31 Outubro 2017
“Sola fide, somente a fé pode salvar, não as obras, não os supostos e risíveis méritos dos homens, que não podem existir diante de Deus. Compreende-se que a prática das indulgências lhe parecia não só escandalosa, mas também insinuante de erros gravíssimos entre os fiéis. Daí o clamoroso protesto de Lutero.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Firpo, diretor de Rivista Storica Italiana, membro da Academia de Ciências de Turim e da Academia Nacional dos Linces, de Roma. Foi professor de História Moderna nas universidades de Cagliari, de Turim e na Scuola Normale Superiore di Pisa.
O artigo foi publicado por La Stampa, 29-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não está historicamente confirmado que Lutero, às vésperas de Todos os Santos de 1517, tenha afixado na porta da igreja do Castelo de Wittenberg as célebres teses com as quais condenava a venda das indulgências.
Um texto em latim com o qual ele solicitava uma discussão entre doutos teólogos sobre os graves erros implícitos no fato de crer que, desembolsando dinheiro, se pudesse apagar não só a pena, mas também a culpa dos pecados, comprar, assim, o perdão divino e até fazer com que saíssem do purgatório as almas dos entes queridos.
Uma doutrina (e ainda mais uma práxis) aberrante, que transformava a fé cristã em um comércio e contrastava radicalmente com os resultados a que tinha chegado a profunda crise religiosa que atormentara Lutero nos anos anteriores, nos quais, longe de aplacar as suas inquietações religiosas, a ascese monástica as havia levado ao paroxismo.
Por mais que se esforçasse para ser um bom frade, de fato, o temor de ter que ser finalmente julgado pela justiça de Deus o deixava consternado, na consciência de que nada daquilo que poderia fazer o tornaria digno de ser absolvido por essa justiça. Foi a assídua meditação das cartas paulinas que finalmente lhe fez entender que a justiça de que a Bíblia fala não é aquela com a qual Deus onipotente julga os homens, contaminados pelo pecado original e, portanto, irremediavelmente pecadores, mas sim aquela que ele dá gratuitamente, lhes “imputa”, contanto que tenham fé no exclusivo valor salvífico do sacrifício da cruz, isto é, creiam que só a fé na redenção de Cristo pode torná-los justos aos olhos do Onipotente.
Sola fide, somente a fé pode salvar, não as obras, não os supostos e risíveis méritos dos homens, que não podem existir diante de Deus. Compreende-se que a prática das indulgências lhe parecia não só escandalosa, mas também insinuante de erros gravíssimos entre os fiéis. Daí o seu clamoroso protesto, que não se tornaria uma revolução se os progressos da imprensa não tivessem permitido difundir em toda a Alemanha milhares de cópias daquelas teses incendiárias, imediatamente traduzidas para o alemão.
Um sucesso impressionante, que revela o descrédito em que a Igreja Romana tinha se afundado com as práticas simoníacas da Cúria e os infinitos abusos, a ignorância abissal, a corrupção endêmica do clero e o absenteísmo pastoral de bispos e párocos. A defesa daquelas teses e, mais em geral, dos pressupostos teológicos sobre as quais elas se baseavam levaria Lutero a aprofundar a sua reflexão teológica e a tornar cada vez mais clara a sua fratura com o papado, no qual acabou identificando e denunciando o Anticristo.
Em 1520, a publicação dos textos mais célebres de Lutero, “A liberdade do cristão”, “O cativeiro babilônico da Igreja” e “À nobreza cristã da nação alemã” teve como consequência a sua condenação com a bula Exsurge Domine, que ele queimou na praça de Wittenberg junto com o Código de Direito Canônico.
No ano depois, convocado à Dieta de Worms, ele se recusou a se retratar das suas doutrinas, pronunciando perante o imperador Carlos V as célebres palavras: “Aqui estou. Não posso fazer de outro modo”. Banido e excomungado, ele teve que desaparecer de circulação, escondido pelo eleitor da Saxônia em um castelo, onde começou a sua tradução da Bíblia.
Ele morreria em 1546, aos 64 anos, depois de ter escrito centenas de cartas, opúsculos, tratados para defender a sua doutrina e construir uma nova Igreja, dando o seu mérito apenas à palavra de Deus que ele se limitaria a dar voz: “Deus fez tudo isso, enquanto eu bebia cerveja em Wittenberg”, afirmaria pouco antes de morrer.
Junto com ele e depois dele, viriam outros reformadores, Zuínglio em Zurique e Calvino em Genebra, os anabatistas, os sete radicais de várias orientações, os antitrinitários, os socinianos, os puritanos, os quakers, os metodistas etc. Lutero tinha pensado em anunciar a verdadeira fé baseada apenas na autêntica palavra de Deus (sola Scriptura), mas a frente protestante não tardou em se dividir e se desagregar.
Foi ele quem rompeu por primeiro a milenar unidade da christianitas medieval e quem deu origem a um cristianismo plural. A própria Igreja romana, embora com um grande atraso, adquiriria novas energias justamente a partir da reação contra a Reforma. Surgiria daí um “século de ferro” de disputas, de cruéis lutas internas, de guerras sanguinárias, de atrozes perseguições, mas incapazes de debelar essa pluralidade de seitas e confissões.
Embora muito fatigantemente, a tolerância acabaria se impondo, e isso precisamente graças ao solitário e corajoso protesto de Lutero, que nunca quereria a afirmação daquele cristianismo plural, que se tornou, enfim, pluralista.
Mais uma confirmação, se é que fosse necessária, daquela heterogênese dos fins que, às vezes, parece se configurar como uma lei inexorável da história.
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Lutero, a pureza da fé em um mundo corrupto. Artigo de Massimo Firpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU