração e prolongando a recuperação. Nesse sentido, o largo período de estabilidade financeira observado antes de 2008 deveria ter sido um sinal de perigo para os economistas, não uma fonte de conforto.
Os países deficitários experimentaram um momento de Minsky, em 2008, quando os empréstimos se desaceleraram, os preços dos imóveis caíram e os ativos financeiros, tais como os MBSs e os CDSs antes mencionados, tornaram-se efetivamente sem valor. Um maciço pânico se seguiu quando os bancos descobriram de repente que muitos dos ativos em seus balanços não eram realmente ativos. Isso levou alguns dos maiores bancos do mundo à insolvência – uma situação da qual eles foram rapidamente resgatados por governos assustados.
Mas salvar os bancos não significa salvar a economia. Hoje, o Reino Unido sofre com o mais longo período de estagnação salarial desde a década de 1860. As despesas das famílias, em 2017, excederam os seus rendimentos pela primeira vez desde 1988. A produtividade parou de crescer desde 2008. Atualmente, o Reino Unido produz por hora trabalhada 13 por cento menos do que produz a média do G7. Em suma, a recuperação de 2008 foi a mais fraca desde a Segunda Guerra Mundial.
Ao invés de lidar com as questões subjacentes que levaram à crise, os formuladores de políticas arquitetaram um retorno ao mundo pré-crise. O Banco da Inglaterra, o Federal Reserve e o Banco Central Europeu injetaram enormes somas no sistema financeiro: imprimiram dinheiro para comprar a dívida pública, criaram uma nova rodada de inflação de preços de ativos, o que permitiu uma rápida recuperação dos lucros dos bancos. Mas, por mais que os bancos centrais tenham se esforçado, não há como voltar para antes de 2008.
Desde então, os fluxos globais de capital internacional diminuíram em 65%. A globalização, muitos acreditam, está agora “em retirada” devido ao colapso do setor financeiro. As empresas do Reino Unido tornaram-se poupadoras líquidas em vez de tomadoras de empréstimos. Os fluxos de investimento entre bancos contraíram-se, pois eles se tornaram muito mais avessos ao risco. A dívida das famílias está subindo novamente, mas ela está indo mais devagar do que o esperado. Grande parte dessa dívida continua sendo securitizada, embora agora a emissão de CDOs e MBSs cubra com maior probabilidade os empréstimos para compra de automóveis e as dívidas estudantis, as quais são de menores montantes do que as hipotecas.
É claro que o boom da dívida do período pré-2008 acabou, pelo menos no Reino Unido e nos EUA. Mas há muitas dívidas remanescentes. Entrou-se agora num período de capitalismo zumbi: pouca dívida nova pode ser criada para impulsionar o crescimento; não há, por outro lado, suficiente atividade econômica produtiva para pagar as dívidas pendentes. Nessa situação, apenas a manutenção de taxas de juros extremamente baixas por um período prolongado pode manter a economia caminhando.
Uma das narrativas mais comuns sobre a ascensão da financeirização vê esse desenvolvimento como produto da vitória do capital financeiro sobre o industrial. De acordo com essa perspectiva, o capital industrial no Norte Global sofreu uma compressão em seus lucros na década de 1970, devido ao aumento dos custos dos insumos e da crescente concorrência do Sul Global. Para o capital industrial enfraquecido as vias tradicionais de acumulação se mostraram, então, fechadas; a especulação financeira emergiu, em consequência, como uma alternativa mais lucrativa.
No entanto, como argumentou Costas Lapavitsas, essa narrativa abusa por fazer uma separação entre o capital financeiro e o capital industrial. As finanças não devem ser “tratadas como fenômenos superficiais situados no topo das atividades econômicas ‘reais’ que abrangem a produção e a troca de mercadorias”, mas como um subsistema que apoia de modo essencial a acumulação capitalista. A financeirização não representa uma perversão de um capitalismo que funciona bem; em vez disso, consiste na adaptação da classe capitalista às crescentes contradições evidentes até mesmo na economia política capitalista.
Atualmente, não se está testemunhando a “ascensão dos rentistas”; ao invés disso, todos os capitalistas – industriais e não – transformaram-se em rentistas.
A manifestação atual desse fenômeno é a ideologia da maximização do valor ao acionista. Desde a década de 1980, a participação acionária tornou-se cada vez mais concentrada nas mãos dos intermediários financeiros, tais como os fundos hedge e os fundos de pensão. À medida que esse processo se intensificou, foram criados incentivos para os executivos corporativos distribuírem dinheiro aos acionistas no curto prazo, em vez de investi-lo de modo a elevar a lucratividade da empresa no futuro.
De fato, as corporações não financeiras cada vez mais se engajam em atividades financeiras para garantir os maiores retornos possíveis. O fato de que este seja um modelo insustentável – pois depende da alavancagem crescente e do aumento da distribuição de lucros em comparação com os investimentos na produção futura – está fora de questão. A produção nunca foi o objetivo do empreendimento capitalista, mas sim o lucro. E a financeirização da corporação não financeira tem se mostrado uma excelente maneira de maximizar o lucro.
Algumas famílias mais abastadas também conseguiram extrair certos benefícios da financeirização da economia. A globalização foi uma desculpa conveniente para que ocorresse uma generalizada repressão salarial no Norte Global. O problema de superacumulação assim criado – isto é, o fato de que os trabalhadores deixam de receber o suficiente para comprar aquilo que os capitalistas lhes ofertam – foi resolvido por meio da expansão do endividamento. Os expressivos aumentos nos empréstimos ao consumidor entre 1979 e 2007 ampliaram a sensação subjetiva de prosperidade, permitindo que as pessoas comprassem artigos de luxo, tais como carros, celulares e microcomputadores produzidos por mão de obra superexplorada no Sul Global.
Boa parte desse endividamento foi usado para comprar ativos imobiliários, os quais aumentaram em valor à medida que mais e mais pessoas os adquiriam. Uma fração da sociedade, uma fatia importante do eleitorado obteve ganhos de capital, beneficiando-se, assim, materialmente, do novo modelo econômico.
A classe dos “minicapitalistas” tinha um interesse material na continuidade da inflação dos preços dos ativos baseada em crescente endividamento. A privatização das aposentadorias contribuiu para que esse modelo se expandisse de maneira formidável. Juntos, a “democracia dos detentores de propriedade” e o “capitalismo dos fundos de pensão” deram sustentação para um acordo entre o capital financeiro e as classes médias, o qual durou até 2008.
O próprio governo britânico entrou também no processo da financeirização. Por exemplo, a partir dos anos 1990, ele passou a se valer das chamadas “iniciativas de financiamento privado”. Quando o governo da Grã-Bretanha queria fazer uma obra, ele terceirizava a sua execução para uma empresa privada. Esta fornecia também o capital que dava suporte à execução do projeto e o governo passava a pagar por esse financiamento ao longo das décadas seguintes.
Tais “iniciativas” são formas de trocar dinheiro público por dinheiro privado: a privatização dos sistemas de aposentadorias, a mercantilização do ensino superior e a privatização dos serviços de saúde retiram passivos das contas públicas e os transformam em ativos de indivíduos e de investidores privados. A política de austeridade também pode ser vista como uma extensão desse sistema.
Os Estados recorrem ao financiamento privado procurando manter rigor fiscal. Parte da razão pela qual os governos consideram necessário se mostrar austeros é porque precisam indicar aos investidores privados que honrarão as suas dívidas. A demanda por títulos do governo é inversamente correlacionada com os rendimentos que proporcionam: quanto menor a demanda, maiores serão os pagamentos de juros. Isso dá aos mercados um enorme poder para disciplinar os Estados que falham na manutenção da condição de bons pagadores.
Os Estados que não implementam as políticas neoliberais podem ser punidos mediante o rebaixamento do valor de seus títulos (e por meio de corridas contra as suas moedas). Ora, isto dá aos investidores internacionais poder de determinar as políticas internas dos países democráticos. Os Estados são forçados a praticarem políticas econômicas neoliberais, não importa se isto, na verdade, vai reduzir a credibilidade deles no longo prazo. Eis que a temporalidade inerente ao capitalismo financeiro é mais curta do que em qualquer outro período da história.
Todos esses processos de financeirização no Norte Global são dependentes da superexploração no Sul Global. Tendo de enfrentar crescentes custos de insumos e trabalhadores cada vez mais militantes no Norte Global, os capitalistas aproveitaram a queda dos custos de transporte nos anos 70 e 80 para transferir a produção para lugares menos desenvolvidos da economia global.
Em certas regiões, como na China, essa transferência da produção produziu uma transformação fundamental nas relações econômicas, assim como gerou o desenvolvimento de uma classe capitalista doméstica. Em outras, tal processo apenas redundou em maiores níveis de extração de valor por parte dos capitalistas do Norte Global. Muitos Estados recentemente independentes do Sul Global não tiveram poder para impulsionar uma indústria nacional, tal como o fez o Estado chinês. O investimento estrangeiro direto feito pelas multinacionais nesses países se resumiu em extrair insumos mercantis e em arrancar mais-valor dos trabalhadores. Se uma parte deste mais-valor foi paga aos capitalistas e funcionários locais por tal privilégio, uma outra parte foi repatriada como lucro para os países do Norte Global.
Os processos capitalistas de extração de valor, visíveis no nível internacional, também se mostram no nível subnacional, ou seja, no interior das economias, agora financeirizadas. As entradas de capital permitem aos países deficitários manterem fortes as suas moedas, o que sempre enfraquece as suas indústrias exportadoras. Elas também não deixaram de produzir concentrações cada vez maiores de poder e de riqueza na esfera financeira nesses países.
Economias superaquecidas em certas regiões e estagnadas em outras é resultado inevitável do processo de integração assimétrica. Enormes aglomerados de negócios financeiros tomam conta de muitas economias, pouco se interessando pelo que acontece nas nações que as abrigam. Os governos subjugados pelas finanças ficam felizes permitindo que tudo continue assim… O papel imperial de Londres na economia global não traz apenas receitas tributárias para a Grã-Bretanha, mas também orgulho nacional para muitos ingleses.
Como Marx argumentou, cada mudança do capitalismo apenas chuta a lata mais para a frente na estrada. A quebra de 2008 apenas aflorou uma crise estrutural do capitalismo financeirizado. Mas o estado recessivo em que se afundou desde então a economia global, em particular, as economias do Norte Global, é também resultado de uma incapacidade de superar as contradições do atual modelo, a fim de avançar para algo novo. Os dias de glória da globalização financeira, entretanto, já terminaram.
Mas, os momentos de crise também são momentos que trazem novas oportunidades. A sustentação da economia política capitalista tardia no Norte Global exigiu uma contínua expansão imobiliária destinada às classes médias, assim como uma constante inflação dos preços das habitações. No mundo criado pela quebra de 2008, entretanto, não é mais possível contar com essas contínuas expansões das dívidas, em parte devido às mudanças na regulamentação bancária. Ora, isso criou um forte obstáculo político para a classe dominante, já que a inflação dos preços dos ativos desempenhou um papel chave na sustentação política do neoliberalismo. Não é possível criar “minicapitalistas” sem fornecer a eles um capital que parece ficar cada dia mais polpudo!
Abundam as contradições e não apenas no campo da habitação. As famílias ficaram tão endividadas que é preciso manter as taxas de juros permanentemente baixas para evitar outra crise; contudo, taxas de juros permanentemente baixas levam a níveis mais altos de endividamento. Quando a próxima crise chegar, os bancos centrais não conseguirão afrouxar muito mais a política monetária, de tal modo que o choque econômico resultante será muito pior.
Conscientes de que o modelo atual é insustentável, as empresas não estão investindo e, com isso, não aumentam os salários. Em vez disso, estão usando os lucros obtidos com o endividamento dos consumidores para aumentar a remuneração dos acionistas e para se engajarem em atividades financeiras, sejam elas aplicações de hedge, investimentos imobiliários ou, até mesmo, como no caso do Google e da Amazon, compras das dívidas de outras corporações – agindo, assim, em essência, como se fossem bancos. O fracasso em investir na produção, por sua vez, atua como um freio adicional para o crescimento econômico atual e futuro.
O crescente endividamento do Estado também contribui para o agravamento desse quadro. Os economistas keynesianos tradicionais argumentam que para sair dessa situação é preciso simplesmente usar as políticas fiscais, gerenciando a demanda. É assim, segundo eles, que se resolve o problema da superacumulação. Mas a dívida do governo praticamente dobrou durante a crise financeira, principalmente devido ao resgate dos bancos. Ora, agora não se tem apenas um problema econômico, mas também um problema político.
Vender quantias cada vez maiores de dívida pública a investidores privados implica dar cada vez mais poder aos credores. E estes se tornam ainda mais capazes de disciplinar os governos a adotarem as políticas econômicas que lhes são favoráveis. A Grécia é apenas o exemplo mais extremo da crueldade do setor financeiro. Uma liquidação em massa da dívida do governo do Reino Unido criaria uma enorme crise para a economia britânica – mas essa ação seria consistente com a lógica subjacente da austeridade. Mas como a política da austeridade apenas aumenta o peso da dívida – pois abate o crescimento econômico e empobrece grandes setores da população –, ela exacerba a crise de superacumulação.
A questão que permanece é: a esquerda pode produzir uma saída? Pela primeira vez em muitas décadas, surge agora uma oportunidade para construir uma coalizão socialista baseada nos interesses materiais das classes não capitalistas no Norte Global. Baixos níveis de investimento estão gerando declínio no aumento da produtividade e estagnação dos salários – fatores que contribuem para o problema do endividamento dos consumidores acima descrito.
Qualquer pessoa que não possua capital – ou seja, a maior parte da população –estará pior no futuro previsível se o atual modelo econômico continuar existindo. Ora, a maioria já sabe disso. Mesmo aqueles que possuem um pouco de capital estão cada vez mais espremidos. A incapacidade do sistema de sustentar o aumento da riqueza com base em ganhos apoiados por dívida tornou-se dolorosamente óbvia a partir de 2008. Depois que a bolha da dívida estourou, o capitalismo tardio passou a trazer como resultado significativa queda nos padrões de vida, aumento da desigualdade e crescimento da turbulência política.
Essas mudanças estão por trás do surgimento de alternativas de esquerda, tais como Jeremy Corbyn na Grã-Bretanha e Bernie Sanders nos Estados Unidos. Mas a esquerda precisa fazer ainda mais para promovê-las. A maioria das pessoas sabe que o capitalismo está quebrado, mas poucas sabem o que fazer. A narrativa econômica crítica tem de ir além da afirmação de que “a austeridade é ruim”; ela precisa de um diagnóstico mais amplo das condições estruturais que levaram a economia a entrar em colapso em 2008 e que a mantiveram apenas arfando desde então.
O Manifesto Trabalhista [2] de 2017, considerando as restrições sob as quais foi redigido, pode ser considerado excelente, mas ele representa apenas o prolongamento de um acordo socialdemocrata que já está ruindo sob as tensões da financeirização em todo o Norte Global. Recentemente, John McDonnell [3] dirigiu-se a um grupo de banqueiros dizendo: “quando entrarmos no governo, vocês todos entram conosco”.
Nos próximos anos, a esquerda deve se concentrar nas questões econômicas centrais de nosso tempo, mostrando que o sofrimento da maioria das pessoas desde 2007 deve ser atribuído à financeirização da economia. É preciso mostrar que os governos anteriores estiveram muito ocupados protegendo os interesses das finanças ao invés de apoiar o atendimento das necessidades das pessoas comuns. É preciso adotar uma política que desafie a hegemonia do capital financeiro, revogando seus privilégios e devolvendo os poderes do investimento ao controle democrático. Ao fazê-lo, a esquerda se tornará capaz de ir além do capitalismo.
Notas
[1] N. T.: O FTSE é um índice calculado pela The Index Company, propriedade conjunta do The Financial Times e do London Stock Exchange, que representa um pool 100 ações representativas da Bolsa de Valores de Londres.
[2] Ver https://labour.org.uk/manifesto/.
[3] N. T.: Político do Partido Trabalhista que foi apontado, em 2015, como ministro da fazenda do gabinete sombra, uma prática tradicional do processo político na Grã-Bretanha.
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Jacobin, nº 30, 2018.
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