14 Março 2018
"A análise do conjunto das fontes revela o caráter inadequado da antiga categoria de helenização: as primitivas comunidades cristãs, por meio da adoção da língua grega, pretendiam reconectar-se idealmente à experiência do judaísmo helenístico da área alexandrina ou ao explícito programa de mediação entre as Escrituras judaicas e as instâncias fundamentais da filosofia e da cultura gregas; pois bem, tanto no lado judeu quanto no lado cristão, na condução deste processo de mediação, encontramos a tendência de modificar ou mesmo corrigir o alcance semântico de alguns substantivos retirados da tradição grega; não que isso signifique a negação da influência helênica no núcleo original da mensagem bíblica, no entanto, a vitalidade da nova fé contribuiu para legitimar alguns processos de transformação cultural, que chegaram para alcançar efeitos de porte epocal", escreve Alfio Cristaudo, presidente do Consiglio Comunale Pedara, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 10-03-2018. A tradução é de Ramiro Mincato.
A lição de Bento XVI, em Regensburg, dia 12 de setembro de 2006, entregou à reflexão teológica o aprofundamento de algumas questões ainda hoje debatidas: a helenização do Cristianismo e, portanto, a legitimidade ou menos das hodiernas tentativas de deselenização da mensagem do Evangelho, os limites da aplicação do método histórico-crítico, as consequências anexas ao valor universal da profissão de fé em Cristo, sobretudo no que se refere à relação com outras religiões e, finalmente, à sua inculturação. A base para reafirmar o vínculo intrínseco, considerado providencial, que relaciona estruturalmente a fé cristã com a filosofia grega, foi reconhecida pelo Papa Ratzinger no uso joanino do substantivo lògos, relido de acordo com a semântica da racionalidade.
No entanto, precisamente, a retomada deste termo pelo autor do prólogo do quarto evangelho é um dos elementos sintomáticos para avaliar o problema da chamada helenização do cristianismo: a questão é entender se a mensagem evangélica recebeu passivamente a influência da cultura helênica , a ponto de desnaturar-se, ou se, na assunção de termos e categorias pertencentes à bagagem conceitual do contexto cultural greco-romano, a primeira comunidade cristã tenha filtrado ativamente as categorias linguísticas usadas, levando em conta as necessidades primárias da fé professada.
Mediante investigação histórica e literária que parte da filosofia grega, com especial atenção ao platonismo, estoicismo e ao médio platonismo, para alcançar os apologistas do século II, o desenvolvimento semântico dos termos noùs, lògos e pnèuma permite retraçar a formação das definições dogmáticas professadas pela antiga Igreja, investindo os campos da teologia trinitária, da cristologia, da antropologia, bem como da angelologia e da doutrina da criação.
A análise do conjunto das fontes revela o caráter inadequado da antiga categoria de helenização: as primitivas comunidades cristãs, por meio da adoção da língua grega, pretendiam reconectar-se idealmente à experiência do judaísmo helenístico da área alexandrina ou ao explícito programa de mediação entre as Escrituras judaicas e as instâncias fundamentais da filosofia e da cultura gregas; pois bem, tanto no lado judeu quanto no lado cristão, na condução deste processo de mediação, encontramos a tendência de modificar ou mesmo corrigir o alcance semântico de alguns substantivos retirados da tradição grega; não que isso signifique a negação da influência helênica no núcleo original da mensagem bíblica, no entanto, a vitalidade da nova fé contribuiu para legitimar alguns processos de transformação cultural, que chegaram para alcançar efeitos de porte epocal.
Na passagem do termo noùs do âmbito da filosofia grega para aquele judaico, bem como na recepção cristã, o acolhimento da fé bíblica comportou a redução dos noùs ao nível das realidades criaturais e contingentes. O substantivo pnèuma abandona gradualmente uma acepção material para passar a indicar a dimensão transcendente e incorpórea: de fato, no epistolário paulino, pnèuma designa a irrupção da potência divina em oposição à carnalidade pecaminosa do homem terrenal, aspecto ulteriormente exasperado pela mentalidade gnóstica através da identificação da natureza pneumática com a realidade divina e excedente, estruturalmente estranha, até mesmo hostil à sensibilidade e à matéria. Finalmente, se na filosofia grega o lògos é o instrumento para a comunicação do pensamento, o prólogo do quarto evangelho associa-se a retomada deste termo à concepção veterotestamentária da palavra criadora, refundida junto à representação da Sabedoria personificada: assim, o substantivo lògos foi usado como título pessoal do filho de Deus pré-existente. Os apologistas, para descrever a geração do Filho pelo Pai, pressupõem o conhecimento do par categorial lògos endiàthetos e lògos prophorikòs (ou seja, "interior" e "proferido") formalizados em meados do segundo século antes da era cristã, no contexto da diatribe entre Estoicos e acadêmicos sobre o problema da racionalidade animal: desta forma, o duplo estágio do raciocínio, concebido originalmente internamente no diálogo da alma consigo mesma e depois proferido, constitui um termo analógico para explicar a relação que liga o Logos mediador a Deus .
Em suma, o desenvolvimento semântico dos substantivos noùs, lògos e pnèuma mostra que a formação do dogma se configura como um processo criativo, caracterizado pela desativação semântica e pela sucessiva assunção dos conceitos e categorias pertencentes ao imaginário cultural coletivo. Além disso, se os apologistas acreditaram expressar adequadamente a relação que liga o Logos ao Pai, de acordo com o modelo da dupla fase, depois superado por Orígenes através da introdução do conceito de geração eterna, a profissão de fé niceno, defronte ao perigo representado pelo heresia ariana, interpretou a relação entre Deus e o Logos recorrendo à categoria de consubstancialidade: assim, o modelo da dupla fase, com as mudanças nas condições da vida cristã, tornou-se tão inadequado a ponto de ser explicitamente rejeitado por Atanásio e formalmente condenado como herético pelo Concílio de Sirmio, em 351.
As diferentes fases destacadas pelo exame histórico das fontes podem levar a concluir que o desenvolvimento do dogma coincide com a superposição de elementos estranhos à fé evangélica original; de fato, os mesmos resultados, se considerados de acordo com um critério de compreensão teológica, referem-se à existência do único sujeito Igreja, que prossegue na tentativa de compreender e definir melhor a identidade de Cristo, especialmente em relação ao dado da fé na unicidade de Deus: nesta operação, os mestres cristãos adotaram, de tempos em tempos, os modelos linguísticos e categoriais considerados mais apropriados. E isso com o único propósito de expressar a mesma fé na proclamação do Cristo do Evangelho, o enviado de Deus para a salvação do mundo.
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Da filosofia helenística à teologia cristã. Formação do dogma como processo criativo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU