14 Novembro 2017
Este documento foi elaborado com a participação financeira da União Europeia. O seu conteúdo é de responsabilidade exclusiva de Cáritas de Tefé e CIMI Tefé, não podendo, em caso algum, considerar que reflita a posição da União Europeia.
O texto é de Chantelle Teixeira, advogada, com revisão de Lígia Apel, publicado por EcoDebate, 13-11-2017.
Outubro 2017
Ailton Krenak é uma liderança indígena que participou da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Federal de 1988 e protagonizou uma das cenas mais marcantes do evento. Em protesto às ameaças aos direitos indígenas que, à época, a Assembleia Constituinte apresentava, Krenak pintou o rosto com a tinta preta de jenipapo enquanto falava.
“A história do Brasil tá andando para trás”, é um alerta que faz o líder indígena ao analisar a política indigenista do país nos últimos 30 anos, em 2014, ao participar do filme “Índio Cidadão?”1. Ailton recorda que os povos indígenas, hoje, não possuem representatividade no poder legislativo federal para frear as investidas da bancada ruralista2.
No mesmo filme, Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), analisa que vivemos momentos de ameaçadores retrocesso. “Ela avalia os últimos 30 seguidos e divide o período em três fases”: 1. Antes da Constituição Federal onde se lutava pela garantia dos direitos; 2. Depois da Constituição Federal, quando a luta passa a ser pelo cumprimento dos direitos; e 3. Agora, quando deve-se lutar para não perder o que se conquistou. Hoje, a luta é “pela permanência desses direitos”.
O Congresso Nacional, órgão que tem a função constitucional de, entre outras, legislar sobre populações indígenas, assume uma das formações mais conservadoras desde a ditadura militar. Ali, uma série de projetos de lei estão colocados em pauta que ameaçam os direitos dos povos indígenas do país. Direitos esses que foram conquistados com muita luta na Assembleia Constituinte, que consolidou a Constituição Cidadã de 1988. Nela, centenas de lideranças indígenas estiveram em Brasília para obrigar o Estado a reconhecer e respeitar seus modos de vida e seus territórios tradicionais.
O cenário político atual para os povos indígenas é de ameaças e retrocessos de direitos, principalmente, àqueles que recaem sobre seus territórios tradicionais e sagrados, direito fundamental para a sobrevivência física e cultural desses povos. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas e legaliza o marco temporal, teve o texto substitutivo do relator, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), aprovado pela Comissão Especial na Câmara em 2015.
A PEC 215, no momento, aguarda votação no Plenário da Câmara dos Deputados, onde tem de ser aprovada por três quintos dos deputados, em dois turnos. Ou seja, deve obter 308 votos em duas votações distintas e, se aprovada, segue para o Senado.
Nos primeiros meses do mandato de Michel Temer, o povo brasileiro teve uma amostra das prioridades e interesses refletidos em seu governo: privilégios para as elites econômicas às custas dos direitos do povo. A emenda constitucional 95/20163, aprovada em 15 de dezembro do ano passado, congelou as despesas do Governo Federal, com cifras corrigidas somente pela inflação, por 20 anos. A justificativa para limitar os gastos públicos foi de reverter a crise econômica que o país enfrentava. Mas, de fato, ela compromete a efetivação de direitos através de políticas públicas como saúde e educação, e reforça a continuidade da postura subserviente e serviçal aos interesses financeiros dos conglomerados empresariais, de capital nacional e internacional.
A medida “elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos, Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública”, denunciou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em nota4.
No atual governo, a FUNAI teve um corte orçamentário de R$ 60,7 milhões e sobram apenas R$ 22 milhões até o final do ano (2016) no caixa do órgão. Como esperar que a Funai atue efetivamente com menos dinheiro que teve para se manter nos quatros primeiros quatro meses do ano? Evidentemente, o desmonte da FUNAI é prioridade na agenda anti-indígena que tomou conta do governo federal e também do Congresso Nacional. Nela, iniciativas como a PEC 215 (que transfere o poder de demarcar terras indígenas da Presidência da República para o Congresso) e a CPI da Funai, que buscou a criminalização de lideranças indígenas e organizações da sociedade civil, ganham cada vez mais força5. O governo federal tem adotado medidas sistemáticas que visam impactar diretamente os direitos territoriais dos povos indígenas e ao meio ambiente equilibrado e sadio em prol desenvolvimento econômico baseado no capital.
Segundo Nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denominada “O golpe chega na FUNAI”, de setembro de 2016, está previsto para este ano o menor valor de aplicação livre dos últimos anos. E este corte afetará, principalmente, os direitos territoriais dos povos indígenas. “O recurso para o programa de demarcação e fiscalização das terras indígenas caiu de 17 milhões de reais em 2007 para 15 milhões em 2017, uma redução de 15%. Por isso, à PEC 241 bem cabe o nome de PEC da morte. Mas é desde este ano, de 2016, que a Funai realiza as suas atribuições institucionais no limite. Ela corre o risco de não terminar o ano em funcionamento em decorrência da falta de recursos financeiros para cobrir as atividades fins, além da área meramente administrativa”, denuncia a APIB.
Ninguém foi consultado, sequer comunicado, mas saiu estampado nas páginas do Diário Oficial da União (DOU), no mês de agosto, decreto6 publicado por Michel Temer que extinguiu a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca)7 cuja área é de 46.450 Km², localizada entre os Estados do Amapá e do Pará, e possui alto potencial de ouro e outros metais preciosos. A reserva faz limite com a Terra Indígena Wayãpi e a Terra Indígena Paru’Este, e também com sete unidades de conservação, todos sobrepostos à área total da reserva.
Após a publicação do decreto sucederam vários outros disciplinando seu uso. O primeiro explicitou que os territórios indígenas e as demais áreas de conservação não seriam afetados. Depois – após manifestações de forte pressão popular e campanhas publicitárias a favor da preservação da floresta e dos povos que nela habitam – o governo federal publicou decreto suspendendo os efeitos do decreto inicial por 120 dias. Em meio às publicações destes decretos, foram proferidas decisões no âmbito da justiça federal com intuito de suspender os efeitos do ato normativo, em virtude de não respeitar os requisitos constitucionais previstos para modificar reserva ambiental. Por fim, o governo federal, em 26 de setembro, publicou decreto revogando o decreto que extinguiu a Renca.
Antes da investida de abrir as portas da Amazônia para os interesses do capital com a exploração de minérios, em 19 de julho, o governo federal publicou no Diário Oficial da União (DOU), por meio a Advocacia Geral da União, o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo presidente Michel Temer. Embora utilize a palavra “orientar”, o parecer pretende ter força vinculante e determinar que a administração pública federal respeite as condicionantes estabelecidas no caso Raposa Serra do Sol em outros processos de demarcação de terras indígenas, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal expressamente reconhecido que a decisão tomada na PET 33888 não é dotada de eficácia vinculante para outras terras indígenas.
O ato normativo relativiza o direito ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, nega a garantia ao direito à consulta prévia, livre e informada e proíbe a revisão de limites de terras já demarcadas. Outro ponto explícito é o absurdo “marco temporal”9, uma tese político-jurídica inconstitucional, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
O Ministério Público Federal (MPF) se manifestou, em nota pública, contra o parecer, para a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR/MPF), a posição do presidente da República “põe no papel o que o atual governo faz e os que antecederam já faziam: Não demarcar, não reconhecer e não proteger".
“A aplicação daquelas condicionantes a outras situações resulta em graves restrições aos direitos dos povos indígenas. Por exemplo, a autorização que o STF deu para a eventual instalação de infraestrutura para a defesa nacional naquela terra indígena de fronteira poderá, com o parecer da AGU, ser aplicada em qualquer outra região para desobrigar governos, concessionárias e empreiteiras a consultar previamente os povos indígenas, na abertura de estradas, instalação de hidrelétricas, linhas de transmissão de energia ou quaisquer outros empreendimentos que poderão impactar as Terras Indígenas”, é o que declaram diversas organizações indígenas e indigenistas brasileiras em nota pública divulgada em 20 de julho10.
Na nota pública do MPF há um apelo para que o poder judiciário tome posição frente às ameaças e desrespeitos aos direitos indígenas, principalmente, por iniciativas do poder executivo federal claramente pressionado pela bancada ruralista no Congresso Nacional11. “A certeza dos índios e a esperança de seu futuro estão nas mãos da Justiça!”, é como conclui a nota pública que condena o Parecer da AGU.
Recentemente, o STF julgou duas Ações Cíveis Originárias (ACO), a 362 e a 366, ambas interpostas pelo governo do Estado do Mato Grosso, em relação a declaração de nulidade de títulos de propriedade, por ocasião da demarcação do Parque indígena do Xingu e dos territórios dos povos Parecis e Nambiquara, ambas realizadas antes da promulgação na Constituição Federal de 1988.
O relator das ações, o ministro Marco Aurélio, proferiu voto lúcido e coerente, sendo acompanhado por outros sete ministros12. Embora não tenha enfrentado diretamente a tese do marco temporal, o ministro advoga pela proteção dos direitos originários dos povos indígenas e pelo respeito à teoria do indigenato. Segundo Marco Aurélio, desde a Constituição de 1934, “não se pode considerar terras ocupadas pelos indígenas como devolutas, portanto o Mato Grosso não precisa ser indenizado”. O ministro destacou que laudos periciais “comprovam a presença histórica dos indígenas nas regiões em questão”. Os votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski foram muito importantes para a garantia dos direitos indígenas, o primeiro refuta a legalidade e a legitimidade da tese do marco temporal e o segundo reconhece o laudo pericial antropológico como um documento imprescindível para a comprovação da ocupação tradicional da terra pelos indígenas e afirma que o judiciário não pode descaracterizar estes documentos.
Ainda que as ameaças vindas do executivo e legislativo estejam cada mais intensas e sistemáticas, parece que o Poder Judiciário e o MPF estarão atentos para exigir cumprimento e a garantia dos direitos indígenas consolidados.
Recentemente, a nova Procuradora Geral da República – Raquel Dodge – militante dos direitos humanos, durante reunião no Conselho Nacional de Direitos Humanos, afirmou que quer “dar voz e vez a quem precisa falar em nome dos direitos humanos no Brasil”. Na reunião que ocorreu dia 27 de setembro, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos aprovou nota pública de repúdio ao parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre demarcação de terras indígenas.
As mobilizações em Brasília são constantes, o movimento indígena mostra que não está parado frente às investidas do agronegócio. No dia 03 de outubro, uma delegação de oito povos indígenas do Maranhão, Roraima e Bahia estiveram reunidos com a ministra da AGU, Grace Mendonça. Segundo as lideranças, os argumentos e postura de “amiga dos índios” exaustivamente usado pela ministra durante a reunião, não enganaram os indígenas. Grace insistia na “boa vontade” de Michel Temer em tomar providências para as terras em processo de demarcação. Mas, os indígenas reagiam, “o governo não tem interesse de em demarcar as terras indígenas, se tivesse, já teria feito”.
Para Adriano Guileto Gavião (povo Caw Cree), o atual governo monta um quebra cabeça para retirar nossos direitos conquistados na Constituição Federal. Querem que nós, povos indígenas, sejamos instrumentos de lucro. Não aceitaremos e combateremos ideias como essas. Não concordamos com o argumento que esse tipo de economia vai favorecer os povos indígenas”.
É com essa resistência e segurança que os povos originários vêm se posicionando a cada ataque aos seus direitos. E mais bravamente ainda, aos ataques do agronegócio contra seus territórios. Os mais de 500 anos de (re)existência construiu suas capacidades em criar estratégias de defesa de seus territórios tradicionais.
Referencias:
1 Filme brasileiro lançado em abril de 2015 e transmitido pela TV Câmara, é uma realização de 7G Documenta, Machado Filmes, Argonautas, 400 Filmes, BASE Coletivo Audiovisual.
2 A bancada ruralista é composta, principalmente, pelos parlamentares que formam a Frente Parlamentar Agropecuária, formada por 222 deputados federais e tem como presidente o Deputado Federal Nilson Leitão, que votou a favor do texto do relator Osmar Serraglio na comissão especial da PEC 215 e é autor do pedido de criação da CPI DA FUNAI/INCRA, a qual visou criminalizar lideranças indígenas e profissionais e organizações aliados à luta pelo respeito aos direitos desses povos.
3 Na Câmara dos Deputados a emenda tramitou como PEC 241 e no Senado como PEC 55. Com a Nota “O golpe chega na FUNAI”, a APIB diz que: “A aprovação definitiva da PEC 241, que já foi aprovada em primeiro turno, implicará no orçamento de 2017, uma redução de R$ 430 milhões nas políticas públicas que atendem a agricultura familiar, a reforma agrária, os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, diretamente nos serviços essenciais de saúde e educação e de direitos humanos em geral
4 Clique aqui para acessar a nota.
5 Na linha de frente dessas iniciativas está a bancada ruralista apoiada pela bancada evangélica, as duas garantem decisivo apoio ao governo Temer no Congresso Nacional.
6 O decreto 9147, de 28 de agosto de 2017, assinado pelo presidente Michel Temer, permite que outras empresas, inclusive privadas, possam explorar o potencial mineral da área.
7 A reserva foi criada em 1984, no final da ditadura militar, e determinava que somente a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), uma empresa pública pertencente ao Ministério de Minas e Energia, podia fazer pesquisa geológica para avaliar as ocorrências de minérios na área.
8 A Petição 3388 foi a ação judicial, interposta pelo Estado de Roraima, questionando a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por ocasião desse julgamento foram editadas 19 condicionantes para serem aplicadas estritamente ao caso da Raposa Serra do Sol.
9 A tese do marco temporal é absurda e desrespeita os direitos territoriais indígenas consolidados na Constituição Federal de 1988, pois coloca data para a garantia de direitos que são originários dos povos indígenas, os quais são fundamentados na teoria do indigenato que reúne a destinação das terras indígenas à posse permanente destes povos e a consequente nulidade de qualquer ato que disponha sobre seu domínio que não tenha essa finalidade. A teoria é comprovada por instrumentos legais existentes e sucessivos desde a colônia e são reforçados no texto da carta magna brasileira.
10 Veja a nota pública clicando aqui.
11 Em meio às negociações de Temer para evitar seu afastamento da presidência, os ruralistas do Congresso conseguiram emplacar sua pauta no governo federal, em vídeo divulgado nas redes sociais, o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS), afirmou que o Parecer foi articulado com participação da bancada ruralista, da qual é membro atuante. Ela se soma a outras vitórias recentes do grupo do Congresso em relação à questão indígena. O vídeo pode ser acessado clicando aqui.
12 Marco Aurélio foi seguido pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski nas duas ações. O ministro Gilmar Mendes estava impedido na ACO 362, mas seguiu o relator na ACO 366.
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Conjuntura Político-Indigenista – Retrocesso e Ameaça aos Direitos dos Povos Indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU