18 Janeiro 2018
“O que alimentava a fé de Müntzer era aquele espiritualismo radical que, embora conjugado de várias formas, conheceu inúmeras outras vozes na grande crise religiosa do século XVI e que, no seu caso, conotou-se com o princípio de que só o sofrimento – como testemunha de absoluta fé cristã – oferece a garantia de verdade daquela revelação interior do espírito e, portanto, define a Igreja dos eleitos, pronta para estreitar um novo pacto com Deus.”
A análise é do historiador italiano Massimo Firpo, professor da Universidade de Turim e da Scuola Normale Superiore di Pisa, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 14-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nascido de um artesão na Alemanha central, não muito longe de Leipzig, Thomas Müntzer foi ordenado padre em 1513. Homem de notável cultura (sabia latim, grego e hebraico), chegou a Wittenberg em 1519, em plena rebelião do protesto de Lutero, que o envolveu em primeira pessoa, mas do qual se distanciou de modo cada vez mais claro, assim que o viu estreitar aquela aliança totalmente política com os príncipes alemães, que certamente foi um elemento decisivo da difusão e da consolidação da Reforma, mas, ao mesmo tempo, extinguiu todas as suas reivindicações de renovação social.
O seu distanciamento de Lutero foi rápido e chegou bem logo a uma clara ruptura, em que as fórmulas iniciais respeitosas e até amigáveis, além da convicção de fazer parte de um projeto comum de renovação cristã, dariam lugar à hostilidade, ao conflito, ao insulto: ao “frade porco de engorda” ao “doutor mendaz” de Müntzer contra Lutero, e ao “profeta Thomas” e ao “Satanás de Allstedt” de Lutero contra Müntzer.
Na realidade, como a edição aqui resenhada e a sua breve introdução dão a entender muito bem, eram muito distantes entre si os pressupostos religiosos e teológicos da fé de Lutero em relação com a de Müntzer: uma totalmente fundamentada na palavra de Deus entregue aos textos da Revelação, em um escrituralismo bíblico (sola Scriptura) que não teme chegar ao paradoxo da predestinação; a outra, por sua vez, na voz de Deus que ressoa no coração dos eleitos, dando-lhes a conhecer a verdade interiormente, sem qualquer mediação.
De fato, o que alimentava a fé de Müntzer era aquele espiritualismo radical que, embora conjugado de várias formas, conheceu inúmeras outras vozes na grande crise religiosa do século XVI e que, no seu caso, conotou-se com o princípio de que só o sofrimento – como testemunha de absoluta fé cristã – oferece a garantia de verdade daquela revelação interior do espírito e, portanto, define a Igreja dos eleitos, pronta para estreitar um novo pacto com Deus.
Por isso, o seu espiritualismo e a sua mística do sofrimento não tardaram a assumir conotações subversivas, alimentadas por aquela profunda necessidade de justiça que, desde o ingresso na vida clerical, havia lhe imposto viver a sua fé ao lado dos humildes, dos pobres, daquele universo camponês que, na Alemanha do início do século, era jogada na miséria pela crise econômica e pela contínua acentuação da exploração feudal da nobreza e dos privilégios dos patriciados urbanos.
Daí a rápida evolução do compromisso religioso de Müntzer em relação a posições religiosas e políticas cada vez mais radicais, até assumir a liderança de uma imponente revolta camponesa que, entre 1524 e 1525, irrompeu em vastas regiões da Alemanha, no rastro daquela foi definida como a “revolução do homem comum”. Uma revolta interpretada pela historiografia marxista, a partir de um célebre ensaio de Friedrich Engels de 1850 até o colapso da URSS, como uma verdadeira revolução proletária contra uma suposta revolução “burguesa” iniciada e depois traída por Lutero.
Uma imagem falsificada de Müntzer, que também chegou a recentes sucessos literários, como demonstra Martinuzzi, que, com base em uma rigorosa análise das fontes (“único antídoto contra leituras parciais ou ideológicas”), liberta-a dos velhos panos do “teólogo da revolução” ou, pior ainda, do “fanático do Apocalipse”, para repropor, em vez disso, o seu caráter concorrencial e alternativo em relação ao de Lutero, quando a Reforma ainda estava em uma fase incoativa, aberta a soluções múltiplas, e em que não eram nada unívocas as vozes daqueles que a promoviam e em que eram diferente os resultados a que aspiravam.
O debate permanece aberto, mas os estudos de Martinuzzi, começando pela excelente tradução de textos muito difíceis, escritos em um alemão difícil e repleto de imagens, oferecem uma contribuição preciosa e impedem que se reduza Müntzer a um rebelde apocalíptico, a um revolucionário ante litteram, para repropor, em vez disso, a sua evolução religiosa, moral, política no tumultuado contexto histórico em que ele teve a sorte de viver.
Tendo se mudado para Zwickau em 1520 com uma benevolente carta de apresentação de Lutero, aqui ele se ligou a outros teólogos radicais, animados por perspectivas apocalípticas, para passar, pouco tempo depois, para Praga, onde publicou em 1521 uma “Declaração sobre a causa boêmia” (muitas vezes apresentada com o título de “Manifesto de Praga”), em que se lançava com violência contra aqueles que jogavam “a Escritura ao povo, assim como se costuma jogar o pão aos cães”, esquecendo-se de que apenas aos eleitos, àqueles que foram permeados “pelo menos sete vezes pelo Espírito Santo”, é dado “compreender o Deus vivo”.
Mas foi especialmente na cidadezinha de Allstedt, onde ele foi nomeado pároco, que, em pleno acordo com a comunidade e os seus magistrados, Müntzer promoveu uma reforma litúrgica coerente com o seu espiritualismo radical e capaz de obter um amplo consenso popular, até mesmo nos vilarejos circunstantes, nos quais a sua pregação atraía um crescente número de fiéis.
A tensão decorrente de algumas intemperanças iconoclastas dos seus seguidores em um santuário mariano próximo, no entanto, acabou enfraquecendo o apoio da classe dominante de Allstedt e acentuando suspeitas e hostilidades por parte dos próprios duques da Saxônia.
Convocado à sua presença para responder às acusações de que havia sido alvo, Müntzer pronunciou um célebre discurso sobre o segundo capítulo de Daniel, a chamada “Pregação aos príncipes”, na qual polemizava duramente contra as “fofocas” de Lutero e ousava afirmar que a espada do poder “é necessária para eliminar os ímpios”, mas que, se não for usada para esse fim”, “será tirada” brutalmente das mãos dos poderosos, porque Deus ordena matar os “governantes ímpios”.
Tendo-se ligado a alguns líderes do anabaptismo alemão, Müntzer não tardou em entrever na revolta camponesa o braço armado de Deus contra os abusos da Igreja e a iníqua prepotência dos príncipes, tornando-se em poucos meses, em 1524, o guia de um vasto e desarticulado mundo popular – camponeses, operários, artesãos – que tinha se iludido de encontrar na Reforma Protestante uma mensagem de renovação cristã capaz de interpretar também as suas necessidades de justiça e as suas esperanças de um futuro melhor.
“Es ist Zeit”, anunciou Müntzer, “chegou o tempo”, “Deus afiou a sua foice”, enquanto Lutero dirigia aos príncipes alemães o seu virulento “Contra as hordas ímpias e perversas dos camponeses”, nas quais os exortava a cortar no sangue aquela revolta. Isso aconteceu na terrível “batalha do Senhor” de Frankenhausen, de 15 de maio de 1525, um verdadeiro massacre, em que milhares de camponeses foram despedaçados, e o próprio Müntzer foi capturado para ser, em breve, horrivelmente torturado e morto.
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O frade radical contra a Reforma. Artigo de Massimo Firpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU